Deu no G1. Acessei dia desses pela manhã e a notícia “Vítima de sequestro-relâmpago atira e mata criminoso em São Paulo“ era a mais lida naquele momento.
O que parece apenas mais uma notícia comum esconde sérios problemas. E hoje inauguro uma série cujo objetivo é chamar atenção para pontos cegos do jornalismo atual e propor alternativas.
O funcionamento será bem simples: vou escolher uma notícia, reproduzí-la na íntegra e então reescrevê-la, por uma perspectiva mais compassiva.
Mas, como essa é a primeira vez, preciso primeiro contextualizar quais são as questões envolvidas, o que seria o jornalismo compassivo e quais seus benefícios. Vamos lá.
Dois grandes problemas no jornalismo atual
1. Jornalismo viciado
Houve 189.349 ocorrências de furto e roubo de veículo em São Paulo durante 2015, segundo a Secretaria de Segurança Pública. Por que escolher narrar justamente essa notícia, desse modo? Isso não é mero acaso.
Muito do que se produz tem um viés negativo em excesso, sofre também do viés do agora e da busca obsessiva por audiência, em decorrência de modelos de negócio dependentes da publicidade, em sua maioria.
A loucura das notícias diárias
Ser negativo não é necessariamente um problema. No entanto, quando há uma abundância de matérias críticas de modo sensacionalista, e, em contraponto, uma escassez crônica de abordagens construtivas, focadas em soluções e com entendimento amplo e estrutural de questões cada vez complexas, acredito termos sim uma questão.
Para materializar os possíveis benefícios de uma maior amplitude de abordagens, vamos examinar um estudo que comparou o modo como notícias de crimes eram relatadas pela mídia e seus efeitos nos leitores ao longo do tempo. Os achados foram bem interessantes:
Notícias narradas de modo tradicional e episódico, como a que cito no começo do texto, com foco na pessoa que cometeu o crime ou no crime em si, favorecem interpretar a situação como culpa exclusiva do criminoso. Além disso, menos informações sobre o fato são retidas na memória, há um maior sentimento de pessimismo, uma vontade maior de punição para o indivíduo e um desejo menor de apoiar medidas de transformação social.
Já quando as notícias são narradas tendo um pano de fundo que aborda o problema como uma questão pública mais ampla, o impacto muda. Os leitores tendem a interpretar que a culpa maior é da estrutura social, há maior retenção de fatos sobre a história, o sentimento de pessimismo é reduzido e há vontade maior de apoiar medidas de transformação social. Bem melhor, não?
Claro, essencial dizer que essa é apenas uma pesquisa, de recorte limitado, e que carecemos de mais informações e estudos sobre o impacto das notícias sobre nós. Ainda assim, são achados a serem considerados.
Como vemos, a única diferença em favor das notícias narradas de modo episódico é que o interesse das pessoas em ler é superior. Múltiplos estudos confirmam que emoções que nos excitam mais – pense em raiva, nojo, medo da perda, admiração, alegria – são os gatilhos mais potentes para fazer um conteúdo viralizar.
Ou seja, a dependência da publicidade e, consequentemente, da audiência, é um dos motivos que nos faz seguir presos em um modelo jornalístico que prioriza os cliques em detrimento da solução de nossos problemas.
Ao invés de focar em oferecer contexto adequado para as notícias, muitos veículos se aprimoram em explorar gatilhos emocionais para capturar nossa atenção.
Não à toa, o BuzzFeed treina seus funcionários explicando que a “Rede Mundial do Tédio” comanda a web e que o trabalho deles passa por entreter pessoas autocentradas e ansiosas que não sabem o que fazer pra passar o tempo.
O perigo é grande. Sem um jornalismo capaz de nos ajudar a lidar com as complexidades do mundo, vamos ficar cada vez mais perdidos e manifestar nosso desgosto de formas bem ruins.
Seja escolhendo políticos donos de discursos inflamados e simplistas, que não possuem a menor ideia de como lidar com problemas complexos, seja tomando as ruas pra fazer justiça com as próprias mãos e nos levando de volta à barbárie.
2. Jornalistas exaustos, sem treinamento emocional
Segundo estudos e reportagens (há uma série de quatro partes excelente no The Huffington Post), 1 em cada 8 jornalistas lida hoje com estresse extremo ou Transtorno de Estresse Pós-Traumático ligado à sua carreira – dados para EUA e Europa.
Mais de 80% vão enfrentar Transtorno de Estresse Pós-Traumático ligado à sua carreira, em algum ponto de suas vidas.
Cerca de 20% vão lidar, em algum momento, com depressão ligada a fatores de estresse da função jornalística.
Quem tem amigos jornalistas está acostumado a escutar sobre os turnos de doze ou catorze horas e as condições de trabalho insalubres.
Boa parte do que lemos nos jornais é escrito por pessoas enfrentando quadros sérios de ansiedade e estresse. Seria ingênuo de nossa parte pensar que isso não afeta a maneira como escrevem e editam as matérias.
É difícil, até mesmo injusto, esperar que abordagens transformadoras sejam adotadas por quem luta pra chegar ao fim do mês sem perder o emprego, em uma época na qual os “passaralhos” (demissões em massa) têm devastado as redações.
Não basta oferecer mais tempo livre e ter uma ou outra matéria mais longa que contextualize a chuva de notícias recebidas por nós todos os dias. Estamos lidando com questões estruturais que pedem outras formações para os jornalistas e outras estruturas de mídia, operacionais e financeiras.
E por acaso há como superar esses problemas?
Acredito que sim.
A coluna que agora inicio aspira oferecer uma alternativa. Nem de longe é a solução, é apenas outro olhar.
Ela é fruto da visão que temos explorado no PdH há quase dez anos, do meu trabalho com o lugar e também de pesquisas que me levaram a conhecer abordagens promissoras como o jornalismo construtivo, jornalismo de soluções, jornalismo de paz e narrativas restaurativas.
Jornalismo compassivo, tal qual lhes apresento hoje, é uma visão em construção, inacabada.
Sem mais delongas, vamos ao exercício.
A notícia original publicada no G1:
Vítima de sequestro-relâmpago atira e mata criminoso em São Paulo
Casal foi feito refém quando parava carro perto do Shopping Eldorado. Rapaz entrou em luta corporal com ladrão no banco traseiro de veículo.
Um casal de namorados foi feito refém após um sequestro-relâmpago na noite desta quinta-feira (17) em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo. Uma das vítimas reagiu e atirou em um dos criminosos, que não resistiu aos ferimentos.
O rapaz estacionava o carro na rua em frente ao Shopping Eldorado quando foi abordado por dois assaltantes que estavam a pé.
Enquanto um dos criminosos assumiu o volante do veículo, outro ficou no banco traseiro com o rapaz. “Pegaram nós dois, renderam e colocaram dentro do carro, assumiram a direção e foram com a gente”, contou. A namorada disse que um terceiro criminoso levou os cartões de banco.
Eles seguiram pela Marginal Pinheiros, no sentido Interlagos, por cerca de 7 km. Quando chegaram na altura da Ponte do Morumbi, na Zona Sul, o jovem que estava no banco traseiro entrou em luta corporal com os ladrões. Durante a briga, a rama disparou e atingiu o criminoso.
A bala atravessou o vidro do carro onde estava sentada a namorada, mas ela não se feriu. O jovem ficou com o rosto muito machucado e foi socorrido para um hospital.
Os dois criminosos saíram do carro e fugiram pela Marginal Pinheiros, mas o que estava ferido acabou morrendo perto do local.
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Reação das pessoas à notícia original – foram 1436 comentários, a maioria com discurso de ódio:
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A notícia refeita, pela perspectiva compassiva:
Vítima de sequestro-relâmpago reage, colocando em risco a própria vida e de sua namorada
Casal foi feito refém enquanto parava carro perto do Shopping Eldorado. Rapaz entrou em luta corporal com ladrão no banco traseiro de veículo, ignorando que reagir funciona em menos de 10% dos casos
Um casal de namorados foi feito refém após um sequestro-relâmpago na noite desta quinta-feira (17) em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo. Uma das vítimas reagiu e atirou em um dos criminosos, que não resistiu aos ferimentos.
Enquanto um dos criminosos assumiu o controle do veículo, o outro ficou no banco traseiro com o rapaz. “Pegaram nós dois, renderam e colocaram dentro do carro, assumiram a direção e foram com a gente”, contou. A namorada disse que um terceiro criminoso levou os cartões de banco.
Eles seguiram pela Marginal Pinheiros, no sentido Interlagos, por cerca de 7 km. Quando chegaram na altura da Ponte do Morumbi, na Zona Sul, o jovem que estava no banco traseiro entrou em luta corporal com os ladrões. Durante a briga, a arma disparou e atingiu o criminoso.
A bala atravessou o vidro do carro onde estava sentada a namorada, mas ela não se feriu.
O jovem ficou com o rosto muito machucado e foi socorrido para um hospital. Após o repórter do G1 checar se o jovem aceitava dar uma entrevista, conversou com ele à respeito de boas práticas e estatísticas em casos de assaltos e sequestros-relâmpago. “Eu realmente não sabia que em menos de 10% dos casos reagir dar certo, não sei bem porque fiz isso, agradeço por minha namorada estar viva ainda. Não sei se me perdoaria caso ela tivesse sido morta ou ficasse paraplégica após levar um tiro por conta da minha reação.”, disse o rapaz.
Os outros dois criminosos saíram do carro e fugiram pela Marginal Pinheiros, mas o que estava ferido acabou morrendo perto do local.
Especialista defende combate às causas da violência
O professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani, acredita que é preciso atacar as causas da violência.
“Algumas das medidas punitivas e de aumento da punição são eficientes ou têm alguma eficiência, mas numa larga medida elas têm caráter muito de populismo. O senso comum diz que se aumentando as penas as coisas vão mudar no Brasil e isso não é verdade. Nós temos uma das maiores populações carcerárias do mundo e isso não tem resolvido o problema da violência. O que a gente precisa começar a combater são as causas dessa violência. É dar estrutura para que essas pessoas mais humildes possam sair da situação de pobreza, que muitas vezes as levam para violência. É você ter forças policiais mais volumizadas, a polícia passar a ser mais cidadã”, destacou o professor.
Como reagir em casos de sequestro-relâmpago, segundo a polícia
O delegado Rubem Pedrosa explica que reagir sempre vai ser a pior opção. “Cada vez mais temos reforçado em nossa equipe que os policiais não são apenas agentes punitivos. São agentes conciliadores e educadores, nosso dever é espalhar informação qualificada, educar a população. Pra isso é essencial que nosso equilíbrio emocional seja o melhor possível.”
Em situações de assalto ou sequestro-relâmpago, são essas as recomendações da Polícia Civil:
— Procure manter a calma
— Não reaja nem tente fugir
— Forneça o que exige o criminoso, diminuindo o tempo do roubo
— Não faça movimentos bruscos e procure alertar o assaltante dos gestos que pretende realizar
— Tenha consciência de que há possibilidade de existir outra pessoa dando cobertura ao crime
Fonte: Universidade da Polícia Civil
A Universidade da Polícia Civil tem como um de seus principais representantes o delegado Pedrosa, que complementa: “Desde que a UPC (Universidade da Polícia Civil) implementou a formação ampla, com cursos de psicologia, pedagogia, sociologia e equilíbrio emocional, reduzimos em 75% as ocorrências com fatalidades e a satisfação no trabalho aumentou em 150%, segundo os próprios policiais. É também uma alegria contar com a colaboração de veículos como o G1, que seguem próximos e nos ajudam a disseminar conhecimento que é utilidade pública para a população”.
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O que foi feito de diferente ao refazer a notícia?
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Título enfatiza o erro ao reagir. É um absurdo nenhum trecho da notícia escrita ou da reportagem em vídeo, de 1m15s, mencionar que reagir só “dá certo” em menos de 10% dos casos.
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Bigode (trecho logo abaixo do título, em itálico) enfatiza a estatística de que reagir funciona em apenas 10% dos casos
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Foi inserido bloco sobre as causas estruturais da violência e o que podemos fazer a respeito
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Foi inserido bloco com boas práticas sobre como lidar em situações similares
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Foi inserida uma declaração – ficcional, importante dizer – da Polícia Civil sobre uma hipotética colaboração entre o órgão e o G1 para educar a população sobre como lidar melhor com a criminalidade. A Universidade da Polícia Civil também não existe, até onde sei.
A reportagem em vídeo deveria ser refeita também. Mais parece um curta metragem feito para despertar indignação popular e uma sensação de heroísmo e satisfação narrativa ao final, quando o repórter explica que “o sequestro só chegou ao final quando o rapaz reagiu no banco de trás”.
Além disso, teria sido necessário mais tempo para conversar com as vítimas e com o delegado, para obter as boas práticas recomendadas pela polícia.
O repórter precisaria ter uma abordagem bastante humana e sensível com o jovem que reagiu.
Chegar perguntando sobre a estatística dos 10% poderia ser até mesmo violento, considerando a situação traumática. Essa pergunta só poderia ser feita após primeiro acolher o jovem e sua namorada, criando empatia e checando se estariam realmente dispostos a conversar, explicando que esse trabalho educativo do próprio G1 tem sido feito em colaboração com outras instituições e já estaria (gosto de pensar assim) gerando diminuição significativa de ocorrências com fatalidades, beneficiando a própria polícia e o sistema de saúde.
O que seria o jornalismo compassivo então?
Uma abordagem jornalística aplicável a qualquer tema, que busca favorecer o cultivo de florescimento humano e felicidade genuína, individual e coletivamente.
Parte do entendimento de compaixão como o desejo profundo de que o outro não sofra, acompanhado de ações, quando possível. Isso é diferente de “ser bonzinho”, complacente, sentir dó. Ao sentir dó, enxergamos o outro como estando abaixo de nós. O olhar compassivo vê o outro como igual.
Não é focar só em “notícias boas” ou reportagens pra você se sentir bem. Também não significa ignorar acontecimentos ruins.
Dalai Lama oferece explicação didática sobre compaixão e como cultivá-la mais
É uma maneira de narrar que evita catalisar visões de mundo danosas, estreitas ou preconceituosas (por exemplo: machismo, sexismo, racismo, consumismo). Ao mesmo tempo, busca oferecer entendimento amplo das questões tratadas e evita abordagens sensacionalistas que acabem por confundir e enganar os leitores.
Busca oferecer perfis amplos das pessoas envolvidas, entendendo-as como seres bem maiores do que o caso no qual foram retratadas, seja a situação boa ou ruim. Afinal, alguém que fez algo incrível não ganha uma carteirinha dizendo que foi e sempre será um herói, como algumas reportagens dão a entender. Assim como alguém que fez algo terrível não é, automaticamente, um monstro. Evita solidificar a personalidade das pessoas de modo fantasioso e irreal.
Três aspectos centrais para o jornalismo compassivo seriam:
1. entender o quão poderosa e cortante a compaixão pode ser
2. a alfabetização emocional, a maior compreensão de nosso mundo interno e emoções
3. o outro seria entender o que é felicidade genuína (em oposição a felicidade condicionada) e florescimento humano
O aprofundamento dessa abordagem envolveria ainda conceitos como economia de atenção, comunicação não-violenta, fadiga por empatia e conversa apreciativa.
Mas o jornalismo deve ser imparcial…
Esse é outro mito a ser eliminado das escolas de comunicação. Ainda que possa haver uma saudável busca por menor parcialidade, sempre há vieses envolvidos.
O local onde vivemos, nossa criação, nossos direcionamentos políticos, nosso estado emocional, os interesses das organizações nas quais trabalhamos, o tamanho dado a notícia, a escolha do título, do bigode, a maneira como os elementos são apresentados, as ênfases textuais, os adjetivos, os advérbios, as fotos escolhidas, as legendas, a seção na qual a notícia será veiculada, o tamanho da equipe direcionada para cobrir o tema, a quantidade de recursos financeiros alocada para cobrir o tema, o tempo disponível para se escrever a notícia ou reportagem. Isso pra citar apenas alguns dos elementos capazes de afetar o trabalho de um jornalista.
Sendo assim, se a parcialidade é inevitável, que seja em prol do florescimento humano e da felicidade genuína. E aqui encerro essa longa e tortuosa introdução do que seria o jornalismo compassivo.
Agora adoraria escutar vocês.
Faz sentido propor essa abordagem? Sobre quais pontos desse texto teriam dúvidas ou críticas? O que acharam da notícia refeita?
Espero avançarmos juntos por esse caminho.
Um grande abraço!
Para aprofundar:
- O que podemos fazer para salvar o jornalismo, de Pedro Burgos
- Como os jornalistas podem escapar do viés do agora, de Pedro Burgos (em inglês)
- A apresentação do BuzzFeed sobre a “Rede dos entediados no trabalho”
- Notícias: manual do usuário, livro de Alain de Botton
- What’s wrong with the media, vídeo da The School of Life
- A mental-health epidemic in the newsroom, ótima série em cinco partes do The Huffington Post
- Kristin Neff aborda as diferenças entre auto-estima e auto-compaixão (vídeo em inglês)
- Nicholas D. Kristof, premiado colunista do The New York Times, fala sobre jornalismo e compaixão em seu trabalho (podcast em inglês)
- Artigo da Universidade de Wisconsin sobre a prática compassiva do jornalismo (em inglês)
- Compassion is not journalism’s downfall, it’s journalism’s salvation
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