Começo hoje uma série de artigos contra lugares comuns, clichês, mitos, chavões, mal-entendidos, equívocos, crenças, ideologias, ilusões, preconceitos…
A ideia é treinar a mente como se fosse um músculo, desenvolver nitidez e precisão no olhar, aprender a pensar até o fim. E então não mais ser papagaio de discursos e falas cuja origem e finalidade nos são desconhecidas.
Eis, justamente, o motor de uma ideologia ou preconceito: impregnar o outro como um vírus e se ocultar durante o processo, deixando falas e ações surgirem como se estivessem sendo produzidas pela pessoa, não pela ideologia. A própria vítima diz “Essa é minha opinião” ou “É nisso que eu acredito”, sendo que aquilo é tudo menos uma visão pessoal.
Sem combater esse processo sutil de servidão e sequestro, não vamos muito longe em nossa busca saco-roxo por liberdade e autonomia.
Começamos mirando em toda uma cultura de sexo de revista que relaciona Kama Sutra a posições sexuais e Tantra (tema do próximo post) a sexo prolongado.
Kama Sutra ilustrado?
O Kama Sutra é um daqueles livros (cuja quantidade infelizmente está aumentando) dos quais todo mundo fala, mas ninguém lê. E se você já leu, são grandes as chances de você não ter lido o original e sim um manual qualquer de sexo intitulado “Kama Sutra do Sexo Oral”, por exemplo.
Toda vez que retratamos o Kama Sutra como uma coletânea ilustrada de posições sexuais, esquecemos completamente que o Kama Sutra original não tinha imagem alguma e que mais da metade da obra não fala de sexo, mas de comportamento.
Muito além da cama
Kama, em sânscrito, significa desejo, prazer, e se refere ao corpo e seu universo sensorial, incluindo erotismo e estética em geral. No conjunto de visões que chamamos erroneamente de Hinduísmo, kama é um dos objetivos de um homem na vida. Os outros são artha, trabalho e riqueza; dharma, sabedoria e prática de virtudes; e moksha, iluminação.
Dentre esses quatro objetivos na vida de um homem, kama é considerado o mais inferior. Ser um homem virtuoso é a maior das aspirações mundanas e atingir a liberação de nossa experiência cíclica de insatisfação/satisfação é o objetivo último.
Ou seja, de toda uma cultura riquíssima em lógica, matemática, poesia e filosofia, escolhemos valorizar uma obra sobre sexo e relacionamentos. 😉 Os poderosos Upanixades, por exemplo, passam despercebidos pela maioria das pessoas. Neles reside uma das expressões mais subversivas ao cristianismo convencional: “Tat Tvam Asi” (“Aquele és tu”).
A grande sacada do Kama Sutra é mostrar que kama pode ser praticado e explorado sem prejudicar as práticas de artha e dharma, como parte do caminho para a liberação, moksha – algo completamente descartado por nossa apropriação cotidiana da obra e distorcido por quem se utiliza desse mesmo discurso para justificar sua suposta prática de “sexo tântrico” (como veremos aqui em breve).
O que é sutra?
Sutra, também em sânscrito, quer dizer linha ou fio. O radical deu origem ao verbo sew: costurar ou tecer, em inglês.
Em obras como o Kama Sutra, compilação de antigos conhecimentos e tratados, de Vatsyayana, e o clássico Yoga Sutra, de Patanjali, sutras são como aforismos, ainda que em forma de prosa. Já na tradição budista, os sutras são como relatos e transcrições dos diálogos de Buda, assim como aconteceu na tradição ocidental com Platão, com a diferença que Buda era um dos interlocutores.
Portanto, ignore quando ler por aí que “sutra = manual ou guia”. Se você já sabe o que fazer na cama com uma mulher, sugiro outros sutras muito mais importantes, como o Surangama e o Prajnaparamita.
Sem posições sexuais
Se ainda assim abrirmos o Kama Sutra com a intenção de aprender algo sobre sexo, em vez de decorar posições sexuais, deveríamos focar na dinâmica sexual, como os tipos de tapas e sons correspondentes que a obra descreve. A ideia do sexo como um momento para o casal explorar extremos e superar obstáculos parece que se perdeu em uma cultura que define sexo como penetração.
Infelizmente, o problema não é apenas cognitivo ou teórico: nossa visão de sexo condiciona nossa prática. Visão estreita, prática meia-boca.
Depois dos tipos de tapas, achei um trecho excelente:
“Such passionate actions and amorous gesticulations or movements, which arise on the spur of the moment, and during sexual intercourse, cannot be defined, and are as irregular as dreams. A horse having once attained the fifth degree of motion goes on with blind speed, regardless of pits, ditches, and posts in his way; and in the same manner a loving pair become blind with passion in the heat of congress, and go on with great impetuosity, paying not the least regard to excess.”
Outras leituras possíveis
Podemos aprender também com a motivação de quem compilou esses saberes e técnicas.
Na introdução do Ananda Ranga, um livro parecido com o Kama Sutra, encontramos uma crítica que se aplica muito bem aos homens atuais:
“they do not give them plenary contentment, nor do they themselves thoroughly enjoy their charms. The reason of which is, that they are purely ignorant of the Scripture of Cupid, the Kama Shastra; and, despising the difference between the several kinds of women, they regard them only in an animal point of view. Such men must be looked upon as foolish and unintelligent; and this book is composed with the object of preventing lives and loves being wasted in similar manner.”
Homens que não oferecem plena satisfação às mulheres, que não apreciam e não desfrutam plenamente de seus charmes, que tratam suas parceiras como animais (ou objetos), que desperdiçam amores e vidas… É, isso é coisa do passado.
Eu também gosto de ler essas obras antigas (o Kama Sutra surgiu por volta do séc. II, publicado no Ocidente apenas em 1884) de modo lúdico. Junto com as besteiras, há muita coisa engraçada e verdadeira.
Por exemplo, num trecho do Ananda Ranga, estão descritos os momentos em que as mulheres estão mais fáceis, soltas e abertas ao sexo. Um deles é durante tempestades e trovões…
Em tempo: quer ler uma das melhores traduções para o inglês? Aqui está, dentro do projeto Gutenberg. Kama Sutra em .TXT é o que há.
Destrua você também
Eu não vou falar mais do Kama Sutra, não apenas porque eu nunca o li na íntegra, mas porque a intenção dessa série “Metralhando mitos e clichês” é menos aprender e mais desaprender.
Explicar o que não é, criando abertura e espaço para nos relacionarmos aos poucos com que é. Em vez de colecionar mais informações, vamos nos livrar do lixo que aceitamos e reproduzimos diariamente.
Se tiver sugestões de temas mal compreendidos e ideias clichês, por favor envie para gitti arroba papodehomem.com.br
Obrigado e um abraço!
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