Um trio que destrói muitos homens: trabalho, estresse e saúde (ou falta de)

Homens que trabalham demais, se estressam no cotidiano e deixam a saúde de lado. Conhece algum?

It's been a hard day's night,
and I’ve been working like a dog
It's been a hard day's night,
I should be sleeping like a log

(The Beatles, “A Hard Day’s Night”)

Nos últimos dez anos, diversos pesquisadores brasileiros (incluindo a mim) entrevistaram profissionais de saúde tentando entender a má adesão dos homens aos cuidados oferecidos. Parece haver uma percepção generalizada de que “o homem não se cuida” e de que isso é resultado do seu “papel de provedor” e da “dificuldade em demonstrar vulnerabilidade”. Tudo isso vai entre aspas porque, além de serem frases cristalizadas em diversos contextos, todas elas merecem ressalvas.

Primeiro, o homem não é uma categoria fixa, unívoca e de comportamento previsível. Segundo, 60% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, sendo que em mais de um terço destas há um cônjuge na casa. Por fim, milhões de homens brasileiros buscam ajuda regular para problemas de saúde, destacando-se os idosos, e homens mais jovens têm percebido cada vez mais a importância de perceber e falar sobre seus sofrimentos.

Ainda assim, a prevalência de doenças cardiovasculares entre homens é maior que entre mulheres, e eles morrem mais de infarto que elas. Além disso, já mostrei aqui no PapodeHomem que há quase quatro suicídios masculinos para cada suicídio feminino. Não é possível explicar essas diferenças apenas através da biologia, como um duelo entre um corpo talhado para o trabalho e outro talhado para o cuidado. Socialização, comportamentos e fatores biológicos se influenciam mutuamente, contribuindo para que as mulheres vivam, em média, cerca de sete anos a mais que os homens.

No texto de hoje, conversaremos um pouco sobre estresse, trabalho e saúde.

Estresse agudo e estresse crônico

A palavra stress foi tomada da física, onde se refere à tensão e o desgaste aos quais os materiais são submetidos. Em biologia, ela pode significar a relação entre as exigências ambientais e as respostas de um organismo ou, mais comumente, a sobrecarga desse organismo por exigências que superam sua capacidade de resposta. Ninguém escapa do estresse, pois ele inclui desde eventos cotidianos (como perder a hora e pular apressado da cama) até condições crônicas, como um emprego sacal, em condições desconfortáveis e mal chefiado.

O estresse é um excelente exemplo das conexões entre sociedade e biologia. Quando precisamos correr atrás de um avião prestes a decolar, mediadores químicos são liberados, e um deles é a adrenalina. Dentre outros efeitos, esse hormônio faz o coração bater mais rápido e a pressão sanguínea aumentar, ajudando as pernas a receberem o sangue que precisam para cumprirem a tarefa imediata de correr. Dentro do avião, você chegará ofegante e com o coração batendo rápido, mas, a depender do seu preparo físico, rapidamente se recuperará, e seu corpo alcançará o equilíbrio prévio.

Em outro extremo, o motorista do Uber que te levou ao aeroporto pode estar há meses enfrentando jornadas de 12 horas de trabalho diário no banco de um Celta, com duas paradas de meia hora para comer, ouvindo buzinas, cheirando fumaça e fugindo de taxistas que também enfrentam jornadas extenuantes em um trabalho autônomo e estressante, onde há alta prevalência de tabagismo e doença cardíaca. Meses e anos de liberação de adrenalina e outras substâncias vão alterando tanto as glândulas que liberam aquelas substâncias como seus órgãos-alvo, acarretando doenças como hipertensão arterial, insuficiência cardíaca, depressão e ansiedade.

Do ponto de vista da masculinidade hegemônica, as demandas de um mercado de trabalho em transformação (com elevados índices de desemprego e precarização das relações entre patrões e empregados) se somam à perda do papel de provedor como fontes de estresse, com impactos negativos na saúde física e mental dos homens.

O consumo de substâncias como álcool e tabaco é um refrigério traiçoeiro; igualmente traiçoeiras são as promessas da indústria farmacêutica. “Para você que não pode parar por uma gripe”, a atriz global indica um antigripal; se você não consegue “comer sete porções de frutas, verduras e legumes por dia pra manter seu sistema imunológico saudável”, o ator-marido-pai mais admirado do Brasil recomenda vitaminas em formato de bala de goma. Não é preciso mais mudar seus hábitos de vida: a farmácia tem os aditivos certos para uma vida sem gripe, sem comida boa, sem tristeza e sem saúde.

Caminhos alternativos

É muito fácil dizer a alguém que trabalhe menos, mude de emprego, pare de fumar, beba menos, faça atividade física, coma melhor e tenha amigos, mas qualquer um que já aceitou esses conselhos percebeu que eles exigem dedicação, condições favoráveis e podem ser tremendamente difíceis.

O PdH tem uma série de textos sobre esses temas, e um vídeo muito didático sobre meditação do Lama Padma Samtem me ajudou em uma tentativa de iniciar esse hábito. O contato com seu interior de uma forma transcendental é motivo suficiente para conhecer a meditação, mas estudos já mostram efeitos objetivos em condições de saúde, especialmente questões psíquicas.

Na recente passagem de 2018 para 2019, ouvimos os mesmos votos de sempre: “que a gente tenha saúde, que o resto a gente consegue”. No entanto, todo mundo parece esquecer que o resto frequentemente custa a saúde. No filme Interview with God, de Jim Brown, Deus afirma que uma das coisas que mais o surpreende na humanidade é que as pessoas “percam sua saúde para fazer dinheiro e então percam dinheiro para recuperar a saúde”.

É difícil, mas nunca é tarde para mudar velhos hábitos.


publicado em 22 de Janeiro de 2019, 00:00
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Antônio Modesto

Médico de Família e Comunidade e doutor em Medicina Preventiva pela USP. Professor na Faculdade de Medicina da Unicid. Carioca de sotaque e paulistano de coração, toca cinco instrumentos mas nenhum bem. Tem estudado gênero, saúde dos homens e medicalização da vida.


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