Ei, você aí. Você, com um pênis no meio das pernas. Você é homem, certo?
Certo?
Eu gostaria de te perguntar: de onde vem essa certeza? O que faz de um homem um homem? E o que faz de uma mulher uma mulher?
A primeira resposta costuma ser: o equipamento. O tal pinto. No meio das pernas. Ou a ausência dele, no caso das mulheres. Os médicos e os pais olham o bebê, veem certo penduricalho, marcam um “M” na ficha da criança. Se não tiver penduricalho, marcam “F”. Hoje dá até pra ver os aparatos antes do nascimento, por meio do ultrassom.
Mas, se for assim, que fazer com os transexuais? Por exemplo, João Nery, que fez a primeira cirurgia de troca de sexo para se tornar um homem do Brasil, em 1977. João nasceu Joana, com uma vagina. Mas não se sentia à vontade no próprio corpo. Odiava a menstruação, os seios. Na cirurgia experimental, João teve útero e mamas retiradas e passou a receber tratamento hormonal. Ele não ganhou um pênis: é muito raro para um transhomem ganhar um. Dependendo da técnica, a prótese pode não ter sensibilidade, e a pessoa pode perder a capacidade de sentir orgasmo. Ele contou sua história no livro Erro de Pessoa, de 1985, e no recente Viagem Solitária, de 2011.
Há também o caso inverso, o das transmulheres. Pessoas que nascem com pênis, mas não se sentem homens. Como Léa T., a top model transexual filha do ex-jogador de futebol Toninho Cerezo. Léa, que nasceu Leandro, ainda não fez a cirurgia, mas pretende.
Podemos pensar: OK, essas pessoas nasceram com o corpo errado; elas têm um “distúrbio”, que pode ser corrigido com cirurgia. Mas, se é esse o caso, o que fazer com Buck Angel? Buck nasceu Susan, há 43 anos, nos Estados Unidos. Aos poucos, porém, Susan começou a se transformar em Buck, um transexual FtM (female-to-male, que mudou de mulher para homem, ou, simplesmente, transhomem). Buck nunca fez a cirurgia de troca de sexo. Ele se sente confortável com sua vagina, gosta de usá-la. Buck é um bem-sucedido ator pornô e é um cowboy – poderíamos chamar de “másculo”, na falta de termo melhor. Com uma vagina no meio das pernas.
Um Y a mais, um Y a menos
Outras explicações do que faz um homem ou uma mulher também são biológicas: são os cromossomos, os tais XY. As mulheres têm XX. Diferença de uma letra, coisa à toa. Mas tudo que foi dito acima, sobre transexuais, se aplica aqui também.
Há ainda outros casos. Por exemplo, o dos intersexuais, pessoas que nascem com os dois aparelhos sexuais. Antigamente, eram chamados de hermafroditas. Uma pessoa com cromossomos XX, por exemplo, mas que tem tanto aparelho reprodutor masculino como feminino. Ou pessoa com cromossomos XY, mas que não teve os órgãos externos totalmente desenvolvidos. Pessoas de sexo ambíguo.
E aí tem a explicação hormonal. Homem que é homem tem mais testosterona. Mulher que é mulher tem mais estrógeno e progesterona. Os hormônios são os mesmos – o que varia é a quantidade. Mas é claro que isso também é individual. Uma mulher atleta, por exemplo, pode ter mais testosterona que um homem que não pratica esporte.
Ser homem, então, não está ligado a ter um pinto. Ou próstata. Ou cromossomos XY. Ou mais testosterona. A que está ligado, então?
Roupa de menina
Talvez homem seja aquele que gosta de se vestir como homem. Para as mulheres, a mesma coisa. Mas aí temos os – e as – travestis, e essa ideia também cai por terra.
O que a gente veste, afinal, muda com o tempo. Calça comprida já foi considerada inapropriada para mulheres. Saia ainda é considerada estranha para homens – mas na Escócia existem os kilts, que são parte da tradição do país. E o que aconteceria com um homem que se veste de mulher no Carnaval? Ele torna-se mulher? A mulher que veste terno é homem? E o modelo Andrej Pejic, tão andrógino que desfila tanto para marcas masculinas quanto para marcas femininas?
Link YouTube | Andrej Pejic: eu pegava!
Laerte, @ cartunista, por exemplo, veste-se como mulher. No início, considerava-se crossdresser, travesti. Hoje, essa percepção mudou, e Laerte se identifica, de fato, como mulher. Em geral. De vez em quando vai ao banheiro masculino, de vez em quando ao feminino. Isso cria um problema para quem vai escrever sobre ele/ela: devemos colocar “o” Laerte ou “a” Laerte? (Uma opção é usar linguagem inclusiva, como “@” ou “x” no lugar de “a” ou “o”). Obviamente, não é Laerte que está errad@. É a língua que está.
Homos, héteros, bis, as
Mais uma hipótese: homens são aqueles que gostam de transar com mulheres; mulheres, aquelas que gostam de transar com homens. Você já sabe aonde vou chegar, né? Na homossexualidade. Homens que gostam de homens, mulheres que gostam de mulheres. Não é questão de gênero. A pessoa pode mudar de sexo para se tornar um homem gay, por exemplo. Foi o caso de Adrian Dalton, modelo que nasceu Katherine, com vagina, era lésbica, fez a cirurgia para se tornar homem e hoje se sente atraído por homens.
Claro, ser gay ou hétero não são as únicas opções possíveis. Algumas pessoas são bissexuais. Outras são assexuais (sim, não gostam ou querem saber de sexo, e não tem nada de errado nisso). Outras se recusam a ser chamadas de uma ou outra forma, pois chamar-se de “bissexual” significaria admitir gostar de pessoas dos dois sexos – o que implicaria em concordar com a ideia de que gênero e sexo são binários e ignorar os casos de intersexo, transexualidade etc. E, claro, já vimos que a coisa não é assim tão simples.
Nem mesmo entre as outras espécies é tão simples. Em sua obra Evolution’s Rainbow, a bióloga Joan Roughgarden – que nasceu John – mostra que diversas espécies desafiam a ideia de que, na natureza, a divisão em dois sexos é a única possível.
Existe muito mais diversidade sexual na natureza do que a gente aprendeu nas aulas de biologia. “A divisão do sexo entre fêmea ou macho não é estável nem exclusiva”, diz ela. Muitos peixes, por exemplo, possuem os dois sexos ao mesmo tempo, enquanto outros passam de machos a fêmeas – ou vice-versa – ao longo da vida. Algumas espécies de pássaros têm mais de um tipo de macho, cada um com comportamento diferente.
Caixinhas
Complexo? Pois é. Ninguém disse que era fácil. Estamos falando de gente, afinal.
Nossa sociedade decidiu, em algum momento, dividir as pessoas em dois tipos: homens e mulheres. São caixinhas. A divisão podia ser entre seres altos e baixos, sardentos e lisos, pessoas com manchinha de nascença no joelho e pessoas sem manchinha. A sexualidade seria definida entre quem gosta de pessoas com manchinha e pessoas que não gostam, por exemplo. Em algumas sociedades, a coisa é mais fluida: existem as categorias de “masculino” e “feminino”, mas elas não são fixas. As pessoas podem passar de uma a outra ao longo da vida. Isso foi descrito por vários antropólogos, como Gregory Bateson, que, em sua obra Naven, narra as cerimônias rituais em que membros de uma tribo trocam de gênero. Ou Pierre Clastres, que, em A Sociedade Contra o Estado, fala da tribo brasileira dos guayaki, em que pode-se mudar de gênero ao se trocar o arco, típico dos homens, por um cesto, típico das mulheres. Lá também é possível cair em uma maldição e deixar de ser homem, sem, no entanto, virar mulher. (Os guayaki também são exemplo de tribo poliândrica, em que as mulheres podem ter mais de um marido ou parceiro, mas essa é outra história).
Na nossa sociedade, as caixinhas são mais ou menos fixas. A criança nasce e já se decide qual gênero ela deverá ocupar. E a partir desse gênero, que comportamento deverá assumir. Rosa para elas, azul para eles. Algumas crianças se identificam com a caixinha a que foram destinadas. Como uma mulher que nasce com vagina, sente-se mulher, e gosta de transar com homens. Ou homem que nasce com pinto, sente-se homem, gosta de transar com mulheres. Muitas pessoas, porém, não cabem nessas prateleiras. As pessoas vêm com diversos “equipamentos”, os quais não significam que serão de determinado gênero, e o gênero não significa que ela gostará dessas ou daquelas pessoas. É tudo independente.
Energia masculina e feminina
Ouço falar muito, por exemplo, em “energia masculina” e “energia feminina”. A primeira seria assertiva, ágil, ativa. A segunda seria passiva, generosa, receptiva. Ora, essa é uma perspectiva binária. Sim, existem impulsos mais ativos e mais passivos, mas eu não chamaria isso de “masculino” ou de “feminino”. Desde crianças, as meninas aprendem a refrear sua energia ativa. Os meninos, a brecar sua energia passiva. Qualquer desvio da norma é punido com apelidos e tiração de sarro. A menina que quer subir em árvore é logo ensinada a comportar-se e ficar quieta desenhando, enquanto o irmão é incentivado a correr e aprender a ser menino.
Claro que isso gera conflitos, mesmo entre quem não é gay ou trans. Eu, por exemplo, nasci mulher, com aparelho reprodutor feminino, e me identifico como mulher. Até o momento, sou predominantemente hétero. Mas de vez em quando sinto alguns desconfortos. Quando alguém diz: “mulheres são mais delicadas” – me lembro dos meus estabacos pela casa, desastrada. “Mulheres são suaves” – sempre fui mais assertiva. Mulheres isso, mulheres aquilo. Se ser mulher é ter que caber dentro dessas definições, danou-se, não sou uma.
Por sorte, Margaret Mead vem em meu auxílio. Em 1935, a antropóloga escreveu o clássico Sexo e Temperamento, em que descreve três tribos da Nova Guiné, nas quais os comportamentos das mulheres e dos homens não equivaliam ao que se pensava ser o “essencial” de cada gênero. Havia uma tribo com mulheres agressivas, chefes do lar; outra em que tanto homens quanto mulheres eram agressivos; e uma em que ambos eram delicados, passivos. Ou seja: o que significa ser homem ou mulher é uma construção histórica, social. E muda com o tempo.
Não existe o “essencial” feminino ou masculino. Existe o que é feminino ou masculino conforme o contexto, a sociedade.
Simone de Beauvoir, um dos ícones do feminismo, escreveu:
“Não se nasce mulher; torna-se.”
O mesmo pode ser dito dos homens. A pessoa que nasce com vagina aprende a andar como mulher, a falar como mulher, a se vestir como mulher. Com sorte, quando crescemos, podemos quebrar tudo isso, descobrir o que nos serve, o que não nos serve. Vou fazer unha porque acho divertido, não porque é “coisa de mulher”. O homem tascará um “foda-se” para a sociedade e irá trabalhar meio período para ficar com as crianças.
O papo de cada um
E assim, no fim das contas, não dá pra dizer o que é ser mulher e o que é ser homem. O que vale é a forma como a pessoa se identifica: homem, mulher, gênero indefinido, terceiro gênero. No fundo, novos termos como transgênero ou assexual continuam sendo formas de colocar as pessoas em caixinhas. Aumenta-se o número de caixinhas – não são mais apenas duas -, mas não se elimina a necessidade delas.
Até porque não dá mesmo pra acabar com elas de repente. Como diz uma amiga socióloga, só porque as coisas são culturais não significa que sejam fáceis de mudar. E, enquanto categorias como homem/mulher/gay/hétero existirem, as pessoas continuarão a ser tratadas conforme o lugar onde elas se encaixam. O que faz com que a luta pelos direitos das mulheres, dos gays, dos transgêneros seja fundamental, mesmo que a gente saiba que essas divisões não servem para explicar o comportamento humano.
Talvez, no futuro, não seja preciso colocar seres humanos em caixinhas. Não sei como as pessoas formariam sua identidade sem essas categorias, como elas passariam a enxergar a si próprias se não houvesse essa separação de gênero. Mas, por enquanto, se elas pararem de achar que existe um “papo de homem” e um “papo de mulher”, já estaria de bom tamanho.
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