Um par de óculos (com armação) verde

A descoberta não era assombrosa: seu filho, Síndrome de Down, míope. Nada assustador. O pior fora saber, em um exame de rotina, no final da gravidez, que o filho nasceria com o “problema de saúde”.

et caterva

Nada a ver com circunstâncias inesperadas. O casamento devido a uma paixão fulminante com o primo de primeiro grau, de matizes quase estritamente sexuais. Descobriu depois que o casamento fora uma loteria, e que ela ganhou a Mega Sena. O marido, também culto, sensível, devotado ao corpo, ao erotismo, ateu, com predileção por literaturas complicadas, de autores como Kafka, Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, Machado de Assis, Graciliano Ramos , era tudo e mais, além de bom de cama – o que já sabia por experiência anteriores. Um assombro.

Divertiam-se. Ouviam música, dançavam, trepavam. Eram os melhores amigos e amantes. O mundo não estava, mesmo assim, à revelia. O casamento, aberto. Sexo à vontade. Interesses múltiplos. Sem censuras e julgamentos. Muito por isso, raramente aventuravam em outros territórios. Viviam, sentimentalmente, um para o outro. Não sabiam o que fazer, e como fazer, diferente.

Não pensaram muito. Teorias não são práticas, enquanto as últimas fundavam teorias no momento preciso em que se realizavam.

Veio o filho. Uma alegria temperada de mútua preocupação. Seria perfeito? Afinal, eram primos. De primeiro grau, repita-se. Aconteceu o pior. O filho com pré-diagnóstico: Síndrome de Down.

Encarar, sobreviver, entender tudo como entendiam a própria loteria do amor. A barra não deixava de pesar por causa disso.

Agora, sete anos depois, mais essa. O filho, com uma enorme dificuldade de locomoção e de fala, ainda era míope. Os óculos, essenciais. A visão, disse o médico, colaboraria, e muito, na percepção do mundo e das coisas, na construção da memória, ainda que deficiente, consideradas as circunstâncias. Não me fale delas, pensou a mãe; delas, não escapo.

Depois de um custoso exame no oftalmologista, onde as letras tinham que ser substituídas por outros sinais, e o médico era obrigado a recorrer a mil subterfúgios para obter um parecer, ainda que inconclusivo, das dificuldades de visão do paciente, chegou-se a conclusão que o menino era míope (grande novidade), cinco graus no olho esquerdo, cinco graus e meio no direito. Pelo menos o ganho da especificação. Adiante, as lentes, a armação.

Dias depois a mãe se dirigiu à ótica. O menino em uma cadeira de rodas, ainda com fraldas, a mãe temendo evacuações, cheiros, a vergonha...

Amor não é tudo. O que é amor? O filho, recebido quando do nascimento como um encargo benfazejo, com o tempo transformara-se em outra coisa: um estorvo não declarável, doído. Principalmente para o pai, que o olhava com ares de enjoo. A mãe guardava, em um lugar sabido, só dela, um encanto por aquela criatura no mais das vezes impassível, sempre capaz, ao revés, de receber seu carinho, como um ser feito só para isso – receber carinho.

Menos mal, as relações íntimas prevaleceram. Sem obrigação de gerar mais filhos, o casal distinguia-se dos demais pela perfeita saúde sexual. Não mencionado o rebento, a alegria permeava seus olhares como uma lembrança musical de cantata bachiana.

O menino, quase sempre, é completamente absorto. Quando não é, incomoda. Suas manifestações são intermitentes, às vezes violentas, e poucos, além da mãe, são capazes de acalmá-lo.

Pelo calçadão da praça, vai ele, a enxergar pouco mais que manchas diante de si. A se lembrar pouco mais do que do último segundo e, às vezes, brutas recordações de espasmos de alegria ou de dor, sem qualquer sentido, sequer para si mesmo.

Estão na ótica. A mãe pede uma armação simples. O menino, como se vê... O funcionário compreende, pesaroso, piedoso, compungido, repleto de bons sentimentos que refletem o grau de distância que ele quer ter do garoto. Vai que essa coisa é contagiosa...

O menino, em um repente, fixa-se em uma armação de resina verde. Feia, grande, chamativa, absurda. Ah, não, essa não, tenta demovê-lo a mãe, sem poder dizer a ele “pense bem” (como pedir isso?). Não, filho. Vê essa outra, fininha... O escândalo que faz elimina qualquer argumento. Afinal, ele terá a armação verde. O par de óculos verde.

Na semana seguinte, a mãe retorna com ele à ótica. Mais uma vez, repentinamente, o menino, ao ver a armação verde, anima-se. A mãe sorri; o atendente também, piedoso, e com muita, muita pressa.

Ao por os óculos no rosto, o menino embasbaca-se. Aturdido, parece o mesmo de sempre. À sua frente, o mundo mudou. Antes, era um conjunto indistinto de manchas verdes, negras e cinzas. Gostava das manchas verdes. Agora as manchas foram eliminadas. O mundo era uma confusão de formas e cores bem distintas. Uma miríade de tons diferentes, ainda que com a predominância do verde das árvores. Uma coisa linda. Animou-se por inteiro, sem expressar essa animação. Em sua mente conturbada, a alegria era silêncio.

A mãe ficou triste. Pena. Pensara que o filho, depois de usar as lentes, ficaria mais perceptivo, capaz de corresponder às demandas exteriores, além de sua imaginação inerme. Não, nada mudou. Ela guardou, mais uma vez, a amargura em algum lugar dentro dela, que não sabia onde era, mas um lugar onde nem marido nem parentes penetravam, onde se mesclava a esperança, a dor e outras sensações não verdes, mas de ternura.Vermelhas?

Saíram da ótica, ela empurrando a cadeira de rodas, mais uma vez preocupada com as evacuações dele. Ele, maravilhado, alterou seu comportamento. Ao invés de mover a cabeça de um lado para outro, a esmo, concentrou sua visão no mundo inédito que se apresentava à sua frente, repleto de contornos e volumes antes insuspeitados.

Pararam em um sinal de trânsito. Diante do menino, do outro lado da rua, uma mulher. Cabelos castanhos claros, compridos, imensos, envolvendo um rosto de linhas quase simétricas, perfeitas, com sobrancelhas grossas, lábios rosados, nariz proeminente, mas perfeito, sob os olhos grandes e negros.

Um corpo certamente irretocável sob o vestido de seda vistoso, estampado com pequenas flores vermelhas sobre o fundo azul do céu, misturado a folhas de árvore e manchas amarelas que representavam o sol e a luz. Com o vento, o vestido envolvia o corpo como se ele fosse feito de mármore;  uma escultura de Michelangelo, divina e sensual.

O sinal abre. A mulher se aproxima. Vê o menino na cadeira de rodas. Sorri, só por casa da armação verde dos óculos que se sobrepõe ao seu olhar siderado, fixo. Antes que ela se distancie, é capaz de ouvi-lo falar, bestificado:

“Bela, bela, belíssima!”

Ela sorri; a mãe, encantada, também; ele, nem se fala -  mais ainda.


publicado em 17 de Março de 2012, 21:02
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Marcos Nunes

Carioca, brasileiro, desertor. Chato pra caralho, não gosta de ler textos marcados com canetinha cor de rosa. Seu negócio é literatura desagradável, não querer consertar o mundo de acordo com suas visões, o que só pode dar merda para todo o resto do mundo. Embora pau mandado não tema lema, ele tem o seu: "Perplexidade aflita sob a perspectiva caótica".


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