Um sexo e a conta, por favor

Das conversas que precisam acontecer e nos deixam desnorteados

— Bizarro isso, né? - digo, enquanto dou um gole no café - A gente convive tanto tempo com as pessoas… Divide planos, divide sonhos, divide a mesma privada, pra vomitar as tripas depois de um porre. E, de repente, a gente se perde. Não é estranho?

— É, a gente sempre se perde...

Há vários meses não nos víamos. Perdemos o contato. Mudamos de casa e o número de celular. Nos reencontramos pelo Facebook, algumas semanas antes, e marcamos o encontro em uma dessas cafeterias gourmet, perto da Avenida 9 de Julho.

Eu cheguei 5 minutos antes e ele com 15 minutos de atraso, como de costume. Já sabíamos que seria assim. Independente de qualquer coisa, sempre tem aquelas que não mudam.

Resolvemos nos sentar do lado de fora do estabelecimento. Na mesa ao lado, uma galera com cara de intelectual falava sobre Godard. Na nossa frente, um casal pedia um mocaccino com essência de amora. Ou algo do tipo. Tudo em volta era muito limpo e bem arrumado. Todos eram lindos e descolados. Gente com cara de culta e bem resolvida. Gente que não parece se debulhar diante dos dramas cotidianos. Gente de plástico. E nós ali, inteiramente cagados, tentando parecer algo que não éramos. Tentando parecer sei lá o que, sei lá para quem. Mas nos conhecíamos muito para começar esse jogo. Inclusive, já havíamos estado ali antes, não exatamente naquele lugar, é claro. Mas isso importa? Sei lá... O fato é que tinha passado tanto tempo desde a última vez, que cheguei a pensar que poderíamos ter perdido o tato, a intimidade, entende?

Será que é possível perder a intimidade?

— E o que você tem feito? - digo para quebrar o silêncio.

— Trabalhado pra cacete, enchido a cara de vez em quando… Essas coisas. Tô namorando. E isso é bom, né? Evita aquelas merdas…

— Evita?

— Acho que sim. Tem dado certo pelo mesmo… Quer dizer, é claro que eu sou apaixonado por ela, e que o fato de que  "namorar evita merdas", não seja o único motivo para estarmos juntos… E…

— Eu entendo o que você quer dizer. Às vezes é bom ter alguém do nosso lado pra ajudar a colocar o pé no freio.

— É, acho que é mais ou menos por ai. E você, o que tem feito?

— Merda pra caralho. Eu não tenho ninguém pra me ajudar a colocar o pé no freio - Digo rindo. Ele ri também. E caímos no silêncio de novo.

— Tem um negócio que eu trouxe pra você. Na verdade, é seu… Enfim... - diz, me entregando um embrulho tirado de dentro da mochila. O casal na nossa frente, que pediu o mocaccino esquisito, parece prestar atenção enquanto desembrulho o pacote. Parecem mais curiosos do que eu.

Era uma calcinha fio dental vermelha. Fazia muito tempo que não a via.

— Caramba! Pensei que ela não existisse mais. Onde você encontrou? - digo, deixando-a sobre a mesa, junto com o embrulho.

— Debaixo da estante. Cê acredita? Foi o único lugar que a gente não procurou. Já faz tempo que eu achei, mas ainda não tinha tido a oportunidade de devolver.

— Tô tentando me lembrar como foi parar ali... Obrigada pela lembrança, eu gostava dessa calcinha. - respondo irônica e rindo.

— É, eu também. Mas acho que ela fica melhor em você do que debaixo da estante.

— Provavelmente deve ficar. Só que agora o pessoal da mesa em frente tá achando que você é um tarado.

— O pessoal da mesa em frente não deve transar.

— É, não o suficiente para perder uma calcinha debaixo da estante. Esse dia foi divertido!

— Sempre era.

— Verdade. E você tem visto o pessoal? A Renata me ligou semana passada, parece que o Vitor vai casar com uma polonesa que ele conheceu em um retiro espiritual no Tibet… Algo do tipo - pergunto, tentando mudar o assunto.

— Ouvi falar sobre isso, mas nunca mais vi ninguém. A gente se perde, né?

— É, a gente sempre se perde.

— Por exemplo, se fosse antes, a gente nunca iria se encontrar aqui. A gente iria pra um bar.

— Tava pensando nisso também… A gente ia para um bar, tomar duas doses de whisky vagabundo.

— E várias garrafas da cerveja mais barata.

— Achou que o meu estômago não aguentaria esse tipo de extravagância!

— Nem o meu, mas é legal pensar que um dia já aguentou.

— Parece que o tempo passa e a ressaca piora, né?

— A ressaca sempre foi forte, é que antes a gente podia dormir a tarde inteira pra aguentar.

— É verdade, mas a gente tem essa mania de culpar o tempo pelas coisas que passam...

— Coitado do tempo. E depois de beber, o que a gente faria?

— Provavelmente a gente ia estar bêbado o suficiente para entrar em algum hotel vagabundo. Ia dar merda.

— E ai eu ia dizer que essa calcinha ficaria melhor jogada no chão do hotel vagabundo do que em você.

— Provavelmente.

— A gente nunca precisou ficar bêbado para isso acontecer…

— É, nunca precisou. Será que agora precisaria?

— Eu acho que não.

— Melhor não arriscar…

— Melhor não.

— Ia dar merda.

— Com certeza ia.

— E você namora…

— É… Eu namoro! E é por isso que a gente nunca ia dar certo.

— Por quê?

— Porque ia ser uma merda se tudo terminasse da mesma forma que terminam todos os namoros.

— Então, ainda bem que a gente nunca daria certo.

— Sorte a nossa!

O celular dele começa a vibrar freneticamente. Quem quer que seja, parece que tem urgência. E interrompe o gole de café para olhar as últimas mensagens. Depois, pega a xícara novamente e fica me olhando em silêncio.

— Você precisar ir?

— Acho que daqui a pouco … - responde reticente. E eu percebo que existe uma parte ali que realmente quer que caminhemos para um bar e enchamos a cara, até ficarmos bêbados o suficiente para fazermos toda a merda que temos evitado. Ele percebe também. E. logo em seguida, estica o braço para pedir a conta.

— Deixa que essa eu pago!

— Ah, mas não é justo…

— Você faz a próxima, ai já fica um motivo para a gente não passar tanto tempo sem se ver. Sei que você detesta dever café para outros.

— Combinado, então!

— A gente se vê, certo?  - ele diz.

— Claro, a gente se vê...

Essa foi a última coisa que dissemos um ao outro. A última vez que nos vimos. Tá certo, eu detesto dever café para os outros, mas nós nunca íamos dar certo. E isso não é necessariamente ruim. Nesse caso, era até bom. Melhor assim.

Além disso, a aquela conta já estava paga há muito tempo.


publicado em 06 de Setembro de 2016, 00:00
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Amanda Cipullo

Editora do site Casos Rock n' Roll e formada em publicidade. Jornalista por acaso, atriz e escritora por paixão. Acredita que pedras que rolam não criam limo, e é esse tipo de história que conta por aqui.


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