Somos todos "mulher de malandro"?

“Não se permita ser enganado com o pensamento de que o jeito que as coisas são é o jeito que o mundo precisa funcionar.” – Charlie Kaufman

Se fôssemos atacados por um lapso de lucidez e bom humor, nos apresentaríamos tal como nas tiras do André Dahmer e reconheceríamos que passamos anos desenvolvendo habilidades e estamos prontos para fazer o que quer que nos peçam com elas, sem questionar nem mesmo qual propósito estamos servindo.

Se fôssemos mesmo sinceros, já chegaríamos admitindo de cara que estamos consumindo nosso tempo fazendo todo tipo de bruxarias para sermos aceitos, para fazer com que os outros gostem de nós, para sustentarmos status usando os mais diversos instrumentos.

Com um pouco mais de clareza, reconheceríamos que essas habilidades são tão preciosas como super-poderes e, talvez, conseguíssemos nos enxergar como verdadeiros xamãs, capazes de operar transformações em tudo o que pudermos tocar.

Talvez, logo de cara, deixaríamos clara a nossa disposição para sofrer, apanhar e sermos torturados desde que tenhamos, regularmente, uma dose homeopática de prazer, alívio e satisfação.

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Estamos cercados de pessoas com super-poderes

“Eu acredito que um artista ou escritor são o mais perto que você poderia chamar de um xamã no mundo contemporâneo. Creio que toda cultura deve ter surgido de um culto. Originalmente, todas as facetas de nossa cultura, sejam as ciências ou as artes, eram territórios dos xamãs. O fato, nos dias atuais, é que este poder mágico se degenerou ao nível de entretenimento barato e manipulação. É, eu penso, uma tragédia.
Atualmente, quem usa o xamanismo e a magia para dar forma à nossa cultura são publicitários. Em lugar de despertar as pessoas, o xamanismo é usado como um opiáceo, para tranquilizar as pessoas, para fazê-las mais manipuláveis. A sua caixa mágica da televisão, como suas palavras mágicas, seus slogans, pode fazer com que todos no país pensem nas mesmas palavras e tenham os mesmos pensamentos banais exatamente no mesmo momento.” – Alan Moore

Uma atriz da novela da Globo é alguém que passou a vida inteira treinando a capacidade de gerar diferentes emoções e paisagens mentais nas pessoas apenas com a fala e o corpo. Eles, os verdadeiros atores, são tão hábeis nisso que conseguem fazer você sorrir apenas olhando nos seus olhos e se colocando em um tipo de postura específica.

Há pessoas que sabem manipular cores e formas para fazê-lo sentir desejo. Outros manipulam sons que o fazem sentir-se triste, melancólico, eufórico ou mesmo apaixonado. Há quem consiga posicionar palavras de forma a fazê-lo se sentir preparado para a guerra, disposto a entrar em alguma grande batalha, a votar em alguém que sequer ouviu falar para representá-lo por anos ou simplesmente para manipulá-lo a colocar as mãos no bolso e tirar o dinheiro que você demorou algumas horas do seu dia para conseguir.

Se duvida da existência desses poderes, observe como os repórteres ao redor de uma celebridade com a habilidade bem lapidada se curvam ligeiramente enquanto fazem o seu trabalho. Note como você mesmo sente o impulso quase insuperável de assistir ao novo filme do Batman, por exemplo. Veja como, literalmente, milhões de pessoas ao mesmo tempo param para assistir ao último capítulo da novela.

Nossa alucinação coletiva

O ego se mantém ocupado tentando construir um muro ao redor de si mesmo, para desligar-se do “outro”. Então, claro, havendo criado essa barreira, imediatamente o ego também quer se comunicar com o outro, que agora percebe como ‘fora’ ou não parte de si mesmo.” –Trungpa

Não faz sentido nenhum. Ainda estamos no caminho de realmente compreender, mas estrelas da música, atores da Globo, capas da Playboy, mulheres vestidas de coelhinhas, repórteres subservientes, fotógrafos puxa-sacos, pessoas controlando o acesso de outros a essas figuras, o uso instrumental de seres humanos para atender a coisa nenhuma.

Loucura. É tudo loucura.

Só alimentamos todo esse circo por que temos esperança de um dia estar ali, no mesmo lugar, sendo bajulados, reconhecidos como pontos fora da curva. Queremos ter alguma coisa lá fora que valide o nosso desejo de sermos especiais.

Aceitamos a existência e reificação desse processo todos os dias porque nos preocupamos diariamente com a forma como seremos vistos muito mais do que gostaríamos de admitir para nós mesmos. Nós estamos famintos e, como cães maltratados, comemos nas mãos de quem nos tortura.

Link Youtube | Esta é a nossa tragédia. Veja como somos bons em apresentá-la em vídeos bonitos com uma trilha sonora daora

Nós sempre temos uma boa razão para fazer o que fazemos

Pessoas matam por uma boa razão. Se você perguntar a um assassino, há um bom motivo para ele ter feito o que fez – se é coerente ou aceitável, é outra coisa. O lance é que nós não somos diferentes. Sofremos e causamos os mais diversos sofrimentos em diferentes escalas, sempre por uma boa razão.

Não é raro ouvirmos de um companheiro de trabalho “fiz isso, pois se não fizesse, quem ia se foder era eu.” E as explicações se estendem, alcançam a mensalidade da faculdade, as contas em casa, a necessidade de se alimentar, ir à academia, pagar o plano de saúde, ir ao cinema, ver bandas de rock em estádios, peças de teatro, dança, mágica, etc.

Link Youtube | “Peguem esse novo Bob Dylan e usem-no. Usem o novo Bob Dylan até quando ele durar”

Usamos o salário e tudo o que podemos comprar com ele como justificativa para o fato de que esquecemos todos os dias o por quê de fazermos o que fazemos. Infelizmente, tentando maquiar a nossa perda de tempo, só conseguimos perder ainda mais tempo, nos alimentando com o que quer que surja na nossa frente em forma de cores, sons, formas, pixels, sempre retornando ao mesmo ponto, como hamsters naquelas rodas para exercícios.

A nossa boa razão é sempre a boa razão de um ponto de vista específico: o nosso próprio. Queremos garantir que vamos ter nossos pequenos prazeres. Fazemos esforço e sofremos para sustentá-los, pois não conhecemos outra forma de fazer brotar energia e ânimo.

Nós não vamos longe se continuarmos apertando o botãozinho da endorfina para tentar fazer tudo ficar bem.

Não há inimigos a combater

"O que eu estou tentando expressar – o que eu gostaria de expressar – é a noção de que, sendo honestos, se pensarmos e formos atentos à existência de outros seres vivos, uma mudança pode começar a ocorrer na forma como pensamos em nós mesmos e no mundo, e em nós mesmos no mundo. Nós não somos a audiência passiva para este grande e confuso jogo de poder." –Charlie Kaufman

A maior atrocidade que poderíamos cometer depois de levantar estes pontos, é nos posicionarmos como vítimas de um sistema todo-poderoso lá fora. Muito menos deveríamos culpar uns aos outros, tentando dar forma ao inimigo que nos oprime.

Nós não somos vítimas passivas, não estamos presos. Temos de reconhecer nossa responsabilidade: não somos obrigados a operar da forma como habitualmente fazemos. Somos parte do processo, somos parafusos, engrenagens, motores, alavancas, rodas dentadas. Estamos nisso desde o começo, planejando, fazendo contribuições regulares para a manutenção desse jogo.

Ao invés de começar uma guerra, poderíamos simplesmente incluir o outro e usar nossas habilidades em contextos que não nossos velhos joguinhos pessoais. Mesmo que não saíssemos dos lugares onde estamos, mesmo seguindo as mesmas profissões e fazendo as mesmas coisas, só essa pequena troca no chaveamento interno já nos tornaria muito úteis em sentidos bem mais profundos e verdadeiros.

* * *

Nota do Editor: Escrevi este texto usando exemplos da indústria do entretenimento, da arte, da cultura e do design pelo único motivo de ser o ambiente profissional onde estou.

Porém, tenho quase certeza de que aqui deve ter advogados, arquitetos, engenheiros, juízes, economistas, médicos, professores, atletas, militares, policiais, bombeiros, prostitutas, mecânicos, metalúrgicos, açougueiros, padeiros, eletricistas, artesãos, vendedores e todo tipo de profissionais que talvez questionem o sentido de serem obrigados a girar rodas que não causam benefício algum.

Dedico este texto a todos estes profissionais e que todos possamos nos libertar da neurose coletiva para encontrarmos sentido, alegria e energia agindo em benefício de cada vez mais seres.


publicado em 20 de Outubro de 2012, 23:22
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Luciano Ribeiro

Cantor, guitarrista, compositor e editor do PapodeHomem nas horas vagas. Você pode assistir no Youtube, ouvir no Spotify e ler no Luri.me. Quer ser seu amigo no Instagram.


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