Um amor pra vida toda

Já dizia George Moore: "um homem viaja o mundo a procura do que ele precisa e volta para casa para encontrar"

Ela parecia uma mulher de negócios importante. Calçava um par de sapatos de salto alto. Arrastava uma mala de rodinhas com a mão esquerda. Andava com outra pendurada no ombro direito. Não usava relógio, mas olhou as horas no celular. Usava óculos bem escuros. Batom cor da pele. Unhas recém feitas. Cabelo na altura dos ombros. Brincos na orelha.

Ele, bem mais jovem do que ela, carregava apenas uma bolsa transversal de couro. Um livro na mão direita. Uma garrafa d'água na esquerda. E uma jaqueta pendurada no antebraço. Calçava uma bota marrom já um pouco desgastada. Vestia uma camiseta branca. Calça vinho. Relógio verde oliva, estilo militar. Cabelo curto. Barba feita. Algumas marcas de espinha no rosto como quem acabara de superar a adolescência.

Ela poltrona 31. Ele poltrona 29. Não ficaram lado a lado, mas o ônibus não estava lotado. Ele numa das janelas e ela na outra, do outro lado do corredor.

Ela abriu o jornal e, depois de ver as manchetes da capa, dedicou alguma atenção ao editorial e aos colunistas. Tirou um dos cadernos de dentro e deixou de lado. Era o de esportes, naturalmente grande por ser segunda-feira. Dedicou-se ao de economia.

Ele pegou os fones de ouvido e pendurou no pescoço enquanto declinava a poltrona com alguma pressa. Continuou lendo o livro que ainda estava no começo. Não era um romance, tampouco era muito grande. Parecia uma espécie de biografia, mas tinha ilustrações no meio.

O dia estava ensolarado, mas pra ser sincero, o céu tinha algumas nuvens. Porém, mesmo elas pareciam ter sido propositalmente colocadas ali como que para compor a paisagem. A estrada ardia e qualquer um que ousasse encostar no asfalto se arrependeria. O mato era verde. O ônibus, frio.

Ela continuava lendo o jornal e ele reparou que ela tinha uma aliança no dedo – mão esquerda, se você quer saber. Descalçou os sapatos e seus pés respiraram aliviados desfazendo pouco a pouco as marcas avermelhadas pelo aperto. Levantou o apoio de braço que separava sua poltrona do vazio ao seu lado e invadiu esse espaço.

Ele fechou o livro, puxou um casaco fino de dentro da bolsa. Não era a jaqueta que já falamos antes. Não vestiu. Apenas jogou por cima do corpo e cruzou os braços por baixo. Sentiu o silêncio do ônibus, recolheu os olhos, encostou a cabeça e cochilou.

Sonhou com os desenhos que viu no livro. E um alarme. Viu as nuvens ficando cor de rosa, virando animais. E um gemido. Lembrou da namorada que estava em casa, não dela, mas era ela. E um soluço.

Ela falava ao telefone. Era alguém na cidade para onde os dois estavam indo. Chorava baixinho como quem não queria incomodar ninguém. Soluçava. Gemia quieta e controladamente, se é que isso era possível.

Com a inclinação da poltrona dos dois, ele não podia ver o rosto dela, mas via todo o resto. E escutava. Lugar perfeito para embarcar na conversa dos outros. Reparou que agora ela tinha também uma caixinha de lenços. Se lembrou que ela estava com a cara inchada, como quem tinha chorado antes e parou pra ouvir.

— Não! Não acredito. Eu queria tanto ter ido ontem. Eu não queria pegar a estrada a noite, mas... E agora? Ele estava tão fraquinho. Eu sabia que isso ia acontecer. Quando estive aí na semana passada, o médico disse que tinha pelo menos mais duas semanas. Passei dois dias aí. Eu vi que ele não estava bem... E agora? Eu tô chegando. Ainda falta uns 40 minutos... E a minha mãe como está? Toma conta dela, tá? Não deixa ela passar mal. Faz ela comer alguma coisa. Eu to chegando. Um beijo. Te amo. Te amo muito. Avisa as primas, por favor.

Deu pra sentir cada músculo do corpo dele se enrijecendo. A boca secando. O silêncio ecoando.

Ele não tinha onde se esconder. Aquela posição de observador, agora, não era mais confortável. Pensou em oferecer uma água. Pensou em dizer meus pêsames. Chegou a conclusão de que ela não sabia nem que ele estava ali. E o que menos queria era a intromissão de um estranho. Se calou. Não conseguiu mais dormir.

Quando desembarcaram na rodoviária, ela pegou o primeiro táxi da fila. Ele pegou o telefone.

— Alô? Pai? O senhor está bem? A mãe tá boa? Liguei só pra saber como vocês estavam. Vou passar o Carnaval aí com vocês, sim. Eu te amo, tá?


publicado em 03 de Fevereiro de 2016, 18:06
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Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


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