Quando nadar é uma questão de vida ou morte | Mais que um jogo #9 olímpica

Yusra Mardini é uma refugiada síria que participou dos Jogos Olímpicos, mas as braçadas mais importantes de sua vida foram outras...

Presumir que alguém que criou sua própria coluna de esportes gosta das Olimpíadas parece bastante razoável. Igualmente, não é muito difícil imaginar quais motivos fazem dessa competição tão interessante para o mundo. Para alguém como eu, então, moleza. Basta um palpite ou outro e você chega lá.

Por isso, motivo foi algo que eu nunca precisei dar para a minha paixão pelos Jogos Olímpicos. Olimpíadas são apaixonantes e ponto. Hoje, porém, sinto que é uma boa oportunidade para aprofundar o assunto. Não porque alguém finalmente me perguntou, mas porque isso vai me dar o gancho certo para começar o texto.

A menos que tenha lido este artigo com muita atenção, você não sabe que fui um nadador federado. Ainda criança comecei no esporte por recomendação médica, depois por estímulo dos pais, depois por força do hábito e no final tinha se passado 10 anos nisso.

Na época, eu já sabia que disputar um Olimpíadas seria praticamente impossível. Afinal, sempre teve pelo menos um garoto melhor do que eu na minha própria equipe. Mas ninguém pode impedir um moleque de 14 anos de sonhar e foi assim que passei a ver os Jogos Olímpicos como um objeto de desejo.

Mais tarde a vida de atleta provou-se muito difícil e a hora indesejada de escolher entre parar e continuar chegou. Parei. Mas a paixão pelas Olimpíadas continuou. E a escolha de fazer jornalismo manteve a chama olímpica acesa em algum lugarzinho.

Hoje, vejo a competição aqui do lado, pertinho. E também vejo o fato consumado de que não vai ser dessa vez que vou começar a contagem regressiva de cinco Jogos Olímpicos até a aposentadoria. Tudo bem. As histórias continuam sendo dignas de serem contadas. E pelo menos esse poder, agora, eu já tenho.

Puxando a sardinha pro meu lado, a natação é um dos esportes olímpicos mais legais de acompanhar. As Olimpíadas são a competição mais importante da modalidade (diferente do futebol, por exemplo). Nenhum atleta abre mão de priorizá-la frente ao seu clube (diferente do basquete). Ninguém da desculpa de que tá com medo do zika (diferente do golfe). Ela nos mostrou casos recentes de sucesso brasileiro (como Cielo e Thiago Pereira). E ainda tem o maior medalhista olímpico da história em ação (precisa mesmo citar o Phelps?).

Mas dessa vez encontramos alguém que passou longe dos holofotes da piscina e tampouco teve suas braçadas mais importantes da vida nessa competição. Já que vai ser difícil encontrar alguém com uma história melhor do que Yusra Mardini, chegou a hora de gastar esse cartucho.

Braçadas que valem vidas

Ela tem só 18 anos e um olhar desatento pode classificá-la como só mais uma adolescente dentre tantas outras. Yusra tem hábitos comuns, mas passa longe de ser só mais uma. Se ser atleta olímpica já não é diferencial suficiente, ela tem um outro motivo ainda maior pra se destacar.

"O que será? O que será?"

Nascida em Damasco, na Síria, em 5 de março de 1998, Yusra foi jogada na água pelo pai – técnico de natação – aos 3 anos de idade. De lá pra cá, não parou mais de treinar e logo se tornou uma promessa olímpica. Mas, dez anos depois da primeira braçada, o país de Yusra entrou em guerra e o sonho olímpico ficou muito mais distante até do que o meu.

Afastada da ideia de ter uma vida dedicada ao esporte, a luta da jovem nadadora e sua família passou a ser só uma: sobreviver. Nos últimos cinco anos, dos 13 aos 18, ela se acostumou a fugir de tiroteios, enterrar amigos e voltar pra casa o mais rápido possível no primeiro sinal de conflito. Foi então que, num dos piores massacres do período, Yusra e a família tiveram a casa em Daraya destruída e perceberam que era hora de partir.

Sua mãe, a mais relutante, sabia que a fuga podia ser ainda mais perigosa do que a permanência e só aceitou que Yusra e Sarah – sua irmã mais nova – partissem com a companhia de dois tios de seu pai e um amigo da família. O caminho, porém, continuava sendo nada fácil.

A missão consistia em tomar um voo de Damasco para Beirute, no Líbano, e de lá para Istambul, na Turquia. Da capital turca, a ideia era atravessar para a Grécia de alguma forma para depois tentar chegar à Europa Central, preferencialmente na Alemanha. Tudo em  pouco mais de um mês.

A parte aérea da ‘viagem’ deu relativamente certo até chegarem à Istambul. Lá, Yusra e companhia se juntaram com outros 30 refugiados que fizeram contato com contrabandistas para tentar chegar à Grécia. O grupo foi transportado de ônibus para Izmir e em seguida levado para uma área arborizada no litoral onde esperararam um barco que pudesse levá-los à ilha grega de Lesbos.

Daí em diante, quatro dias e quatro noites se sucederam na floresta em condições que a sua imaginação pode completar sozinha. Em entrevista recente, Yusra relatou que todos os dias chegavam três ou quatro novos ônibus lotados de refugiados e que o acampamento tinha entre 200 e 300 pessoas. Todos aguardavam o momento em que a polícia marítima daria uma brecha para que pudessem embarcar na tentativa de chegar à Grécia.

"Tava tudo, óh, uma merda"

Finalmente, na quarta noite, Yusra e sua irmã embarcaram com outras 18 pessoas num bote com capacidade para seis. E a primeira tentativa parou na polícia de fronteira que interceptou o barco e obrigou que todos voltassem. Na segunda tentativa porém, o problema foi um pouco pior e a história ganhou contornos dramáticos.

Mais uma vez numa embarcação superlotada, Yusra e companhia conseguiram se afastar do litoral, mas depois de vinte minutos de navegação, o motor pifou e o bote superlotado começou a encher de água. Na noite fria e escura no meio do Mar Mediterrâneo, as pessoas logo se desesperaram ao perceber que naquele grupo de 20, só quatro sabiam nadar: as irmãs Mardini e outros dois jovens rapazes.

Mesmo com a troca de maré e temperaturas baixas, os quatro não viram outra opção que não fosse pular na água e tentar salvar as pessoas de alguma forma. Depois de nadar gritando por ajuda, os quatro resolveram mudar de estratégia e voltaram para puxar o barco na direção certa. Mas os dois homens logo desistiram e foi então que Yusrna e Sarah se viram sozinhas.

“Eu fiquei pensando: o quê? Eu sou uma nadadora e vou acabar morrendo na água?”

As irmãs nadaram durante três horas e meia, ajudando a manter o barco no curso e puxando-o enquanto os passageiros de dentro do bote faziam o possível para ajudar.

“Estava frio, minha roupas me arrastavam pra baixo e o sal queimava os meus olhos e a minha pele. Mas eu não podia desistir e assistir àquelas pessoas morrendo. Havia um menino de quatro anos de idade que ficava olhando pra mim, assustado. Então, sempre que eu parava, fazia caretas engraçadas pra ele se distrair.”

"Deixa eu ver o que mais eu posso fazer na situação mais difícil da minha vida? Careta!"

Sem nenhuma ajuda externa, o grupo finalmente conseguiu chegar ao litoral grego com todos vivos e Yusra e Sarah, esgotadas, foram alçadas como heroínas.

Mas o caminho até a Alemanha ainda era longo.

As duas caminharam a pé durante dias sem conseguir quase nenhuma ajuda, depois pegaram um ônibus com contrabandistas pela Macedônia, através da Sérvia e da Hungria. Lá viram seus bilhetes de trem serem cancelados e os refugiados impedidos de viajar, até que eventualmente conseguiram chegar a Áustria e depois à Alemanha, onde finalmente ficaram abrigadas num campo de refugiados em Berlim, compartilhando uma barraca com outros seis homens.

Os problemas não acabavam e na tentativa de regularizar sua documentação de asilo, Yusra chegou a passar oito horas numa fila durante o inverno alemão só para ouvir que precisaria voltar no dia seguinte. Lá, ela afirma que chorou mais do que em toda a viagem.

Depois da experiência traumática com as últimas braçadas que tinha dado, cair numa piscina novamente não estava nos planos, mas Yusra precisava retomar a vida e viver significava nadar. Quando soube que uma nadadora pior do que ela havia ganhado uma competição, ficou indignada e decidiu que era de voltar.

Decidida, Yusra precisava agora de uma oportunidade e foi isso que um intérprete egípcio conseguiu. Ele foi até um clube local onde conversou com o treinador e tentou convencê-lo a dar uma chance pra garota. No dia seguinte, ela estava lá para impressionar o técnico e aproveitar a única chance que tinha.

Pouco tempo depois, ambos já estavam fazendo planos para tentar uma participação na Olimpíada de Tóquio em 2020. Mas foi então que souberam que o Comitê Olímpico Internacional tinha decidido abrir um precedente e formar a primeira equipe de refugiados da história dos Jogos Olímpicos.

"Ok. Era tudo que eu precisava."

Em janeiro desse ano, Yusra conquistou uma bolsa de formação do COI que lhe permitiu treinar de verdade em busca de seu objetivo. Com o dinheiro, os treinos e seu talento, ela conquistou a vaga para o Rio 2016 e realizou o sonho de participar de uma Olimpíada muito antes do esperado.

Hoje, seus pais e suas duas irmãs mais novas se juntaram a ela em Berlim e todos têm garantido um asilo temporário na Alemanha. Yusra só saiu de perto da família mesmo para vir ao Rio de Janeiro, onde competiu nos 100 metros borboleta e terminou na 41ª posição, muito distante de uma classificação pra final ou de uma briga por medalhas. Mas a jovem síria não veio ao Brasil para dar braçadas, as mais importantes continuam sendo aquelas no Mar Mediterrâneo, veio foi para nos contar um das histórias mais bonitas dos Jogos Olímpicos.

***

A 'Mais que um Jogo' é uma série do PdH que depende da sua colaboração. Nossa intenção é reunir boas histórias que permeiam ou se aproximam do esporte, mas que o extrapolam e oferecem doses de esperança e lições de superação para todos nós. Foram anos batendo cabeça para encontrar um fórmula perfeita. Meses fazendo tentativas e testes do que rodava melhor. Semanas matutando o que finalmente poderíamos fazer. E uma única noite para decidir que agora é a hora. Chegamos a conclusão que nesse caso, assim como em quase todos os outros, ou a gente coloca as coisas pra funcionar mesmo sem ter certeza de que vai dar certo ou simplesmente as coisas nunca acontecem.

Porém, para que tudo funcione bem, mais do que nunca estamos interessados em ouvir o que vocês têm a dizer. O que vocês têm de diferente para nos contar. Precisamos disso. E eu como caseiro e curandeiro desse nosso novo filhote, estarei mais atento do que nunca às críticas e sugestões que vierem.

Por isso cada caixa de comentários dessa série é também uma caixa de sugestões e o meu email breno@papodehomem.com.br está mais aberto do que nunca para recebê-los.

 


publicado em 10 de Agosto de 2016, 18:11
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Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


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