Muitas vezes, a correria do dia a dia nos faz perder a atenção para pequenos detalhes que compõem as vias nas quais nos conduzimos. Com a agonia de cumprir tarefas nas horas marcadas, percorremos caminhos dentro de carros, em cima de bicicletas ou mesmo a pé, com os mesmos sentimentos cutucando nossos corações: “não posso perder tempo” e “tenho que correr porque já estou atrasado”.
Estamos tão acostumados com a velocidade de nossos afazeres que chega a ser quase impossível reservar um pouco de tempo para uma prática bastante importante na plenitude existencial do indivíduo, que é a contemplação da vida.
O poder de reflexão do ser humano o ajuda a perceber e aproveitar as alegrias que vão revestindo o cotidiano a cada instante. Sem ele, nossas vidas acabariam por se tornar meras reproduções constantes e repetiríamos sempre as mesmas práticas, o que transformaria a realidade em uma coisa chata e insossa. E uma vez dentro dessa existência, o inevitável estresse surge e começa a somatizar suas consequências em nossos corpos e mentes.
E para podermos contemplar de maneira plena, é necessário achar um espaço em nossas concorridas agendas para o tempo livre, um momento para fazermos atividades que nos satisfaçam fora do ambiente de trabalho, esse, por sua vez, estendido por todo o percurso, desde a preparação antecipada até a atenção dada ao celular depois do expediente para verificar se houve alguma emergência. Um exemplo interessante surge quando falamos sobre o assunto.
Uma determinada pessoa adora trabalhar. E se orgulha disso. Por essas e outras, recebe uma renda mensal em troca de sua força de trabalho. Nada mais justo, não?
O problema nesse caso acontece quando o fruto de suas atividades profissionais é convertido em aquisições que não estimulam o lado contemplativo, como o melhor computador do mercado que é comprado para satisfazer uma necessidade de continuar trabalhando quando chegar em casa. Ou o melhor aparelho celular que servirá para responder email e mensagens a qualquer instante.
Então, a pessoa opta por deixar seu filho na sala jogando o videogame mais caro do mercado, e seu parceiro ou parceira fazendo uma outra atividade qualquer.
E por que falo que seria um problema, já que esse modelo de vida é bastante disseminado? Digo isso porque, poucos séculos atrás, um poeta e filósofo detectou uma anomalia no sistema contemplativo da sociedade e escreveu alguns versos que resumem toda a sua teoria. Esse poeta se chamava Charles Baudelaire. Mas antes de falarmos sobre ele, vamos voltar um pouco no tempo para entendermos quais contextos históricos prepararam o terreno para sua poesia.
Quando a correria começou
No final do século XVII, com a melhor das boas intenções, o Iluminismo procurou libertar as pessoas da “bárbarie”. O esclarecimento trazido por essa corrente filosófico-política deu acesso ao homem inúmeros conhecimentos, uma vez que respondia com eficácia os mais profundos questionamentos da humanidade e libertava-a da angústia.
Porém, ao reduzir todo o conhecimento a um pensamento exclusivamente racional, também afastou o homem de sua mística universal. E qual seria?
O tempo de contemplação filosófica que, desde os mais remotos tempos, uniu os homens em laços fortes.
Apenas com esse poder é possível vencer de forma saudável a velocidade de produção implementada a partir da Revolução Industrial. Não quero, com isso, parecer ser contra os resultados que as melhorias científicas trouxeram para a humanidade. Muito pelo contrário. As tecnologias que a aceleração das atividades industriais humanas trouxeram geraram resultados maravilhosos, como remédios que aliviam doenças terríveis e soluções para dificuldades de comunicação a longas distâncias.
O objetivo aqui é mostrar o quanto estamos absorvidos por uma rotina de trabalho que exige dedicação praticamente constante de nós e como podemos fazer para aproveitar um pouco mais dos prazeres que a curta vida pode nos oferecer.
Para responder a isso, vou precisar citar um poema de Baudelaire publicado em As flores do mal.
A uma passante
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
Charles Baudelaire. As Flores do mal. Edição bilíngüe.
Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 361.
Com esse poema, Baudelaire criou uma de suas mais famosas expressões: flâneur, ou em português, um “andarilho” contemplativo urbano que traz a marca do artista e possui um olhar mais apurado. Esse personagem corresponde a uma figura nascida em meio a industrialização dos séculos XVIII e XIX, que dedica seu tempo a andar tranquilamente pelas ruas, sem pressa, apenas observando e inebriando-se pelo prazer de se achar no meio de uma multidão.
O flânuer se atenta a cada detalhe das ruas e vê nelas sua fonte de inspiração, sentindo “uma expressão misteriosa do gozo pela multiplicação do número” (BENJAMIN, Walter . Obras escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo) e buscando uma nova percepção da cidade. Ele seria então a justa contraposição do indivíduo absorvido pela necessidade de velocidade, que caminha apressadamente para cumprir seus compromissos rotineiros.
Tendo a rua como um chão sagrado, os centros urbanos se tornam sua moradia. Ele se sente em casa quando está entre as fachadas dos prédios. Os letreiros esmaltados e os brilhantes dos escritórios são tão interessantes quanto a pintura a óleo dos grandes museus e as bancas de jornais são suas bibliotecas.
A figura do flâneur é a essência da contemplação nos meios urbanos. Ele pode ser representado no desejo que temos de nos sentirmos plenos no nosso cotidiano. Como um profundo observador, ele nos ensina a perceber detalhes que compõem os mais comuns trajetos que fazemos diariamente. Então, aquela avenida que percorremos todos os dias, mas que insistimos em considerá-la estressante, pode se tornar fonte de inspiração artística, tanto para quem observa quanto para quem deseja intervir ou manifestar suas ideias nela.
Com o poder de contemplação injetado na medida certa dentro de nossas vontades, passamos a compreender que tudo o que nos cerca foi pensado e planejado por uma força criativa. Para muitos, a disposição de postes em uma viela pode ser “arte” -- que do latim, ars, significa técnica ou habilidade. Para outros. a bela arquitetura de uma casa pode ser encantadora, mas todas as intervenções humanas guardam seus potenciais de admiração, que apenas um indivíduo imbuído de flânerie consegue perceber.
E você? O que está esperando para ser um flâneur? Tente no caminho pro seu trabalho contemplar os detalhes das ruas e das casas. Depois compartilhe conosco essa experiência.
A jornada do novo flâneur
Nota do editor: em 2012, o Gustavo Gitti publicou um artigo no Portal Homem da Natura com um vídeo importantíssimo para a compreensão do "novo fâneur":
Como podemos mudar o olhar e explorar novos cantos da nossa cidade? Com o apoio da Natura, o time da Monstro Filmes registrou os percursos de Marina Zumi (grafiteira), Zico Correia (praticante de parkour), Rodrigo Chã (artista de rua) e Choque (fotógrafo).
"Eu olho os muros; não olho as vitrines."
–Marina Zumi
Eis o argumento da Monstro que deu origem ao vídeo:
"A cidade é o autêntico chão sagrado da flâneurie"
–Walter Benjamin
Na multidão apressada das megalópoles vemos surgir um indivíduo que se destaca, conseguindo interpretar os signos da cidade como ninguém, desvendando seus segredos e aprendendo com eles. Perde-se na cidade para conhecê-la profundamente. É o melhor jeito. Percorre suas vias misteriosas em um processo dialógico de mútuo aprendizado.
O Flâneur, termo criado por Baudelaire, é o sujeito que anda pelas ruas calmamente, somente pelo prazer de contemplar a cidade com o olhar que ela merece, absorvendo todas as informações que ela pode oferecer. É o olhar sensível e desbravador. É percorrer o mesmo caminho todos dias como se fosse a primeira vez.
Hoje podemos ver uma evolução desse conceito, em que o caminhante não se contenta em somente observar, mas também quer fazer parte do todo. Alterando a realidade ao seu redor, o novo flâneur, pinta, cola, usa e desfruta do ambiente, estreitando os seus laços com a urbe e se tornando um só.
Link Vimeo | Pare por 10 minutos e assista em tela cheia
publicado em 28 de Março de 2014, 21:00