Robert Johnson: Os muitos mitos do maior mito do Blues

Robert Leroy Johnson foi um cantor e guitarrista norte-americano de blues, provavelmente o mais influente de todos

É muito comum as pessoas me pedirem dicas de artistas para começar a ouvir blues. Afinal, o blues não é fácil de ser descoberto; você não liga o rádio e está tocando blues. E, se você não entende muito do assunto, uma coletânea também não vai ajudar muito, já que você nunca nem ouviu falar de boa parte dos músicos que vão aparecer ali.

Assim, eu sempre indico Muddy Waters, John Lee Hooker, BB King e alguns outros nomes que são mais acessíveis para quem não ouve blues. Mas, muitas vezes, eu recebo como resposta a mesma pergunta:

– Mas e Robert Johnson?

Bom, Robert Johnson é algo complicado. Eu nunca indico Robert Johnson para uma pessoa que nunca escutou blues na vida — ou que acha que blues é apenas o que BB King ou Buddy Guy fazem. Afinal, estamos falando de um sujeito que tocava blues rural — o velho violão e voz — o que já não é exatamente acessível para muita gente e cujas gravações aconteceram de forma quase amadora, em estúdios improvisados (a primeira delas foi num quarto de hotel).

A quantidade de chiados e as variações de volume das músicas assustam muita gente, que simplesmente não conseguem identificar seu valor; é por isso que eu sempre coloco Robert Johnson como um segundo estágio para descobrir o blues. Você até pode conhecer o blues por Robert Johnson; mas é muito mais fácil — e infinitamente mais rico — conhecer e entender um pouco de blues, para só depois mergulhar em Robert Johnson.

Mas eu entendo a vontade que as pessoas que estão começando a ouvir blues têm de escutar Robert Johnson. Você não consegue passar por um texto sobre o gênero sem que ele apareça. Louvado como o maior nome da história do gênero pela imprensa e por músicos do calibre de Eric Clapton e Keith Richards, Johnson é figura carimbada em todas as listas de melhores (e mais influentes) guitarristas de todos os tempos… Com apenas vinte nove músicas gravadas.

Isso, claro, sem falar em todos os mitos que cercam Robert Johnson. Sua biografia é repleta de buracos — para ter uma ideia do quanto tudo é vago, ele possui nada menos que três sepulturas em locais diferentes, o que quer dizer que talvez tenha sido enterrado em uma delas — e isso, somado à lenda de que ele teria vendido sua alma ao diabo (um dos contos mais populares da história da música do século vinte), faz de Robert Johnson uma figura extremamente fascinante. Para muitas pessoas, Robert Johnson é a encarnação da imagem clássica do blueseiro. Vagando de forma solitária e cantando blues em encruzilhadas, apontado como um gênio por todos os moradores do Mississipi…

“Eu não me importo onde você
enterrar meu corpo quando eu estiver morto”
(Robert Johnson — Me and the Devil Blues)

Esqueça. Esse é um mito quase tão grande quanto o da venda da alma ao diabo.

Vamos falar um pouco sobre o Mississipi dos anos 20 e 30. Se você passasse meia hora em uma estrada da região, certamente encontraria um blueseiro andando com um violão. Podia ser Robert Johnson, mas é mais provável que seria qualquer um das centenas de músicos que percorriam a região. E, se você perguntasse a ele onde encontrar Robert Johnson, ele provavelmente não saberia de quem você estava falando.

Sim, ele tinha certa fama regional. Seu maior sucesso, Terraplane Blues, vendeu coisa de cinco mil cópias (vale dizer que isso era muito pouco para a época: Downhearted Blues, fenômeno de vendas de Bessie Smith, vendeu perto de 800 mil cópias), mas, a grosso modo, Johnson era apenas mais um entre os músicos de blues do Mississipi, praticamente desconhecido fora do seu habitat natural. A prova disso é que, após sua morte em 1938, seu nome ficou completamente esquecido até 1961, quando a Columbia lançou King of Delta Blues Singers, um disco com 16 músicas das suas duas sessões de gravações.

“O problema com Robert Johnson é que
ele existe apenas em seus discos. Ele é uma lenda pura.”
(Martin Scorsese)

Foi neste momento que Johnson foi descoberto e passou a ser aclamado como o maior blueseiro da história, com suas músicas sendo veneradas, estudadas e regravadas. Dizem que o rock britânico não existiria sem o blues; chega a ser engraçado que, de certa forma, Robert Johnson não existiria hoje sem o rock britânico.

Mas é fácil entender o impacto que Johnson teve em jovens como Brian Jones e Eric Clapton. Era uma época em que eles estavam ouvindo blues o tempo inteiro e, de repente, descobrem algo do nível de Robert Johnson. Quando ouviu pela primeira vez, Keith Richards achou que eram duas pessoas tocando; Brian Jones disse que não, que era Robert Johnson sozinho e Richards passou horas escutando o disco até entender que sim, era apenas uma pessoa e um único violão.

Se você escutar essa música prestando atenção no violão, você entende a dúvida de Richards. A linha mais grave (que conduz a música) e as notas mais agudas parecem realmente duas pessoas tocando. Não são. É apenas Robert Johnson.

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Esse “violão duplo” é algo comum na obra de Johnson — blueseiros que conviveram com ele dizem que sua mão parecia uma aranha andando pelo braço do instrumento. E isso fica ainda mais evidente porque em muitas músicas ele usa o instrumento como “segunda voz”. Sabe aquilo que BB King fazia, de cantar e deixar a guitarra responder? Johnson fazia isso com o violão, que respondia à letra… E sem parar com a base da música.

Eu não sou músico, então demorei a perceber esse negócio do violão duplo. Na verdade, a primeira coisa que me chamou a atenção quando descobri Robert Johnson foi sua voz.

Quando peguei um disco dele, fui direto em Sweet Home Chicago, que eu já conhecia — a esta altura, eu nem fazia ideia que a música era composta por ele — e coloquei para tocar. E fiquei abismado com o que ele faz com a primeira palavra da música: ao invés de cantar o “home”, como em todas as dezenas de versões posteriores, ele transforma a palavra em um uivo, quase um lamento. Nesse momento eu percebi que estava ouvindo algo diferente de tudo o que havia escutado até então.

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Aos poucos, eu comecei a mergulhar mais nas músicas, pegando as letras e sem parar de me impressionar com a voz dele. É de uma riqueza fora do comum: ele consegue colocar diferentes entonações na mesma canção, muitas vezes de um verso para o seguinte, tornando a emoção da música mais complexa que aparenta. Além disso, ele usa truques como gritos, frases soltas no meio da música e murmúrios que mostram um repertório como cantor que chega a ser impressionante.

“[Sua música] é o mais poderoso lamento
que você vai encontrar na voz humana.”
(Eric Clapton)

E isso derruba outro mito de Johnson — e dos cantores de blues do Mississipi desta época. É fácil enxergá-los com romantismo, imaginando que são pessoas que vivem na miséria e têm o blues como filosofia de vida. Errado. Johnson e todos os outros eram artistas e, queriam, antes de tudo, ganhar dinheiro com sua música.

É normal — e até mais gostoso — imaginar Johnson como um músico rústico, quase um menestrel do Mississipi, mas basta ouvir suas canções para constatar que era um artista extremamente profissional e bem preparado. E que tocava muitas outras coisas além de blues, por um simples motivo: dinheiro.

Assim como todos os seus companheiros, Johnson sobrevivia tocando em esquinas e bares; para ganhar a vida dessa forma, o blueseiro precisava saber tocar o que a plateia queria. Ragtime. Swing. Jazz. Se você perguntasse a um blueseiro dessa época o que ele gosta de tocar, ele certamente respondia blues; mas se você perguntasse a ele o que ele sabe tocar, ele responderia que “qualquer coisa, desde que eu seja pago por isso”.

Eu acho isso interessante demais. É algo que eu descobri faz apenas alguns anos, e que humaniza totalmente a figura do blueseiro da época. Ele deixa de ser um homem que vive por amor à música e usa o blues para se confortar; ele se torna uma pessoa comum, lutando como eu e você para sobreviver. E, também como eu e você, se vendendo o tempo inteiro — o que não necessariamente significa um trabalho mal feito.

Para tirar a prova, ouça a música abaixo e diga se ela parece blues. Alguns estudiosos dizem que Johnson colocou essa canção nas gravações (com uma voz completamente diferente) com a clara intenção de chamar a atenção do público das grandes cidades, locais onde a música do momento era o ragtime — mas foi em vão. Johnson nunca chegou a ser conhecido nas cidades maiores dos Estados Unidos.

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Entretanto, das vinte e nove canções que ele gravou, essa é a única que escapa ao blues. Todas as outras são do gênero não apenas no estilo musical, mas em suas letras. Os temas são clássicos do blues: você tem os problemas com a bebida (Drunked Hearted Man e Malted Milk) e com a solidão.

Love in Vain é um bom exemplo — e uma das músicas mais tristes que escutei na vida: é quase uma crônica dividida em três estrofes. A primeira delas narra o homem indo com a mulher até a estação de trem, a segunda são eles se despedindo, e a terceira é ele parado ali, vendo o trem ir embora e enlouquecendo de tristeza pois “todo seu amor foi em vão”.

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Mas Johnson também fala muito de sexo. Não fazia isso diretamente, mas não se preocupava em disfarçar. O blues sempre foi muito sexual e Johnson não fica atrás nisso. Em Terraplane Blues, ele usa o carro (o Terraplane do título) como metáfora para sexo: seu carro não anda então ele acredita que sua mulher deixou outro homem dirigi-lo enquanto ele estava fora. Phonograph Blues? Mesma coisa: o fonógrafo que ele usava para “ouvir música” com a mulher não funciona mais e ele está enlouquecendo. E é ainda mais explícito, dizendo que ouviam a música no sofá ou apoiados na parede.

Ok, mas e o Diabo?

Bom, o diabo sempre marcou presença no blues, e com Robert Johnson a coisa chega a ser escancarada — o que só aumenta o mito da venda da alma (que tem outras versões, que dizem que o pacto teria acontecido em um cemitério e não em uma encruzilhada e que o demônio não seria o da Bíblia, e sim uma entidade africana conhecida como Legba — eu acho isso uma idiotice, já que nenhuma outra música de blues sequer faz menção a esse Legba).

Mas o fato é que, de vinte e nove canções, duas delas falam abertamente sobre o demônio. E não é um demônio metafórico; a visão é explicitamente literal. Em Hellhound on my Trail ele diz que “não pode parar pois um cão do inferno está em sua cola” — mas é importante dizer que o termo “hellhound on my trail” já havia aparecido em outras canções de blues anteriores. E, em Me and the Devil Blues mostra o homem acordando com batidas na porta e, quando ele abre, é o demônio (chamado de Satã na letra), dizendo que “é hora de partir”.

Evidentemente, isso tudo estaria ligado à venda de sua alma — o que explicaria a canção Cross Road Blues, que teoricamente mostraria como o pacto foi feito. Mas nada na letra da música faz menção a isso. Há quem diga que a letra inteira narra o medo do cantor de perder sua alma. Se você pensar em Robert Johnson mito, faz sentido.

Mas se você pensar no Robert Johnson homem, aquele que era um entre tantos blueseiros e tocava qualquer tipo de música para ganhar dinheiro, alguns trechos podem ser explicados de forma mais natural, como a dificuldade em pegar uma carona e em ficar longe de casa depois de escurecer (os negros, na época, precisavam obedecer a um toque de recolher). Mas, como acontece sempre… Se o mito é mais interessante que a verdade, publique-se o mito.

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Talvez essa seja a magia de Robert Johnson: muitas de suas músicas podem ser interpretadas de uma forma quando se pensa no homem que queria ganhar a vida, e de outra quando se pensa no mito do blueseiro andante que vendeu a alma. Você pode escutar o Robert Johnson que morreu quando o demônio veio cobrar a dívida, ou o Robert Johnson que morreu depois de beber uísque com estricnina, preparado por um marido ciumento.

Ambos são geniais. Por isso o importante não é como ouvir, mas sim ouvir. Pois se tem algo que eu já percebi é que Robert Johnson é uma espécie de “nota de corte” no blues.

Se você está se apaixonando por blues e escuta Robert Johnson com cuidado… A paixão vira amor e você nunca mais vai deixar de ouvir blues na sua vida. Aconteceu comigo e com mais um monte de gente. Inclusive Eric Clapton e Keith Richards — que, falando sobre Johnson, declarou uma vez que “você quer saber o quanto o blues pode ser bom? É isso aqui”.
Nota: Alguns anos atrás, esta coletânea comemorando os cem anos de Johnson foi lançada. Ela tem o som mais limpo e quase sem chiados. Os puristas, claro, odeiam. Eu recomendo fortemente para todo mundo: é maravilhosa e deixa o talento de Johnson ainda mais claro.

Clique e Ouça: Músicas Para Conhecer:

 

Kind Hearted Woman — Sua primeira canção gravada. Assim como é normal no blues da época, ela é baseada em diversas canções mais antigas, e com uma letra um tanto quando contraditória: a mulher começa como uma pessoa boa, mas ao final da música ela só faz o mal (“e faz o senhor Johnson beber”).

Hellhound on my Trail — Uma das principais músicas sobre o “pacto”. Abre falando sobre o demônio, depois fala sobre Natal (mesmo) e termina com saudade da sua amante.

If I Had Possession Over the Judgment Day — qual o tamanho da mágoa que você sente de uma pessoa para jurar que “se eu tivesse poder sobre o Dia do Juízo Final eu impediria a mulher que amo de rezar”?

Come on in my Kitchen — É uma das suas canções mais bonitas e melancólicas. Basicamente, ele está sentado na cozinha pedindo para que seu amor entre antes que a chuva caia. Um blueseiro que muitas vezes tocou com ele diz que era comum as pessoas começarem a chorar quando ele a tocava em bares.

Me and the Devil — A outra música sobre o pacto. Muitos estudiosos usam o último verso, logo depois que ele diz que você pode enterrar meu corpo ao lado da estrada (“então o meu velho e maligno espírito pode pegar um ônibus Greyhound e ir embora”) como exemplo da complexidade vocal de Johnson. Eu, particularmente, acho o verso “eu vou bater na minha mulher até ficar satisfeito” uma das coisas maios violentas que o blues já produziu.

I Believe I’ll Dust my Broom — Um dos maiores sucessos do blues, mas que ganhou fama mais de uma década depois, quando foi regravada por Elmore James. Tem uma letra bastante complexa e que pode ser interpretada de diversas formas, mas prefiro guardar isso para quando falar de James por aqui.

Drunken Hearted Man — “Meu pai morreu de leucemia, minha pobre mãe fez o melhor que pode”. Em três minutos, um lamento sobre a vida, contando como Johnson não consegue largar as bebidas e mulheres — mesmo sabendo que significaria muito para ele.

* * *

Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 19 de Maio de 2016, 00:05
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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