Em 1953 o filósofo político Isaiah Berlin publicou seu livro O Porco-espinho e a Raposa: Um Ensaio sobre a Visão da História de Tolstói. Como o subtítulo já escancara, o objetivo do trabalho era analisar a percepção da história na obra do escritor russo Leon Tolstói, principalmente em seu romance Guerra e Paz.
Mas O Porco-espinho e a Raposa não se tornou célebre pela análise da obra de Tolstói, e sim pela interpretação que o Isaiah Berlin deu ao provérbio grego que inspirou o curioso título: a raposa conhece muitas coisas, mas o porco-espinho conhece uma coisa grande (no original do livro em inglês: “the fox knows many things, but the hedgehog knows one big thing”).
Isaiah Berlin estabelece, a partir desse provérbio, duas formas de pensar. Porcos-espinhos são aquelas pessoas que relacionam todas as coisas a uma determinada grande ideia, e raposas são todos aqueles que conhecem muitas ideias mas estão cientes de que elas não se encaixam necessariamente em um único sistema. Nas palavras do próprio autor, que traduzo livremente (o original vai abaixo em parênteses):
“Há um grande abismo entre aqueles que, de um lado, relacionam tudo a uma única visão central, a um sistema, mais ou menos coerente ou articulado, em termos dos quais eles entendem, pensam e sentem – um único e universal princípio organizador, em torno do qual tudo o que são e dizem têm significado, e, de outro lado, aqueles que buscam muitos fins, muitas vezes díspares e até mesmo contraditórios e cuja conexão, quando muito, ocorre somente de um modo factual, por alguma conexão fisiológica ou psicológica, mas sem estarem relacionados a nenhum princípio moral ou estético.”
É possível argumentar que dividir as pessoas entre porcos-espinhos e raposas, afirmando, como Isaiah Berlin afirma, que há um “grande abismo” entre elas, já é uma postura de porco-espinho, e que, na verdade, todos nós temos um pouco de raposa ou um pouco de porco-espinho. Haveria, portanto, apenas uma maior ou menor tendência de nos encaixarmos em uma dessas definições.
Mas esse argumento é falacioso justo por desconsiderar a própria característica fundamental do porco-espinho: a crença de que quase tudo pode ser explicado a partir de em uma só ideia, de uma “grande verdade”. Por isso, quem tende a ser um pouco porco-espinho acaba rapidamente sendo muito porco-espinho, no sentido de que a tal grande verdade exerce uma espécie de força gravitacional sobre todas as suas opiniões.
Dito de uma forma mais técnica, o porco-espinho é alguém que foi contaminado por uma meme dworkiana com pretensões totalitárias. Logo, seria contraditório dizer que alguém é porco-espinho em apenas certos tópicos – podendo, assim, ser raposa em outros. É que uma ideia com pretensões totalitárias não se restringe apenas a certos tópicos, e tende naturalmente a englobar toda a visão de mundo do indivíduo. Seria como dizer que alguém está levemente grávido: o próprio pressuposto do que é ser um porco-espinho impede a existência de meios-termos.
Mas qual o interesse prático nessa divisão? Bem, a verdade é que o mundo precisa de mais raposas e menos porco-espinhos.
Para tornar mais fácil a compreensão desse ponto, peço licença ao leitor parar transcrever mais uma citação. Dessa vez, é a definição que Daniel Kahneman, psicólogo ganhador do Prêmio Nobel, faz da raposa e do porco-espinho no seu precioso livro Rápido e Devagar:
“Porcos-espinhos “sabem uma grande verdade” e têm uma teoria sobre o mundo; eles explicam eventos particulares dentre de uma estrutura coerente, ficam eriçados de impaciência com quem não enxerga as coisas da mesma maneira que eles e são confiantes em seus prognósticos. Também se mostram especialmente relutantes em admitir um erro (…). São cheios de opiniões e segurança, e esse é exatamente o motivo pelo qual os produtores de TV adoram vê-los em seus programas. Dois porcos espinhos em lados diferentes de uma questão, um atacando as ideias imbecis do outro, dão uma boa mesa redonda.”
Agora leitor, lembre-se das últimas eleições presidenciais e aplique essa definição aos seus amigos e como eles se comportaram nas redes sociais durante o período, capturados que foram pela organização sistemática do ódio. É fácil identificar os porcos-espinhos entre os eleitores mais eufóricos dos principais candidatos, ou mesmo dos candidatos nanicos que, por sua vez, apresentavam um discurso de porco-espinho.
E isso ocorre porque porcos-espinhos são bons em criar rótulos para aqueles que discordam de sua visão de mundo (coxinhas, petralhas, esquerdista, direitistas…). São também hábeis em formular definições de quem são os “grandes inimigos”, os “responsáveis pelo problema”, e tendem a reagir emocionalmente quando suas convicções são questionadas.
No âmbito da política, tanto a direita como a esquerda estão repletos dessas pessoas. Na esquerda, há aqueles que tentam encaixar tudo, absolutamente tudo, até mesmo o Bóson de Higgs, na ótica do socialismo, na lógica do opressor e do oprimido. Também tentam atribuir a responsabilidade por quase tudo a um único vilão chamado “mercado” (ou o “Grande Capital Internacional”). Como a esquerda tem grande trânsito nas universidades públicas, muitos acadêmicos elaboram cuidadosas e bem estruturadas retóricas que conseguem, na teoria, englobar quase todas as pautas políticas e sociais progressistas num enquadramento socialista.
Do lado dos liberais, há aqueles que tentam explicar todas as questões segundo a lógica da capacidade de auto-gestão humana, a ponto de considerarem que a sociedade ideal seria aquela em que não haveria Estado (o grande vilão) ou qualquer forma centralizada de controlar minimamente o comportamento dos indivíduos. Direito de propriedade e total liberdade/autonomia dos indivíduos são os pontos referenciais de suas análises, e o marxismo, inclusive o marxismo cultural, seu grande adversário.
Observe que digo “há aqueles”. Ou seja, há sim na esquerda e na direita algumas raposas, pessoas que se encaixam na definição feita por Daniel Kahneman:
“Raposas, pelo contrário, são pensadoras complexas. Não acreditam que um único fato conduza a marcha da história. Em vez disso, as raposas reconhecem que a realidade emerge das interações de muitos agentes e forças diferentes, incluindo o acaso cego, muitas vezes produzindo resultados grandes e imprevisíveis. Elas têm menos probabilidade do que os porcos-espinhos de serem convidadas para debates de televisão.”
E a grande virtude das raposas é justo seu maior problema: elas não chamam a atenção, não são debatedores atraentes para programas de TV, o que é desastroso na política. Como estão cientes de que todas as coisas derivam de interações complexas de múltiplos fatores e raramente de uma única causa, não cedem a explicações fáceis e simples, resistem a rotular pessoas e dificilmente apontam um “grande inimigo”. E isso é impopular, pois as pessoas têm preguiça de pensar e gostam de fortes emoções.
Num palanque, as raposas perdem feio para os porcos-espinhos, que estão prontos para segurar o microfone e explicar todas as coisas do mundo em meia dúzia de frases de efeito – e sempre apontando o dedo para um grande adversário. Convictos de que sabem uma grande verdade, enquanto as raposas têm poucas certezas (insuficientes para insuflar multidões), os porcos-espinhos se ajustam perfeitamente ao triste cenário que Yeats faz do mundo moderno em seu fantástico poema The Second Coming: aos melhores falta convicção, enquanto os piores estão cheios de apaixonada intensidade.
Mas os porcos-espinhos não se limitam, claro, à política. Toda espécie de fundamentalismo religioso é obra de porcos-espinhos, que aderem a uma cosmovisão cuja pretensão é abranger todos os aspectos da vida humana dentro de uma teodiceia mística na qual está em jogo a alma humana.
Quanto a ciência, a princípio é uma perspectiva de raposa pois, embora se costume falar de “leis científicas”, na verdade todas as teorias estão sujeitas à prova e podem a qualquer momento ser substituídas por outras. Não existe teoria rigorosamente verdadeira, mas sim teoria de menor refutabilidade se comparada com as demais. Além disso, não há desconforto com a natureza fragmentária das formulações científicas (veja-se, por exemplo, a ausência de uma teoria conciliadora da física quântica com a teoria relatividade), nem com a incapacidade da Ciência de explicar de forma unificada e abrangente todos os fenômenos do universo. O espírito científico é baseado na razão – e, como disse Kant, o poder da razão humana reside justamente na consciência de sua limitação.
Mas a ciência, infelizmente, é muito menos popular do que doutrinas religiosas fundamentalistas. E isso ocorre porque nós, seres humanos, adoramos narrativas coerentes. Na verdade precisamos de narrativas coerentes, inteligíveis, para lidar com os aspectos caóticos da realidade. Nossa mente foge do desconforto cognitivo que é reconhecer um mundo complexo diante de si, e faz isso de forma instintiva.
Por esse motivo é que a visão apresentada por um porco-espinho é muito sedutora. Ele faz muito mais sucesso em público, ao apresentar sua narrativa coerente sobre o porquê de todas as coisas serem como são e sobre o que devemos fazer diante disso, do que uma raposa, que insiste em desmontar narrativas para investigar e descobrir os detalhes da real complexidade do mundo, sempre disposta ao diálogo mesmo com aqueles que potencialmente podem ser considerados “os inimigos” ou “os grandes culpados”.
Outra característica dos porcos-espinhos é que preferem ter por adversários outros porcos-espinhos, simplesmente porque isso confirma a sua narrativa interna. Afinal, o que seria de uma boa narrativa se ela não tivesse, além dos heróis, os vilões? E ter como adversários raposas, sempre conciliadoras, propensas ao diálogo (pois não adotam uma visão de mundo que exclui as demais), é desestimulante, já que não vestem adequadamente a roupagem de inimigo. Ter porcos-espinhos do outro lado do campo de batalha é até mesmo imprescindível para os porcos-espinhos deste lado.
É por isso que intuímos em certos conflitos a existência de uma sutil simbiose entre inimigos mortais. É por isso que intuímos que os radicais sionistas de Israel precisam dos radicais fundamentalistas do Islã, e esses precisam dos radicais neonazistas e islamofóbicos da Europa. Radicais da direita parecem vociferar com prazer quase sexual contra radicais da esquerda e vice-versa. Já as raposas são imprestáveis como inimigos, e facilmente os porco-espinhos formulam uma retórica segundo a qual as raposas ou são ingênuos que não percebem a verdade ou então são representantes do inimigo, enviados na missão estratégica e insidiosa de, com seu discurso conciliador ou aparentemente imparcial, desmotivar as fileiras dos defensores da verdade.
Além disso, porcos-espinhos costumam oferecer ao público algo que apimenta ainda mais toda boa narrativa, ao lado do conceito de inimigo. Estou falando de teorias conspiratórias. Quando confrontados com fatos extremamente complexos e que desafiam sua visão de mundo coerentemente arrumada em torno de um punhado de supostas grandes verdades, os porcos-espinhos fornecem à sua audiência uma teoria da conspiração capaz de explicar que, na verdade, por trás de todo aquele caos aparente há um grande e único fator que se encaixa na sua visão de mundo: uma conspiração, seja dos Iluminattis, seja do tal judaísmo internacional (para os atissemitas), seja do Foro de São Paulo (para a direita), seja do capitalismo imperialista (para a esquerda).
Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso do atentado à redação da revista francesa Charlie Hebdo. Surpresos com um fato complexo que não se enquadrava na vilanização dos países ocidentais desenvolvidos, parte da esquerda decidiu relativizar a barbárie de duas formas. A primeira consistiu em focar sua análise na reprovabilidade de uma liberdade de expressão irrestrita e atribuir o crime à islamofobia (ao fim e ao cabo, culpou-se pelo atentado as vítimas e a cultura na qual nasceram). A segunda foi propor que, na verdade, o atentado consistiu em uma armação conspiratória da própria OTAN ou do governo francês e americano para criar bodes expiatórios e legitimar medidas intervencionistas (teoria desmentida posteriormente pelo próprio ISIS, organização responsável pelo atentado).
Para complicar a situação de pessoas que pensam como raposas, já tão pouco prestigiadas no mundo, em nosso país nós temos um rótulo. Certamente, como todo rótulo, foi elaborado por porcos-espinhos para constranger e ridicularizar aqueles que se recusam a tomar uma posição definitiva sobre todos os temas: os em cima do muro. E, como país latino-americano de forte tradição machista, há uma associação sutil entre ser “em cima do muro” e não possuir fibra, não ter masculinidade suficiente para tomar atitudes decisivas.
Assim, quem não adere integralmente ao pensamento de esquerda ou de direita é um em cima do muro, alguém rotulado como débil em suas convicções políticas. Da mesma forma, o agnóstico que recusa a aderir ao ateísmo também é retratado como alguém desprovido de vigor suficiente para tomar coragem e ser categórico em sua negativa da existência de Deus – ele assim age não por seu rigor científico, mas por falta de fibra moral. Ambas são caricaturizações pobres, mas que funcionam muito bem em círculos sociais como instrumento intimidadores.
Só esqueceram de lembrar que é em cima do muro que se enxerga mais longe e de uma perspectiva mais ampla.
Precisamos, portanto, criar ambientes nos quais as raposas se sintam à vontade para dialogarem entre si, protegidas dos ataques hostis dos porcos-espinhos e de seus rótulos e palavras-de-0rdem. Essa é uma necessidade ainda mais premente nas redes sociais e na internet em geral, espaço em que é tentadoramente fácil compartilhar meias verdades e memes redutoras da complexidade humana.
Se há alguma perspectiva de construirmos soluções consensuais para os principais problemas da humanidade é no diálogo multidisciplinar das raposas, partindo do desafiador princípio de que quase nada é tão simples como se imagina e da concepção de que todo aparente inimigo é, na verdade, um ser humano tão ou mais envolto em confusão do que nós. Fora dessa possibilidade, o que nos restará serão exércitos jurados de morte, desferindo seus espinhos uns contra os outros.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.