O poder do exemplo: sobre homens no feminismo

Para um homem, articular o discurso feminista é razoavelmente fácil: difícil é agir de acordo.

Talvez uma das maiores contribuições dos homens para o feminismo seja simplesmente se posicionar no mundo de forma feminista.

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Quando viajo para dar minhas palestras (não sobre feminismo, aliás), sempre fico na casa de pessoas generosas que me hospedam. Como escrevo muito sobre feminismo, essas pessoas já estão praticamente pré-selecionadas como feministas -- masculinistas não me leriam e certamente não me hospedariam. Mais ainda, pessoas capazes de hospedar um completo estranho só porque gostam dos seus textos também tendem a ser mais generosas e mais abertas do que a média. De fato, esses lares são sempre auto-declarados feministas, espaços de igualdade onde todas as tarefas seriam divididas igualmente, etc.

E, apesar de todos os homens que me receberam serem pessoas boas e generosas que dominavam a retórica feminista, em poucos desses lares as tarefas eram de fato divididas de forma igualitária. (Naturalmente, esse é apenas um aspecto facilmente observável por uma visita. Desnecessário dizer que o feminismo não se esgota nisso.)

Sim, diziam essas famílias, somos todos indivíduos de igual valor, com nossas carreiras e trabalhos igualmente importantes. Mas o que eu de fato observava era que só um dos gêneros era o responsável último pela casa, pela comida, pela limpeza.

O outro, bem, o outro "ajudava". Quando dava.

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Faz algum tempo, publiquei aqui no PapodeHomem um texto chamado "Feminismo para homens: um curso rápido", que teve uma acolhida muito carinhosa da parte de homens e mulheres. Tirando os ataques masculinistas de praxe, alguns elogios foram mais problemáticos que as críticas.

Muita gente chamou o texto de "definitivo" (e outros elogios bombásticos) mas, na prática, é um texto bem basicão e introdutório. Seu público-alvo são homens que nunca foram expostos ao feminismo. Para qualquer pessoa que acompanhe sites feministas (como o Blogueiras Feministas, por exemplo, que eu recomendo e para onde tambémescrevo) o meu texto não teria novidade alguma. Seu único mérito, se existe, é didático -- e justamente por isso saiu em um site masculino, para tentar alcançar o tipo de pessoa que nunca acompanharia excelentes blogs (trans) feministas como os da Lola Aronovich, Aline Valek, Clarah Averbuck & Nádia Lapa, Hailey Kaas, Daniela Andrade, Juno Cremonini, Denise Arcoverde, etc.

Muita gente elogiou o texto justamente por ser escrito por um homem, mas, na prática, isso é sintoma do privilégio masculino da nossa sociedade, onde um homem recebe elogios por escrever textos que, se escritos por mulheres, seriam ou ignorados ou atacados como "coisa de feminazi".

E, na verdade, sabendo muito bem como esse mecanismo funciona, minha tática foi justamente usá-lo para levar ideias feministas à pessoas que normalmente não estariam abertas, ou nem mesmo seriam expostas, a essas ideias.

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Penso, converso e escuto muito sobre o papel do homem dentro do feminismo. Sobre como podemos nos engajar. Sobre como participar do movimento sem tentar dominá-lo ou colonizá-lo. Sobre saber ouvir as queixas e críticas das mulheres sem cairmos em uma posição defensiva. Sobre como ser parceiro sem ser paternalista ou protagonista.

Outro dia, participei de um evento da associação de pais de uma escola alternativa. Dezenas de pessoas tinham enfrentado o trânsito de São Paulo para passar a noite na escola das crianças discutindo igualdade de gênero. Claramente, o tema era importante para elas. Queriam saber como educar seus filhos e suas filhas para criar um futuro mais igual, menos sexista. Como fazer?

Pensei em minhas viagens e em todas aquelas famílias-autodeclaradas-feministas-onde-o-homem-não-lavava-a-louça e disse:

Os pais (na verdade, todos os homens, pais ou não) precisam dar o exemplo. As crianças estão olhando. O mundo está olhando. Olhando, entendendo, aprendendo.

Se o meu pai se diz feminista de carteirinha, cool e descolado, cita Judith Butler e Simone de Bouvoir, trata minha mãe com respeito e carinho, mas não cozinha, não lava a louça, não participa das tarefas domésticas, eu vou crescer achando que, para ser um homem feminista cool e descolado basta dominar o jargão e escrever sobre empoderamento e sororidade enquanto sua companheira ("esposa" é muito sexista) faz a janta.

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A gente aprende pelo exemplo.

Entre mil outros fatores, crianças de lares violentos têm maiores chances de tornar-se pessoas adultas violentas simplesmente porque, para elas, utilizar a violência para resolver uma situação doméstica de conflito é uma opção possível e concebível, mesmo que desagradável ou somente para ser usada em último caso.

(Para mim, por exemplo, que cresci em uma casa onde havia diversos conflitos mas ninguém nunca bateu em ninguém, que só fui saber depois de uma certa idade que havia papais que batiam em mamães, jamais teria me ocorrido como algo na esfera do possível que meu pai poderia resolver um conflito com a minha mãe dando um soco na cara dela. Seria algo tão inconcebível quanto imaginar que ele poderia resolver a discussão fazendo crescer um terceiro braço.)

Hoje, em muitos abrigos para vítimas de violência doméstica, homem não entra. Entende-se que a presença de homens adultos pode ser traumática para vítimas recentes de violência doméstica, tanto mulheres quanto crianças.

Por outro lado, também existem abrigos que propositalmente trazem homens no acolhimento.

Para crianças que estão saindo (na verdade, fugindo) de lares onde o homem é o agressor, é importante perceberem que ser violento não é "coisa de homem" ou que "homem de verdade" não é violento ou que homens são naturalmente violentos, etc etc, e tomarem contato e terem experiência com homens carinhosos, acolhedores, cuidadores.

Ou, como diz a campanha da ONU Mulheres da qual esse texto faz parte, "o valente não é violento".

Um único homem acolhedor e pró-feminista que sirva de modelo para um menino assustado e agredido pode salvar vidas -- a dele mesmo e também a de sua futura família.

(Sobre violência doméstica, recomendo o imprescindível "As Virtudes do Medo", de Gavin de Becker, certamente o livro que mais presenteei na vida, o livro que também salvou minha vida. Mandei uma cópia para a Lola e ela escreveu uma resenha bem completa e bem empolgada. Recomendo.)

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Então, falei aos pais e mães ali presentes, de nada adianta dominar o discurso feminista e vir a eventos sobre igualdade de gênero se vocês ainda agem como se a esfera doméstica fosse naturalmente, necessariamente, responsabilidade da mulher; se impõem horários diferente para filhos e filhas voltarem das noitadas; se ensinam as filhas a não serem estupradas (como se estupro fosse um problema de autopreservação pessoal) mas nunca ensinam os filhos a não estuprar (pois o estupro é um problema de toda a sociedade), etc etc. Os exemplos poderiam continuar ad eternum.

E terminei com uma pergunta-desafio:

Quase todos aqui provavelmente já sabem certinho o que dizer. Mas quais são as coisas que você FAZ que silenciosamente confirmam, aos olhos dos seus filhos e do mundo, a desigualdade de gênero, o machismo, a transfobia, o sexismo?

Nenhuma pessoa -- e com certeza nenhum homem, mesmo o mais pró-feminista leitor de Simone de Bouvoir -- está acima de fazer comentários machistas ou de ter atitudes transfóbicas. É preciso analisar todo dia nossas ações & nossas palavras. É preciso muita autocrítica. É preciso sempre saber ouvir.

Falar o feminismo é a parte fácil. Agir o feminismo, todos os dias, é que são elas.

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Esse texto é parte da blogagem coletiva "O valente não é violento", promovida pela ONU Mulheres para celebrar o Dia Internacional dos Direitos Humanos e lutar pelo fim da violência contra as mulheres:

"A campanha tem o objetivo de estimular a mudança de atitudes e comportamentos machistas, enfatizando a responsabilidade que os homens devem assumir na eliminação da violência contra as mulheres e meninas. Desse modo, a juventude da América Latina e do Caribe poderá ter uma vida livre da violência de gênero.
A iniciativa quer questionar e transformar os estereótipos de gênero, especialmente os estereótipos machistas ligados a comportamentos que os homens, supostamente, deveriam assumir para provarem sua masculinidade e valentia.
Vocês podem saber de todos os detalhes da campanha em nosso hotsite, Facebook e Twitter."

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Outrofobia: Textos Militantes

Esse texto faz parte do meu livro Outrofobia: Textos Militantes, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015. São textos políticos, sobre feminismo e racismo, transfobia e privilégio, feitos pra cutucar, incomodar, acordar.

Se você gostou do que eu escrevo, então, dá uma olhada no livro: custa só trinta reais e deve ter mais coisa que você vai gostar também.


publicado em 10 de Dezembro de 2013, 19:34
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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