Em 2017, para ser meu projeto final do curso de Jornalismo, eu decidi pesquisar como que se aprendia sobre sexualidade dentro das famílias, de geração para geração: como os conceitos mudam ao longo do tempo? Como eram os namoricos da época da avó? Como foi na época da mãe? E o que mudou da geração da mãe até a época da filha? Quais eram as regras? Os conselhos?
Queria compartilhar nesse texto, algumas coisas que eu aprendi, não só sobre como nós aprendemos e construímos nossa sexualidade, mas também sobre como nós absorvemos o mundo à nossa volta e como transformamos nossas experiências pessoais em aprendizado, diálogos e conhecimento.
Quando eu me propus a estudar a sexualidade, logo eu tive que aprender que não dá pra separar ela das outras coisas. Não é só sobre o ato. É também sobre a nossa maneira de interagir com nosso corpo, como nós mesmos, com as outras pessoas. É também sobre uma cultura coletiva, que invade a nossa sexualidade, e se entrelaça com a nossa visão própria, com a maneira como nós desfrutamos do nosso corpo e como nós compartilhamos a cama com outras pessoas.
De um tempo pra cá eu tenho me dedicado a estudar a educação sexual. Não aquela palestra na escola que acontece uma vez na vida e dura cerca de duas horas, mas a educação sexual que vem dos nossos ambientes de convívio. Primeiro eu me dediquei a entender a família (essa foi a pesquisa que deu origem ao meu livro) e é sobre essa educação familiar que eu vou falar nesse texto.
Quando eu perguntava para as mães se elas falavam sobre sexo com as suas filhas, elas respondiam algo do tipo “Claro, eu sempre expliquei tudo pra ela: de onde vem os bebês, falei pra usar camisinha, pra fazer com alguém que ela confiasse”. Outras me diziam que não, que nunca tinham falado nada sobre isso com as filhas.
As respostas dessas mães mostram como a nossa sociedade costuma encarar o sexo e o que é preciso falar sobre ele: sexo seria a penetração do homem na mulher, sendo assim, é preciso explicar de onde vem os bebês e como se prevenir de uma gravidez e de doenças. A mãe que já falou sobre isso, falou tudo. A mãe que nunca falou sobre isso, nunca falou nada.
Falando tudo ou nada, você está educando
Quando as pecinhas do quebra-cabeça de histórias entre mãe e filha (neste estudo eu escolhi entrar a fundo na história das mulheres, mas as conclusões podem ser aplicadas para todo mundo, em diversos aspectos da vida) começam a se encaixar, vemos que as coisas ditas sobre sexualidade vão muito além da conversa dos bebês, da camisinha ou da primeira vez.
As interações mais cotidianas, comentários que reprovam uma colega que se “comportou mal”, ou um puxão de orelha por causa de uma palavra usada ou uma pergunta feita, ensinam tanto, ou até mais que uma conversa que tem esse objetivo.
As pequenas coisas que nos mostram, na prática, um certo modelo de comportamento, se entrelaçam com esses diálogos específicos e vão moldando nossa maneira de agir e, também, fazendo com que se desenvolva uma postura crítica. “Porque meu pai me proíbe de fazer coisas que ele permitiria se eu fosse um filho homem?”
Exemplo do que se ensina no dia a dia
Vivendo em uma cidade muito pequena, Dona Maria, lá nos anos 1940, não podia ficar vendo o tempo passar na porta de casa que o pai já mandava ela pra dentro.
Namorou seu marido só por cartas e bilhetinhos. Depois de casados, já com 3 filhas mocinhas, Maria ajudava as garotas a saírem de casa escondidas do pai para irem tomar sorvete na praça. Quando as meninas começaram a namorar, Maria dizia: “não é preciso ter pressa para casar. Juntem as tralhas primeiro, para ver. Se não der certo, separa. Se der certo, pronto, o casamento já está consagrado pelo dia a dia.”
A mais nova das filhas de Maria, a Lurdes, para a escândalo da cidade, primeiro se chegou em um “escureba” – como diziam naquela época – depois se casou, mas só engravidou depois dos 33, quando já estava divorciada. Hoje, Lurdes, continua chocando a cidade quando fala com orgulho da sua filha Larissa e das namoradas da garota.
Veja, o que a Maria ensinou para a Lurdes sobre como se relacionar, como viver sua sexualidade, vai muito além de uma conversa sobre sexo que elas nunca tiveram.
O ensino da sexualidade tem tudo com o que aprendemos sobre o tipo de pessoa devemos ser (e essa definição vai mudar muito dependendo da genitália com as quais nascemos, da cor, e da classe social).
O processo não é natural, mas é cotidiano
Aprendemos com nossos pais e com o nosso grupo cultural, de uma maneira cotidiana, dentro de lógicas tão pequenas, que podem ser tão mais cruéis quanto mais sutis – conforme umas ganham panelinhas e outros carrinhos, conforme um pai fala pra sua filha entrar que lugar de mocinha não é rua, e fala para o filho que homem não chora.
Inclusive, nem todas as coisas que nos encaixam nas caixinhas “Feminino” e “Masculino” vão trazer infelicidade para a vida das pessoas. Por causa do jogo de prós e contra, a generalização que cria modelos de como as pessoas devem ser, não parece exatamente um problema e, justamente porque aprendemos essas coisas de maneira muito sutil, que nem vemos como elas acontecem.
Parece que tudo é parte de uma personalidade pessoal, que nasceu com a pessoa, ou com um grupo de pessoas. “É natural que as mulheres sejam vaidosas a maioria é, pode ver.”
Foucault, por exemplo, questiona “O poder seria aceito se fosse inteiramente cínico?”
O pai da Lurdes disse claramente que ela, por ser mulher, não precisava estudar tanto, mas que o irmão dela sim, ele era o homem da família. Dito isso assim tão claramente, Lurdes questionou e não aceitou. Foi estudar. Para Beatriz, ninguém disse que ela não poderia se masturbar, mas ela também jamais ouviu alguém falando sobre aquela coisa. Ela nem sabia que nome dar para aquilo e tinha certeza que era pecado. Aos 13 anos ela passava horas ajoelhada no milho pedindo perdão para Deus e achando que tudo de ruim que acontecia na vida dela era castigo por aquele pecado.
É impossível fugir da sociedade em que se vive. É impossível não ser fruto, em alguma medida, desses ensinamentos subliminares que vão formando parte da nossa personalidade. Mas é possível questioná-los. Precisamos estar cientes do processo para que a gente possa criticar as nossas próprias atitudes, conceitos, valores, e para que a gente possa, também, entender melhor as outras pessoas, e entender que, para além do que se vê superficialmente, elas também fazem parte de um processo de educação social
Nossos pais são e não são culpados
Quando falamos das construções de gênero e de como isso cresce com a gente, pode parece que existe uma certa culpa sobre os pais, as escolas, a mídia, por serem essas entidades de poder que reprimem, que enclausuram o indivíduo dentro de um papel muito fixo.
O processo de escrever o livro me mostrou que não é bem assim. Esse aprendizado familiar é uma constante negociação que vai se flexibilizando ao longo do tempo, conforme vão se articulando com as novas necessidades. Veja, se Maria não podia passar tempo demais olhando pela porta quando era garota, ou se tornar mãe, acobertava as filhas para que elas pudessem sair de casa sozinhas e passear.
Os pais não são apenas os responsáveis por transmitir conservadorismos: muitos deles o fazem porque são parte dos conservadorismo que lhes foi ensinado. Ele também são responsáveis por abrirem novas liberdades a seus filhos, ainda que essas liberdades possam ser insuficientes para a nova geração.
Os ensinamentos não seguem uma linha unidirecional
Já falamos aqui sobre os pais terem um papel muito forte na produção dos valores passados para os filhos, no entanto os filhos também podem exercer um papel extremamente importante na formação do pensamento dos pais (seja sobre sexualidade, política, ou qualquer outro assunto).
A Maria das Dores é mãe e avó de outra família, que também aparece no livro, ela nasceu em uma fazenda em Maceió e, durante toda sua vida sexual, nunca usou camisinha. Quando as duas filhas eram crianças ela comprou um pacote e deixava na sala para que as meninas soubessem que precisam usar.
Anos depois, após uma das traições do seu Zé, foram as filhas que divorciaram a mãe, botando o pai para fora de casa. Também foram as duas filhas que incentivaram a mãe, que já contava mais de 60 anos, ter encontros casuais e a ensinaram a usar camisinha.
Duas irmãs: Mesma criação, resultados diferentes
Como a pesquisadora em psicologia e educação Raquel Spaziani já tinha declarado na entrevista que publicamos aqui no PdH em 2017, nunca se pode dizer que um tipo de educação X vai gerar “isso ou aquilo” na vida de uma pessoa. Afinal, dois irmãos podem ter tido exatamente a mesma base educacional e crescer com valores e conceitos diferentes.
Isso aparece diversas vezes nas histórias das famílias que entraram para o livro, afinal de contas, a educação (seja para a sexualidade, ou pensando em cidadania religião) é uma forma de dar base. Os ensinamentos (salvo exceções) não vão funcionar como uma doutrina e sim como uma base sobre a qual a pessoa, desde muito cedo, vai edificar seus próprios conceitos e valores de acordo, também, com suas experiências pessoais.
Ensinar é trocar
Nessa trajetória, acho que o aprendizado mais importante que fica é que ensinar é trocar. Quando queremos ensinar algo para alguém, precisamos estar abertos para entender como funciona a lógica daquela pessoa, e só entenderemos a outra pessoa, quando estivermos dispostos a entender que ela não é igual a mim e nem tem de ser.
Ensinar é dialogar, é entender o outro, é ouvir, é passar um conhecimento enquanto disposto a aprender com aquela pessoa para quem se ensina, e estando ciente de que ela pode fazer uso do seu ensinamento da forma dela, que também não precisa ser igual a sua intenção inicial.
Não tem hora certa, nem resposta certa
O tema da sexualidade não vem separado de todas as outras coisas, não pode ser ensinado em apenas uma aula com classificação indicativa e hora para começar. Isso não significa que essa atividade seja dispensável, mas o contrário, é preciso que isso esteja presente em mais momentos da vida, e que esse espaço educacional voltado para a sexualidade esteja aberto a críticas, a propostas, a responder novas perguntas a se adaptar conforme as necessidades dos alunos envolvidos, se tornando mais do que um espaço para apresentar respostas padrões e generalizadas.
Pais e educadores precisam estar preparados para lidar com os pequenos temas que vão surgindo ao longo da vida do filho: o primeiro beijo, a descoberta da masturbação, a relação com o pornô, os complexos diante de não ter um corpo ideal, as inseguranças da primeira vez, do primeiro relacionamento. Mas estar preparado não significa saber todas as respostas, significa estar aberto a entender a questão de quem te pergunta, e estar disposto a ir junto a ele atrás de respostas (no plural, porque muitas vezes não haverá uma só).
E vice e versa. Todo esse processo de construção em conjunto se beneficia muito quando os filhos também se abrem a seus pais. A maternidade e paternidade, a terceira idade, nenhuma dessas nomenclaturas significa que a pessoa está congelada num estado adulto definido e imutável. Há um mês atrás conheci um homem que, depois anos de casamento, com os dois filhos homens já crescidos, se entendeu gay e decidiu assumir essa vivência. Para ele, contar para os filhos foi a parte mais difícil. A série Transparent também mostrou como foi para um pai de mais de 60 anos se assumir transsexual.
O livro que começou toda essa história
De toda essa pesquisa, nasceu o livro Amulherar-se, que conta a história de 9 mulheres de quatro famílias diferentes. Focando nos aspectos da sexualidade e de tudo aquilo que é “tornar-se” mulher, o livro passa pela vida dessas famílias e mostra como a trajetória de cada uma delas foi mudando com o tempo, como uma passa a ensinar a outra, como os medos e os valores se transformam de geração para geração, como o contexto muda quando algumas delas saem de cidades menores para cidades maiores, etc.
Mais do que a trajetória da sexualidade, o livro conta histórias de vidas incríveis, vida essa que pertence a mulheres muito reais e, porque não dizer, comuns.
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