É sempre difícil saber como abordar o tema da sexualidade quando está relacionado à criança. Muitos pais ou professores evitam iniciar um diálogo com seus pequenos, com medo de que o tema proposto vá despertar uma curiosidade que deveria permanecer adormecida por mais alguns anos. Parece, sobretudo, que sexualidade não é algo apropriado, nem relacionado à infância.
Talvez, o primeiro passo seja esclarecer que sexualidade não é o ato sexual, mas sim um conceito muito amplo que engloba gênero e comportamento – como o que é ser menino e menina – curiosidades sobre o funcionamento do próprio corpo, orientação sexual, descoberta de sensações, etc.
Por mais que possa parecer estranho as crianças têm sexualidade, e é saudável permitir a elas que explorem as curiosidades, dúvidas e sensações que emanam do próprio corpo, cada qual no seu tempo, e na sua individualidade. No entanto, que fique claro: admitir a manifestação da sexualidade na infância não é, de maneira alguma, dar um argumento que justifique abusos sexuais contra menores, tampouco é dizer que crianças têm qualquer autonomia para praticar essa sexualidade com alguém.
A Raquel Spaziani, pesquisadora na área de psicologia e sexualidade infantil, explica que cada um tem seu tempo, mas que geralmente as crianças começam a ter dúvidas e curiosidades por volta dos cinco, seis anos. Muitas vezes os pais escolhem esperar, porque alguns pensam que é melhor que a criança pergunte primeiro. Outros acham que a escola vai dar conta de falar quando for a hora certa.
Para Raquel não existe um certo ou errado. Alguns pais podem não ter tanto jeito para falar com os filhos e, portanto, podem buscar auxílio na escola, ou com um parente, uma tia, que tenha mais facilidade para conversar sobre o assunto. O importante é que não se ignore essa sexualidade e que se mantenha uma via de diálogo aberta, do contrário, a criança pode ficar vulnerável a uma série de perigos.
De olhos fechados
Na pesquisa desenvolvida por Raquel, sempre que ela perguntava às professoras se as crianças tinham sexualidade, unanimemente, todas diziam que sim e que observam isso todos os dias na escola. Mas quando fazia a mesma pergunta aos pais, eles respondiam: não, as crianças não têm sexualidade, elas são puras.
Muitos pais e mães temem falar com os filhos sobre “de onde vem os bebês”, ou funcionalidades dos órgãos sexuais, porque receiam que, caso o façam, estariam erotizando os filhos antes do tempo. E, veja, quando os pais dizem que as crianças não têm sexualidade, se completa a frase com “não tem porque são puras”.
Na nossa sociedade a sexualidade e qualquer manifestação de prazer ainda é vista como pecado, algo do campo animalesco, bestial e sujo, portanto incompatíveis com a pureza. Nesse ponto, Raquel aponta um paradoxo.
"Entende-se a criança como assexuada, porém vigia-se constantemente a criança para que ela não tenha nenhum comportamento relacionado à sexualidade”
“Colocar a criança numa bolha é a maior ilusão que um pai e uma mãe podem ter pensando para protegê-la de qualquer assunto relacionado à sexualidade.” analisa Raquel. “Hoje as crianças tem muito acesso à informação, e ainda que se tente controlar esse acesso, não se pode isolá-las do convívio com seus pares, que por certo começarão a questionar de onde vem os bebês, pra que servem tais órgãos, etc. “
A criança entrará em contato com tais assuntos inevitavelmente e, se os pais não falarem sobre, provavelmente a educação virá de outros meios. Os meninos, por exemplo, acabam buscando sites, revistas eróticas, e partir destes, eles não aprenderão somente “como se masturbar”, mas devem absorver todo um modelo de “como ser homem” e como exercer essa masculinidade.
A pesquisadora aborda que tão importante como ensinar as crianças sobre o próprio corpo, higiene e proteção, é discutir também os padrões de gênero: “o que é ser homem, o que é ser mulher”. Muitas vezes, o modelo que as crianças enxergam em revistas, televisão ou no convívio com a família, ensina que os meninos não podem chorar, ter sentimentos, se interessar por certas atividades, como culinária, e que as meninas precisam ser mocinhas muito delicadas, pensar mais em cuidar que em construir…
E conversar com os filhos sobre esses modelos, desmistificando certos padrões não é só uma forma de criar crianças modernas, fora da caixinha, é uma forma de evitar que esses padrões sejam causa de infelicidade e ansiedade, porque é isso o que acontece quando a criança não se encaixa nele, ou quando se torna um adulto que é mais condicionado aos seus gostos que realmente interessado neles.
Voltando para os temas relacionados ao corpo, Raquel explica que não é preciso esperar que a criança apareça com a dúvida. Explicar o funcionamento, as diferenças de meninos e meninas ou dar nome às partes, é algo importante para ser falado desde sempre. E se o medo é que, ao falar sobre sexualidade, a criança se torne mais “assanhada” ou passe a se comportar diferente, não é preciso se preocupar.
Raquel explica que quando os pais vão mostrar um livro, por exemplo, que aborde a questão do corpo e do seu funcionamento, e a criança, por sua vez, se debruça sobre aquilo, começa a fazer perguntas, é porque ela já vinha pensando e já estava curiosa sobre o assunto. Caso contrário, ela não vai demostrar interesse num primeiro momento, e se isso acontecer, ao menos ela já vai saber que tem uma via de diálogo, que pode perguntar, ou que terá aquilo para consultar quando a dúvida aparecer.
Se uma criança de 5 anos tem uma dúvida, e esta é respondida de maneira tranquila, logo em seguida a criança já terá perdido interesse no tema e voltará ao que estava fazendo antes. É importante falar sobre o corpo e sobre essas duvidas de maneira natural, sem criar caso.
Reiterando, nenhuma conversa muda instantaneamente uma criança, no entanto fará muita diferença durante seu desenvolvimento.
“Quanto mais se conversa com a criança, mais um adolescente um adulto autônomo ela vai se tornar”
Quando a criança conhece o funcionamento do seu corpo, e dispõe das informações necessárias para desenvolver sua sexualidade em situações íntimas e em segurança, conforme for se tornado uma adolescente, ela tende a se expôr menos a situações de risco, a não tomar decisões impulsivas por curiosidades e a ser menos volúvel à influência dos colegas.
A vulnerabilidade
O diálogo, no entanto, ainda ocupa um papel, que não deveria. Eu adoraria que este não fosse um dos motivos pelos quais os pais deveriam falar com seus filhos, eu adoraria não ter que listar isso, porque não ter de fazê-lo significaria que ‘isto’ não seria uma ameaça para a infância de tantas crianças, mas não é assim. “Isto” a que eu me refiro, são os abusos sexuais cometidos contra menores
Segundo o IBGE, em 2014, foram mais de 25 mil denúncias, uma média de 70 por dia. Estima-se que em 2015 tenham sido 50 denúncias diárias. 34% das vítimas tinham menos de 7 anos, 40% de 8 a 14 anos. No entanto, os dados apontam apenas para os casos que chegaram a ser denunciados. Não dá pra estimar quantos acontecem e nunca vem a tona, ou então, a vítima só fala do acontecido anos depois, quando já adulta e nunca chega a denunciar.
Agrava a situação, o fato de que a maioria dos casos são cometidos por membros da família ou pessoas muito próximas, consideradas de confiança. Além disso, é típico desses casos que o abusador faça ameaças dizendo que se a criança contar não acreditarão e/ou que muitas coisas ruins acontecerão com ela e/ou com pessoas ao redor. Através dessas ameaças, as situações de abusos, infelizmente, tendem a seguir presentes na vida da criança por anos a fio.
Raquel explica seis tópicos que devem ser conversados com os filhos e que previnem situações de abusos:
Passo a passo
1. O corpo é dela
O primeiro passo é ensinar para a criança que o corpo é dela e que ninguém pode tocar sem autorização.
2. Diferencias os toque
Em seguida é preciso mostrar que tem toques que são importantes e outros não. Quando for voltado para saúde ou higiene (por exemplo, um médico que precisa examinar uma criança), isso é importante para saúde dela, então tudo bem.
Toques ruins são quando alguém força um beijo, ou quando toca o corpo dela sem autorização, e não precisa nem ser o orgão genital, qualquer parte.
3. Eliminação do segredo
Talvez essa seja a parte mais importante. É preciso ensinar que qualquer coisa que acontece com a criança, pode ser contada para os pais, para a família, por mais que alguém diga que não.
Também é importante ensinar a diferença entre segredos bons e segredos ruins. É possível dar exemplos para as crianças entenderem a diferença de um e de outro através da maneira como elas se sentem. “Segredos bons, por exemplo, é quando alguém vai fazer uma festa surpresa, e você não pode contar, mas aquilo não é um segredo que trás tristeza, é um segredo feliz. Um segredo ruim é quando dá angústia e te faz mal”
4. Confiar
No entanto, é imprescindível que não se desconfie da criança quando ela contar. Se ela está dizendo é porque aconteceu. É extremamente raro encontrar um caso onde a criança inventou a violência.
5. Suborno e presente
Não é raro que o adulto, seduza, suborne a criança para colocá-la em uma situação de risco ou de abuso. Por isso é importante ensinar a diferença entre suborno e presente mostrando que presente é algo que se dá sem pedir nada em troca, não tem que fazer favor nenhum depois e no suborno sim.
6. Nomear as partes do corpo
É nesse ponto que entra a importância de ensinar a criança, desde muito cedo, os nomes exatos de cada parte do corpo. Ensina-se braço, perna, cabeça, orelha, joelho e não se fala em vagina, vulva, e pênis. É mais dificil para a criança relatar o abuso se ela não sabe como se referir, se ela não sabe dizer o que é aquilo.
Também é importante que os nomes sejam precisos, por exemplo, que a criança saiba que aquilo é um pênis, uma vagina e que ela pode chamar de pipi, de piriquita. Mas que um é um apelido e o outro é um nome. Tanto porque é uma questão de sexualidade, de desmistificar tabus sobre as partes do corpo, porque a vulva e o pênis são partes como qualquer outra, quanto no sentido de prevenção da violência, para que quando uma criança aponte uma denúncia, não reste margem para dúvidas do que aconteceu.
Via de diálogo
A criança jamais será culpada por não ter podido evitar uma violência cometida contra ela. No entanto, se ela notar que alguém próximo tem se comportado de maneira que a deixe desconfortável, e se ela tiver condições de entender que isso não é normal, que ela não tem de ficar em silêncio e que deve contar isso aos pais, muita dor pode ser evitada.
O grande problema de não falar sobre a sexualidade infantil é quando os pais, ainda que não digam nada, dão sinais de que certos assuntos são errados, sujos ou feios, e então a criança passa a evitar fazer perguntas sobre o tema com medo de ser repreendida.
Quando a criança é vítima de um abuso, não é raro que ela se sinta culpada, que tenha medo de contar aos pais e ser muito duramente repreendida por ter feito algo “feio”. Outro grande temor das vítimas, é tomar coragem para contar e não ser levada a sério.
Ainda que os pais não se sintam confortáveis em falar sobre sexo com seus filhos, é preciso que se estabeleça ao menos uma relação de confiança e liberdade, assim a criança saberá que pode contar e perguntar algo aos pais e que eles estarão sempre prontos para ajudar. A Raquel explica que os pais não precisam saber todas as respostas ou saber como lidar com todas as situações.
Como alternativa os responsáveis podem, por exemplo, propor buscar essas respostas junto dos filhos; pedir ajuda e convidar outro membro da família que se sinta mais confortável com o assunto para participar da conversa; recorrer a um educador de confiança para que ela dê algumas instruções, entre outras opções. O que não pode é ignorar a importância do diálogo deixando a criança vulnerável a modelos nocivos e à persuasão de outras fontes.
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O tema de hoje surgiu enquanto eu desenvolvia meu projeto (ainda sem título de TCC). As entrevistas e a pesquisa já são parte dele, que só deve ficar pronto lá pra julho. A ideia é mostrar o desenvolvimento da sexualidade e afetividade em três gerações diferentes e como esse diálogo e os ensinamentos de mãe pra filha influenciam nas histórias da próxima geração.
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