[+18] Foda nossa de todos os dias

Ode ao sexo preguiçoso, confortável e explorador daqueles que estão juntos há tempos

Debaixo do cobertor, vestindo partes soltas de dois pijama do avesso, as mãos começaram a passear pelo corpo do outro, como quem acalenta acalentando-se. A excitação se sentia nos suspiros leves que escapavam, nos dedinhos dos pés que se contorciam e na umidade que começava a emanar do sexo de cada um. Os olhos se fecharam, os lábios dançavam juntos lentamente, cada vez mais lento, até quase parar e a boca ir repousar no pescoço. O pensamento vagava pelo nada, enquanto o calor de um aquecia o corpo do outro como sol e o toque leve desencadeava arrepios de uma brisa fresca.

A tarde que entrava pela janela não convidava ninguém a se levantar. Com as cabeças apoiadas em ombros tão macios quanto travesseiros, os olhos já não mais se abriam para espiadelas e as mãos foram perdendo movimentos a medida que os dois caiam num sono leve.

Mais ou menos uma hora depois, ainda grudados, os corpos voltam a se remexer ao som de gemidos espreguiçados. Os olhos entreabertos buscaram o primeiro pedadinho de pele descoberta para poder deitar ali um beijo molhado. Debaixo do cobertor, os sexos acordam e, contrariando a fome de fim de tarde, pedem por mais um pouco de cama.

As mãos recorrem espertas pelo território conhecido. O começo dispensa qualquer pressa e o êxtase não pede prorrogação. No abrigo de um abraço, os orgasmos se concluem. Enquanto a respiração recupera o ritmo natural, os olhos ainda teimam em piscar pesadamente. Finalmente, a fome exige que ao menos um dos dois assuma a posição vertical e vá buscar bisnaguinhas, torradas, amendoins ou qualquer porcaria que tiver na geladeria porque Deus que os livre sair de casa numa tarde daquelas.

Ignorando os pares de pratos que se amontoavam em um canto, eles escolhiam o próximo filme que estaria em cartaz na tela do laptop. Sabia-se que a época da pegação tinha acabado, e que ali começava a intimidade de um relacionamento diferente. A despeito daquela satisfação desarrumada, o medo da mesmice despontava meio escondido, criando inseguranças.

Quando chegava a hora de ser ver, calcinhas e cuecas carregavam em forma de mancha uma pequena recordação de cada beijo. A urgência de se comer a mordidaças arrastava os dois pra qualquer banheiros mais ou menos.

Onde foi parar aquela preocupação em se arrumar, impressionar o outro? Os filmes e as histórias de amor que admiravam geralmente terminavam logo depois da conquista. Tudo que sabiam sobre entrar na fase da calmaria era que todos seus amigos haviam sido engolidos pela chatice da vida quando deixaram de sair pra ficar em casa.

Seria esse o anúncio do fim das aventuras que eles tanto gostavam de narrar? Então dali pra frente não haveria mais sexo enlouquecido como aqueles que fizeram um se apaixonar pelo outro?

O cotidiano cansado poderia até ser o início do fim, mas não porque o tempo, em sua crueldade silenciosa, esgota a cota de desejo e de sexo do bom. É que o tempo realça os defeitos, traz a tona antigos incômodos que ficaram calados por muito tempo, acaba com a tolerância e, às vezes, com a esperança. Um emocional ferido arranca a vontade sexual de um corpo antes que a cabeça entenda exatamente o que está acontecendo.

Mas quando a companhia um do outro só faz bem, o tempo passado junto e as centenas de fodas acumuladas não esgotam a vontade, porque não existe cota ou limite.

O fim das diversões é um pressuposto daquele velho manual de regras do namoro, que impõe ciúmes, monotonia, ruptura de amizades, entre outros fatores que desgastam os que não se encaixam no modelo. Não é preciso que seja assim. A convivência constante acaba reduzindo a porcentagem de horas de sexo por dias passados juntos, mas não necessariamente diminui a frequência das transas. E vá lá, ainda que se diminua a quantidade, o veredito sobre isso há de ser qualitativo.

A intimidade muda a natureza do sexo e em muitas maneiras refina a prática. Já se sabe como chegar ao orgasmo básico, agora há de se descobrir as preferências que um nem sabia que tinha. Os segredos minúsculos se tornam chaves para desencadear gozos homéricos. A aventura não morre, ela só abre mão das formalidades.

Não é mais necessário estar sempre fora, bem vestido, buscando algo ou alguém. Os dois sairão quando quiserem, juntos ou separados. Pra balada, pro restaurante caro, pra festa de família. Eles encherão a cara quando e o quanto quiserem, porque também não precisam mais limitar a bebedeira com vergonha de um possível vexame.

O conceito de vergonha se dissolve. Nenhuma perna peluda ficará fechada. Mestruação? Ainda bem ela veio. Resfriado? Pega o papel higiênico. Mais alho na pizza! Quem não ama alho? Pra que banho depois da academia, do futebol, se eles querem se amar agora e o sexo vai suar tudo de novo? E também, se o cansaço falar mais alto, eles deixam que os amigos reclamem, eles querem ficar em casa mesmo, ué. E se não der vontade de transar, eles podem só dormir vendo uma série qualquer, não tem problema. Haverá noites – ou tardes, ou manhãs – que um sexo despretensioso quebrará recordes e entrará pro hall das memórias épicas.

A única coisa que pode estragar a magia da intimidade no sexo, quando todo o resto vai bem, é a pressão pessoal. O psicológico tem uma tendência a menosprezar o sexo nosso de todos os dias só porque não é mais aquela novidade que causava mais frios na barriga que orgasmos na cama. Mas, em uma análise crua, o sexo íntimo pode ser considerado muito melhor do que aquele do começo, não?


publicado em 14 de Junho de 2016, 13:26
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Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro "Amulherar-se" . Atualmente também sou mestranda da ECA USP, pesquisando a comunicação da sexualidade nas redes e curso segunda graduação, em psicologia.


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