No fim do ano de 2017, recebi o convite para fazer parte de um projeto de empoderamento feminino e igualdade de gênero, o Empodera Manas, realizado pelo UNICEF em três capitais brasileiras e apoiado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da ONU.

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Belém do Pará foi uma delas, e além da região metropolitana da cidade, o projeto foi realizado em mais duas ilhas deste município. Sessenta meninas receberiam oficinas sobre direitos sexuais e reprodutivos, educomunicação, cultura de paz, entre outros, e mais quinze meninos seriam chamados para essa vivência sobre gênero e sociedade.

Junto a uma equipe com quatro mulheres diretamente, eu estava ali por esses meninos. Meus olhos brilharam, é claro, enquanto um grande nervosismo me acompanhava por quase todo esse percurso que adentrou o ano de 2018. Esse texto é uma partilha: facilitar diálogos sobre nossas masculinidades foi empoderador.

E é, também, um convite: que tal facilitar diálogos com outros homens?

A última pergunta foi uma das motivações desse trabalho. Há alguns anos eu acompanhava as discussões sobre o masculino através do Papo de Homem e de outras iniciativas pelo Brasil. Há alguns anos começava a olhar para mim, enquanto homem, nesse processo de autoconhecimento e observação do que girava ao meu entorno e do que gira dentro de mim. O machismo, a sexualidade, os relacionamentos, o trabalho, o dinheiro, a mente, o corpo, o coração. Pautas do dia pra gente.

Um dos gatilhos da fundação desse portal – o Papo de Homem – também foi um dos gatilhos que me impulsionaram às rodas: a solidão masculina.

Essa enxurrada de informações sobre os nossos papeis pessoais e interpessoais precisam ser digeridas entre nós. As mudanças que vêm ocorrendo de uns anos para cá nos pedem essa atenção. Podemos começar a dar os nossos passos individualmente, mas chega uma hora que um grupo de pessoas se torna essencial para novas percepções da nossa caminhada.

Então, o que os homens da minha cidade teriam a falar sobre eles próprios? Eram adolescentes e jovens com grandes histórias de vida, em um mundo de transformações políticas e sociais. Adolescentes e jovens homens, cis e trans, negros e brancos, héteros e LGBTIs, urbanos e ribeirinhos.

Uma geração de “novos homens” que fazem parte, assim como eu, dos que preenchem o topo dos cargos em empresas, mas que também lotam os presídios; que estão aprendendo a cuidar de sua saúde, mas que vivem em média 7 anos a menos no Brasil, em comparação com as mulheres. “Um gênero de extremos”, como ressalta Guilherme Valadares. Precisamos conversar sobre isso!

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Aprendi sobre “educação entre pares”, que é quando pessoas com experiências semelhantes trocam informações sobre qualquer assunto. Um idoso falando sobre como é ser idoso com outro idoso, é educação entre pares. Homens falando com outros homens sobre o ser homem é educação entre pares. Era uma conversa aberta, daquelas de peito aberto, para respirar fundo e agradecer. “Eu vim aqui por que eu tava precisando mesmo de um papo de homem”, falou um dos meninos antes de começarmos.

Um papo aberto.

Foram três desses papos. O primeiro aconteceu na Ilha de Cotijuba, com meninos do Movimento de Mulheres das Ilhas de Belém, uma instituição sem fins lucrativos, fundado por mulheres da ilha em 1998. O segundo foi na Ilha de Mosqueiro, com adolescentes atendidos pelo CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social. O terceiro, em Belém, com manos de vários bairros da cidade.

Foto: Edgar Barra / Unicef
Foto: Edgar Barra / Unicef
Foto: Edgar Barra / Unicef

Diversidade. As experiências de vida tendem a ser muito diferentes de uma localidade para outra. Do dia a dia às estruturas familiares. Falando de lazer e cultura, enquanto na Ilha de Mosqueiro, por exemplo, eles queriam shoppings, por terem uma vida mais urbana, na Ilha de Cotijuba, queriam manter suas praias e espaços de acordo com essas especificações.

Em Belém também era muito diferente. O ritmo de vida de uma capital costurava a experiência de cada um. Sutilmente isso também diferenciava o relacionamento com suas masculinidades, no que diz respeito aos círculos sociais, às ocupações e às aspirações para o futuro. Porém, com as mesmas construções identitárias, sociais e emocionais de um “homem-homem”. Um menino da cidade recebe, e tende a nutrir, as mesmas perspectivas de uma masculinidade apoiada na violência, no fechamento emocional e na auto cobrança excessiva, tal qual um garoto mais afastado das áreas urbanas também cultiva.

Foto: Edgar Barra / Unicef
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Nenhum deles havia participado de uma conversa sobre “o que era ser homem”. Quase todos me olharam com certa surpresa quando anunciei e expliquei a proposta daquele dia.

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Nós desenvolvemos na roda a “Caixa do Homem”, ou “The Man Box”, e enquanto eu apresentava o que se inseria dentro e fora dessa caixa, abria para partilhas a cada novo conceito. Por exemplo, é de se esperar, segundo a “Caixa do Homem”, que nós tenhamos “disposição sexual”. “Se tá dando sopa”. Nesse momento, eu perguntava se alguém já tinha ouvido falar sobre “disposição sexual”, ou se já tinham tido alguma experiência de se relacionar só por que “eram homens”, ou de não querer se relacionar e, por algum motivo cósmico desse nosso universo, ter se relacionado contra sua vontade. Inúmeras experiências surgiam e eram compartilhadas abertamente.

A “Caixa do Homem” também apresenta o que não é esperado do gênero masculino. “Criado pela vó” é uma delas. Mas ser “criado pela vó” regula as nossas masculinidades? As discussões eram intensas em dados momentos, e em outros, amenas. Nessas horas, eu iniciava a partilha com as minhas próprias experiências e essas experiências os ajudavam a reconhecer as suas. Partilhar gera identificação e identificação é um sentimento vital para a confiança em um grupo. Pouco a pouco, fomos desconstruindo a “Caixa do Homem”, entre insights de “caramba, é mesmo!”, e “isso ai não tem nada a ver com a gente!”.

Foto: Edgar Barra / Unicef

Além disso, os diálogos poderiam ser bem menos produtivos se não tivéssemos feito um simples acordo de convivência ressaltando a importância do “respeito” e da “confiança”. Acabamos por criar um espaço seguro de fala, onde podíamos expor os mais variados episódios e emoções de nossas vidas, certamente nos proporcionando o surgimento de tantas reflexões e nos deixando a vontade para rever pontos de vista até então cristalizados em nossas personalidades.

E sobre o ideal masculino: “Mas pra que mesmo?”.

A educação é uma via de mão dupla para os que se propõe a trocar saberes. Isso é de um valor fundamental. “Não existem pessoas sem conhecimento. Elas não chegam vazias. Chegam cheias de coisas. Na maioria dos casos, trazem juntas consigo opiniões sobre o mundo, sobre a vida”, disse o nosso querido Paulo Freire, e enquanto escrevo esse texto, olho as cartolinas que preenchemos depois de conhecer sobre o que era esperado de nós e formular o que era, pra gente, ser homem, a partir da seguinte pergunta:

“Ser homem é?” – por nossas palavras.

É ser capaz de primeiramente se respeitar”, “ter vários esquemas”, “ter maturidade”, “romântico”, “lavar a louça”, “é também fazer a comida”, “ser carinhoso”, “ser belo, recatado e do lar”, “usar bandâna”, “ser você mesmo”, “ser homem é ser responsável e ser poético e ser carinhoso e ser amoroso”, “ter sentimentos”, “vestir rosa”, “fazer ballet”, “corajoso ou ter medo”, “não ser orgulhoso”, “ativo e passivo”, “não ter medo de se expressar”, “chorar”, “competitivo, talvez”, “trabalhador”, “top”, “dançar funk”, “heterossexual”, “gay”, “comete erros”, “chora”, “filho da mamãe”, “criado pelo vó”, “nerd”, “confiar”, “esquisito”, “ter atitude”, “curioso”, “bem sucedido”, “demonstrar interesse”, entre outras afirmações.

O que antes estava sendo construído com máscaras masculinas ainda tão “comuns” em nossas vidas, carecendo de percepção e diálogo, começava a se tornar consciente. Aquilo ali era ser homem, afinal, e não estava nem perto do Macgyver, tampouco do Brad Pitt.

É tempo de homens possíveis”.

A ilustração mais sensível dos resultados sutis e explícitos que conversas abertas com e sobre o nosso gênero podem trazer, é o relato de um dos meninos da Ilha de Mosqueiro, depois de contar que prendia o choro “pra não parecer menos homem”:

Eu aprendi aqui que homem podia chorar. Eu não sabia que homem podia chorar”.

Certamente, eu aprendi que transformações são possíveis e em rede elas se potencializam ainda mais, afinal “só eu posso, mas não consigo sozinho”.

Deixo o convite: que tal facilitar diálogos com outros homens?

* * *

Nota do autor: Meus agradecimentos ao UNICEF, pela realização desse projeto, e a todos que trabalharam para ele acontecer.

Elias Costa

Artista, educador e empreendedor. Cofundador da <a>Plantar Fotografia</a> - empresa pela qual morre de amores -