Ser desejada me excita. Naturalmente, não estou falando de cantadas baratas na rua, que são mais expressão de poder do que de desejo, mas de apetite sexual legítimo, complexo. O desejo que gera uma conexão um a um, que pode ser apenas física, mas nunca superficial. Não é linha de produção, é algo que te individualiza aos olhos do outro: te torna a única ou o único capaz de satisfazê-lo.

Talvez por isso, eu fetichizasse um pouco, secretamente, as mulheres que vendem sua sensualidade – ao final de oito meses de apuração, tenho até vergonha de admitir isso. Mas a primeira vez em que fui a um prostíbulo, na baixa Augusta, em São Paulo, senti um medo enorme. Fiquei achando que, ao entrar ali com meu punhadinho de parceiros sexuais na cabeça, as prostitutas me fariam sentir menos mulher.

Fiquei achando que elas olhariam com pena para meu andar pouco sensual e minha incapacidade de sedução intencional. Que ririam baixinho de minha beleza e juventude desperdiçadas.

Tive até medo de encará-las. Fiquei foi olhando os homens, alcoolizados, de corpos deselegantes, de papo desinteressante e aparência pobre. Pareciam mais querer conversar com as jovens do que correr para os fundos e se meter entre suas pernas. Parecia que eles ansiavam por um arremedo de conquista – cuja prova seria um sorriso ou um desconto generoso.

As mulheres que eles cortejavam estavam massacradas pelo tédio. Não eram as deusas da luxúria que eu havia imaginado.

Uma senhora desdentada aproximou-se do meu grupo de amigas e sugeriu que arrecadássemos R$10 de cada para pagar por um strip-tease que seria “uma coisa linda que até poderíamos fotografar”. Com dez a mais ela permitiria registro em close up das partes íntimas da moça. Rimos com vergonha de não termos explorado tanto assim nossa sexualidade e recusamos gentilmente a oferta.

Os homens continuavam a papear com as mulheres e, pela uma hora que fiquei ali, não vi ninguém sair para o fundinho escuro. Um deles, inclusive, foi embora satisfeito após ganhar a atenção de uma das mulheres por uma hora inteira. (Teria financiado o papo ou a casa levaria o lucro na venda das bebidas que ele pagava pra ela?)

Desde então, fiquei achando os homens uns pobres coitados cujo gozo no flerte era tão simplório, rápido e pouco exigente quanto o gozo na cama. Passei a ver as prostitutas como um tipo de freiras do submundo, caridosas dessa gente desajustada que não sabe se amar ou amar ao outro. Que mal sabe dialogar, quem diria cortejar. Que não sabe que lindo é ser desejado antes do sexo.

Um ano mais tarde, morando em Washington D.C., nos Estados Unidos, eu resolvi me candidatar a uma vaga no strip club de elite da cidade.

Meu objetivo era ser stripper por algum período para poder fazer observações em primeira pessoa para esta reportagem. Ser uma espécie de jornalista infiltrada. Queria simular um cenário ideal: um “clube de cavalheiros” com alvará de funcionamento, saídas de incêndio, higiene, na cidade mais poderosa do mundo. Queria entender na pele se, afinal, existe um ambiente que poderíamos almejar para todas as mulheres que decidissem trabalhar com o sexo.

Fiz meses de dietas e exercícios e mandei minhas fotos sensuais para a seleção. E fui rejeitada. Sim: o melhor que eu podia fazer não era o suficiente pra ser stripper.

E eu me senti muito, muito feia. Imagino a rejeição que strippers e prostitutas sentem todos os dias quando um cliente recusa sua abordagem. Todos. Os. Dias.

Sob a luz de neon do “Camelot Showbar”, autodenominado um “clube da cavalheiros que oferece um ambiente de classe, mas descontraído”, eu descobri o tamanho do meu papelão. Eu jamais poderia ser uma stripper ali. Havia um verdadeiro mercado para admirar o corpo feminino na capital americana e a clientela exigia padrões de capa de revista – igualando-se, inclusive, aos corpos que eu imaginei só serem possíveis com Photoshop.

As garçonetes, no entanto, tinham tipos físicos similares ao meu – e as barriguinhas salientes bem controladas por espartilhos apertadíssimos que dariam inveja na corte de Maria Antonieta. Elas também vendiam sua sensualidade, não se engane. Anotavam pedidos com decotes enfiados no rosto dos clientes na expectativa de gorjetas mais generosas. Às vezes, em suas lingeries, até roubavam a atenção das dançarinas de nu completo e vaginas ostentosas.

As strippers se revezavam no palco com a velocidade de uma linha de produção, em turnos de três músicas em que sutiã e calcinha tinham que sair, as vaginas bem depiladas tinham que ser escancaradas e a bunda rebolada no rosto dos clientes por gorjetas.

Stripclub Camelot, em Washington D.C., EUA. Foto: Reprodução

Eram muito boas no que faziam – às vezes eu até via uma faísca nos olhos delas, uma satisfação por perceberem que nós, da audiência, reconhecíamos o seu talento. Seduzir é, sim, um saber, como defende Amara Moira, uma profissional do sexo que eu admiro muito por sua inteligência afiada. Um que eu não tenho, por exemplo. Mas, na maioria delas, a expressão era mesmo de indiferença.

Os homens também desempenhavam seus papéis. Eles se dirigiam aos amigos para fazer demonstrações de uma suposta masculinidade que envolvia desprezar o objeto sexual em sua frente. Enquanto elas escancaravam as pernas, eles jogavam notas de um dólar para o ar, com o desprezo e a potência de uma ejaculação de filme pornô de mau gosto.

Um deles teve a audácia de apalpar a stripper e, depois dela dizer que toques não eram permitidos, enfiou uma nota de um dólar em seu cu. Cu mesmo, não ânus, porque ele claramente a via como algo escatológico e lascivo. Algo menos humano.

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O segurança reagiu apenas com uma bronquinha educada, depois da qual os rapazes se retiraram. E a moça seguiu fazendo o que fazia até o fim de suas músicas, como se aquilo fosse algo corriqueiro.

Seriam aqueles maus clientes ou ser cliente sexual era mau em si? A sociedade devia buscar educar os clientes para serem melhores, menos machistas, ou educar os homens para não pagarem por sexo?

A mulher que estava ali importava tão pouco que o gerente ou a gerente do negócio percebeu que a alta rotatividade era a única forma de manter o interesse dos clientes vivo. Nada daquilo era sobre desejo, era sobre poder. O que interessava ali, na verdade, era o próprio arquétipo de masculinidade.

Era um templo de adoração ao macho alfa, por outros machos alfas, de que as mulheres participavam para supostamente lembrá-los de sua “superioridade”.

Mais tarde, uma linda stripper negra de olhos verdes me segredou, os dedinhos brincando no copo do bourbon caríssimo pago por um dos clientes regulares: “A verdade é que, às vezes, eles acham que tiram vantagem da gente. Mas eu faço até dois mil dólares numa noite. Daqui de onde estou observando a situação, quem está usando alguém sou eu.”

Na nossa mesa, dois sul africanos brancos de meia idade, alianças enfiadas nos dedos, balbuciam em vozes alcoolizadas o que acreditam ser elogios. Um deles, acreditando que eu fosse uma stripper em dia de folga, propõe:

— Essa mulher está com seios expostos na minha frente, mas não consigo parar de olhar os seus, tentando imaginar como são por trás da sua blusa fina – e olha para eles de um jeito que me faz encolher o peito e cruzar os braços. Arrebata: Vem pra casa comigo e vou te fazer gozar mais vezes do que já gozou na vida!

— Fico me perguntando o que sua esposa acharia de tal proposta…

— Minha esposa não acha nada do que não sabe.

E o amigo, ainda mais tomado pelo álcool que o outro, nos interrompe:

— Aí embaixo, você é depiladinha assim como ela? – termina a frase com um arroto e, com ele, morre meu último fetiche por ser desejada por dinheiro.

De volta ao Brasil, fui fazer ponto com algumas travestis. Não concretizei nenhum programa – não estava confortável com isso – mas cheguei a negociar com clientes, abordá-los.

Nunca senti tanto medo na vida. Era um mundo de violência e morte, frio e tédio. Conto mais sobre isso nesta reportagem da série.

Eu havia entrado em curto circuito: afinal, minhas convicções feministas sempre ditaram que o corpo pertence à mulher e cabe só a ela decidir o que fazer dele. Se ela decidir alugá-lo para o prazer alheio, não caberia a mim, ou a qualquer outra pessoa, achar isso elevado ou degradante.

Por outro lado, eu me sentia diminuída enquanto mulher por aquele espetáculo. Eu me sentia revoltada por aquelas ejaculações em forma de notas de dólar e o cu cheio de grana era também o meu.

Era madrugada alta, mas tomei a liberdade de mandar uma mensagem para Letícia Bahia, minha colega aqui n’AzMina, mas principalmente uma amiga cujas reflexões sempre me acrescentam. Contei a ela sobre tudo que havia sentido. Na manhã seguinte, ela mandou a resposta:

“O que você sente não precisa, em absoluto, ser coerente com o que você pensa. Pelo contrário: suas convicções teóricas definem o que você vai defender para o mundo, que projetos de lei vai aprovar ou não. Se essas decisões, que valem para todo mundo, são balizadas pelas suas experiências individuais, você é uma caga-regra. Para pensar o mundo a gente olha pro todo, faz pesquisa, mede estatísticas, corre atrás da maior amostra que for possível. E, sobretudo, faz o mais difícil, que é reconhecer nossas incoerências internas.”

Sem saber, minha amiga ditara os rumos desta investigação jornalística. E decidi assim: nunca saberia se as prostitutas eram freiras do submundo ou vítimas de uma sociedade machista – desculpem minha tendência ao romantismo em ambos os extremos. No fundo, a realidade está mesmo nem aqui nem ali e não tem nada de romântica.

Mudei de ideia umas trezentas vezes enquanto apurava esta reportagem e ainda não cheguei numa conclusão. E nem preciso. Nem você, talvez – a não ser que esteja pensando em entrar pro ramo.

Por isso, esta série busca avaliar os impactos que cada legislação e situação têm na vida dessas mulheres e dar voz a elas. Tentei muito fazer com que ser contra ou a favor não entrasse na régua. Se falhei na missão peço perdão: como ser humano é impossível ficar totalmente desnuda de quem se é. Este é um fetiche que ainda mantenho, mas lamento ter sido rejeitada pra esse tipo de strip-tease também.

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Nota do editor: O PdH republica, sempre na primeira quarta-feira do mês, conteúdo elaborado pela Revista AzMina. Ela é online, gratuita e disponibiliza um jornalismo independente, com foco em redes sociais e interação constante com as leitoras e leitores. 

Os principais propósitos do PapoDeHomem ao trazer esse tipo de conteúdo são aproximar homens e mulheres de assuntos comuns a ambos, furar bolhas e amplificar debates. 

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