Romantismo à moda antiga | WTF #68

Podemos celebrar a intensidade e o mistério, mas não precisamos abdicar da razão, ou cooptá-la para manipular ou artificializar qualquer coisa

A semântica em torno do tema é complexa, a ideia evoluiu e passou por vários meandros, e em particular se refere hoje a duas coisas: um momento histórico e artístico do séc. XIX e a sua corruptela popular, ligada principalmente ao sentimentalismo e a uma espécie de pastiche estético da forma erudita. Essa forma popular é um conjunto de clichês e estereótipos idealistas, ingênuos e um tanto exagerados e que apelam de forma barata para a emotividade.

Julio Iglesias soando num fim de semana a dois na serra, com direito a lareira e fondue, algo assim.

Mas, como sempre, o buraco é mais embaixo.

O romantismo sempre foi alvo fácil de criticas por três motivos: é saliente, é jovem e não tem respostas, defesas ou justificativas. Isto é, o romantismo incomoda, é expressivo – ou até chato – porque não pede desculpas. Não entra em nossos joguinhos racionais e adultos e não quer conversa: amadurecer é perder o élan, a curtição de envolver-se com a vida com mera curiosidade, sem fórmulas ou aprendizado. Algo que está naturalmente certo não precisa de justificação: a justificação é um tipo de desculpa, um remendo na experiência.

Evidentemente, como com tudo mais, aqui está o cerne de sua glória e maldição: a dicotomia básica da cultura ocidental entre emoção e razão – que é absolutamente desnecessária, e não faz sentido verdadeiro. A maldição é aceitar essa falsa dicotomia e a tornar uma posição irrevogável, e a glória é subsumir, devorar inteiramente, o racional.

O romantismo enquanto movimento artístico foi uma resposta ao mundo mecanizado e ao progresso e planejamento humanos, que da Revolução Industrial até hoje criam evidentes confusões. O iluminismo, ao se institucionalizar, realmente se tornou uma espécie de totalitarismo (vide sweatshops da Revolução Industrial), por melhores que fossem suas intenções em primeiro lugar – a burocracia sempre existiu, mas a burocracia “sem jeitinho”, em que você se encontra num impasse cósmico com a atendente do telemarketing – que não tem culpa de nada daquilo – essa é “iluminista”, cartesiana. É o resultado de iterações contínuas do capitalismo com suas ferramentas de eficiência – todas elas perfeitamente racionais, lidando com agentes inteiramente racionais, que são definidos como “agindo por autointeresse” – e, você sabe bem, não há agente romântico irracional, não há Bin Laden com bananas de dinamite que vença esse cenário em sua particularidade. (E nem na sua globalidade.)

Em outras palavras, quando você liga para o telemarketing e espera ser atendido como um ser humano, e se descobre reduzido a um recurso a ser explorado por uma engrenagem fria (a atendente), parte minúscula de uma vasta máquina impessoal (a corporação), aí que você entende mesmo a verve romântica.

Essa verve faz sentido no seu extremo, mas também faz sentido no âmbito mais prosaico. Você entra nesse mundo e o encontra não só todo revelado, mas dissecado, aberto na mesa de cirurgia – todo mapeado, ligado a máquinas de manutenção da vida – máquinas que fazem bip. Se você anseia algo novo, é preciso trabalhar com quarks ou quasares – mas no fundo acaba descobrindo que tudo um monte de pedra, com algumas faíscas e uns imãs para lá e para cá. Em nenhum lugar há êxtase, ou o martírio do sofrimento intenso: o foco na capacidade de se maravilhar ou sentir é romântica (e sem dúvida há romantismo por todo lado na ciência e nos cientistas), mas o romantismo foi enlatado como mais um dos sabores da modernidade – um parque de diversões existencial momentâneo na forma de um filme ou pacote de férias. E este mundo de hoje (e já no séc. XIX) não tem mais como ser romântico: é um supermercado sem fim, onde todo mundo toma remedinho para aplacar o spleen.

E assim seguem também os relacionamentos: nem o contrato sagrado em frente a um Deus que espelha as necessidades tribais de proteção da propriedade e da saúde pública – e do patriarcado – nem verdadeiramente a consagração da peculiaridade num indivíduo e numa vida possível entre muitas. Agora, se não é o poliamor, é a expectativa da monogamia sequencial – ou ainda, a monogamia de “é tu que tá aí, vai tu mesmo”. Romantizar é consagrar magicamente o peculiar – e se a coisa não fica séria quando a magia se desfaz, então por que teria valido a pena?

Claro que está cheio de gente que ainda “cai em amor”, mas assim que a coisa fica nervosa, tudo mundo sabe que é só trocar de canal. Só jovens e gente simplória se ocupa disso por mais que um par de dias.

A paixonite sequencial, intensa e relevante como uma das duas ou três realmente boas refeições na semana, essa também é uma domesticação comum do romantismo. Amar com um amor que tem a perspectiva da mortalidade, isso para nós, é meio papo de novela.

Mas, novamente, o buraco é mais embaixo.

Quando dizemos que alguém está sendo romântico, é porque, de certa forma, reconhecemos que está agindo como um bobo. Porém, se não somos capazes de reconhecer uma circunstância romântica – essa circunstância mágica, temporária e elusiva, em que as coisas por um momento dão uma pausa e parecem se encaixar, e em que sabemos que estamos sonhando um doce sonho, mas dizemos “e daí, deixa sonhar” – que tipo de vida levamos? O sublime, a capacidade de assombro perante a circunstância existencial, ou um ou outro aspecto insofismável da experiência ou da natureza (o tempo, o espaço, as configurações peculiares dessa terra, dos animais e da alma humana, etc.) – nada disso importa: o que importa é pagar os impostos, criar os filhos e trabalhar na autotransformação com muita terapia e autoajuda, e fazer uma chapeação lá no psiquiatra ou cirurgião plástico, vez que outra, para aceitar tudo isso no deboísmo. Isso é o que a normose produz.

O sujeito intenso, aquele que fica falando que o buraco é mais embaixo, esse é o brega, o pouco sofisticado – a revolução não será visionada, e ai de mim não cultuar o cinismo. Além disso, por favor, que faça sentido, diga alguma coisa: de preferência algo que me ajude a escolher gravatas, melhorar a imagem corporal, ajude nos meus relacionamentos, ou a transformar minha pobreza (financeira, intelectual, existencial) em algo chique, pra eu realmente ficar deboas. Duas cervejas e um filé com molho de mostarda? Anotado.

Porra, esse cara não diz nada! Melhor do que profeta do apocalipse, ou “vocês precisam acreditar em mim, eu sou astrólogo”. Né, não? Não? Poesia concreta de emoticon para você :P, cara.

Porém, efetivamente, o romantismo não esta livre de perigos. Quando tudo isso se mistura – os aspectos mais cotidianos e racionais – é que o romantismo fica perigoso. Como apenas um delírio ou desvario, enfoque na intensidade, no misterioso, na jovialidade e em encarar as coisas com curiosidade e sem desculpas – até aí, tudo isso está muito bem, sem problemas. Quando, porém, a dicotomia quer se resolver em algum tipo de união a posteriori entre razão e emoção, entre passado e presente, daí... Hitler, propaganda, o brega.

O romântico que se apodera da razão é um manipulador. É o psicopata que internamente é máquina, mas sabe manipular os sentimentos dos outros; também aquele que mantém ideação suicida, matando o mundo e a todos ao redor no primeiro ato, ao fechar uma cortina para sua peça interna. A máquina é tudo isso lá fora, as emoções que valem são só as minhas. Crimes passionais, atentados terroristas: distorções do romantismo. O curioso é que a irracionalidade desses atos é que é salientada, quando na verdade são ações em que a paixão se torna artificialmente cooptada por uma processo incessante de justificação. O que para nós é injustificável, irracional, para o romântico que se perdeu no ideal, não é. É ele que coloca os fins além dos meios, e assim produz um rationale para sua paixão. É o romântico distorcido que não se identifica realmente com a própria paixão, mas se torna uma mera máquina para um fim passional arbitrário.

No extremo, o brega, o touchy-feely, trata-se de um romântico fabricado, óbvio, imposto. Não só manipulador, mas manipulador em mãos pouco hábeis, de forma que se torna uma manipulação duplamente desprezível.

Não é fácil entender historicamente a influência do romantismo na política, mas na pragmática e na atualidade é: ora, campanhas bem sucedidas, propagandas bem sucedidas, criam inevitavelmente um herói. E nem falemos em populismo, líder carismático, o escambau: em qualquer momento que nos vendem “hope”, “yes we can”, e o prospecto saboroso elevar um underdog (negro, trabalhador, mulher) ao posto mais alto, aí está também o romantismo. E nós no posto de amante ludibriada pelo sedutor a cada eleição: jantar a luz de velas, toda atenção, suíte presidencial – no dia seguinte, porém, segue a realpolitik com a legítima esposa: corporações.

Por um lado é incorreto dizer que isso vem do romantismo: ora, emoções todos temos, mas a ênfase deliberada na experiência das emoções, essa curtição (não hedonista no caso, já que o romântico sabe bem que as emoções não são apenas prazer) como estilo de vida, essa é bem incomum, senão na brincadeira sazonal de um adolescente ou na forma mais ralé do puro sentimentalismo particularmente comum entre gente não educada. Mas a ideologia romântica vez que outra volta a ser criticada, e isso implica que, em certo sentido, mesmo nesse “admirável mundo novo”, não acreditamos estar sendo pragmáticos ou realistas o suficiente. E isso é, ironicamente, assombroso.

O fato é que a valorização de razão versus emoção – ou mais modernamente uma dicotomia que também se apresenta como o determinismo/aleatoriedade que está “lá fora” no mundo versus minha experiência de primeira pessoa – vem da daquela falsa dicotomia, da noção absurda de que sejam coisas separadas.

Ora, você já ouviu dizer que “as máquinas não tem emoção”, para separar um algoritmo de uma pessoa, e talvez falar da impossibilidade de consciência artificial, algo assim. Porém, as máquinas não tem racionalidade tampouco, essa é uma ilusão que a formalização da lógica, ou coisas como tabelas de verdade, junto com o pouco entendimento do que seja racionalidade, nos faz acreditar. A razão, como faculdade, não é meramente consistência lógica – validade, em termos técnicos – ela inclui semântica, sem ela não há o que, em termos técnicos, se chama de correção. E, rapaz, mesmo os computadores mais sofisticados do mundo não atingiram a semântica – seus drivers e sensores de input, seu mais sofisticado data mining e reconhecimento facial, só conhecem dados brutos. As técnicas mais modernas usam mapeamentos probabilísticos em termos de muitos exemplos, mas o que se quer dizer por entender uma palavra – mais do que ouvir, saber escrever, e encontrar algumas relações com outros termos. Bom, aí o problema é exatamente o mesmo de fazer uma máquina sentir dor ou uma emoção – ou conhecer uma pessoa como conhecemos uma pessoa, em vez de meramente saber associar um rosto a um nome, e ligar esse nome a uma lista de dados. Ainda não se sabe nem bem o que significa, e o que seria necessário e suficiente para um dia replicar esse processo.

Então temos que a razão não existe sem esse aspecto cognitivo misterioso, e não se separa em nenhum momento de emoções – bem como as emoções sempre surgem em torno de rationales, Weltanschauungs, menos ou mais complexas.

Embora o romantismo tenha sido uma reação ao racionalismo iluminista, o que o romântico celebra é o aspecto não mecânico. E sim, muitas vezes esse aspecto não mecânico é louvado como aleatório, indeterminado ou caótico – irracional. Mas não precisa ser assim, nem na visão romântica, nem em nossa própria visão. Podemos celebrar a intensidade e o mistério, não entrar em jogos e não justifica, mas não precisamos abdicar da razão, ou cooptá-la para manipular ou artificializar qualquer coisa. No fundo o pragmatismo e o realismo prosaicos do dia a dia são assombrosos, até sublimes, e são tão enganadores quanto qualquer fantasia romântica.


publicado em 20 de Agosto de 2015, 00:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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