"Te como inteira!": sobre o aprisionamento do olhar masculino

Existem algumas situações do dia-a-dia em que é muito desagradável ser mulher, deixando de lado todo o sangue, a TPM e as necessidades de mulherzinha.

Sabemos das diferenças básicas de cada sexo e que a natureza não vai mudar porque estamos reclamando, então esse tipo de coisa só nos resta aceitar. Mas a vida dos dois é praticamente a mesma, e suas obrigações e necessidades são bem parecidas, como ir abastecer um carro num posto de gasolina.

Quando um homem precisa sair e pagar com o cartão, ele cumprimenta o frentista, faz piada do Corinthians, coça o saco, paga e volta para o carro. Já a mulher, quando sai do carro é quase um espetáculo, por mais básica e não chamativa que ela esteja. Até o cabelo desgrenhado e a cara de sono não resolvem.

Praticamente todos os frentistas, motoristas, vendedores, flanelinhas – e qualquer ser humano do sexo masculino que esteja no recinto – param, olham a bunda e fazem uma cara de “Te como toda”.

Ela, claro, sente-se o frango assando na padaria. Sua única vontade é correr de volta para o carro e ir embora.

Isso também acontece quando você vai lavar o carro, leva no mecânico (além de ele achar que você é burra), vai a um bar, passa em frente a um prédio com seguranças ou muitas vezes até quando se aproxima de um grupo de policiais (algo que, particularmente, acho um absurdo). Coincidentemente ou não, são locais onde há uma aglomeração de homens habitualmente trabalhando.

olhar
Típico olhar masculino repugnante. Desde 1930.

Às vezes, eu até sinto inveja do meu cunhado que pode fazer aquela amizade superficial com o padeiro, frentista, porteiro, taxista, síndico, o professor e as milhares de profissões que tratam diretamente com o público e estão ocupadas por homens. No máximo, a mulher é educada, dá bom dia, faz uma pergunta ou outra e segue a vida. E o que o homem vai falar dela? Nos melhores casos... "gostosa".

Se a mulher faz aquela social mais amigável (igual muitos homens fazem, e isso é ótimo), já tem a vizinha comentando, os homens perguntando se ela é sapatão ou se o cara tá comendo ou vai comer. Isso exclui qualquer possibilidade da mulher deixar de ser apenas a "gostosa" e passar para um nível um pouco menos corporal e mais intelectual mesmo, da pessoa entender que você é simpática e quer estabelecer aquele encontro, que é curto e muitas vezes diário, como algo agradável. Ou apenas pelo fato de ela gostar de ser simpática e conversar.

Se um dia eu descer e levar umas cervejas que sobraram aqui em casa para o porteiro, meu prédio inteiro, e inclusive ele, vão achar que eu estou "dando mole". Se meu irmão levar, o cara "é brother".

Parece que o homem encontrou um jeito de prender e acanhar a mulher quando ele está em bando: vendo-a como objeto sexual e nada além daquilo. Praticamente cuspindo na cara dela “Você é só um pedaço de carne” (e mais uma vez voltamos ao frango da padaria, interessante...).

Será essa a forma que os homens encontraram para dar a impressão de “superioridade” que há tantos anos, teoricamente, foi extinta? Eu não sei, mas deve existir algum estudo antropológico que trate disso. Por que uma mulher nunca passa batida num lugar que tenha vários homens juntos? Maldita mania de auto-afirmação para os amiguinhos.

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Momento exato em que uma mulher passa (imagem borrada para evitar a identificação dos meliantes).

Acredito que todas mulheres bonitas desejam, pelo menos às vezes, a possibilidade de ir comprar algo num posto de gasolina, conversar com o atendente, virar as costas e ele não pensar “Gostoooosa!” e você sair voando sentindo aqueles olhares de "Te como inteira!", como se fosse ser estuprada por aqueles mil homens a sua volta.

Mas sim oferecer um olhar “Que garota engraçada!” (substitua por qualquer outro adjetivo que não envolva sexualidade) quando conversar com ela. Sem cunho sexual, sem segundas intenções partindo de nenhuma das partes.

Ou pelo menos ter a liberdade de passar despercebida, como se fosse um homem indo até lá, sem ninguém notar ou falar nada.

Difícil, se não impossível.

P.S.: Se você acha que vivemos em pé de igualdade, veja isso:


publicado em 22 de Dezembro de 2009, 10:57
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Debora Corrano

Debora Corrano cursa Publicidade e Propaganda, é protetora dos animais e um dia pretende ser beer sommelier e mochileira. Um de seus hábitos preferidos é teorizar sobre o comportamento humano. Também escreve no Le Desordre C’est Moi.


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