Tomo hoje a atenção dos senhores e senhoras para falar de um dos assuntos mais polêmicos e comentados da semana passada: a decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito da união estável entre pessoas do mesmo sexo, ou simplesmente união (estável) homoafetiva.
Curiosamente, meu texto inaugural aqui no site foi justamente sobre uma notícia de teor similar: o primeiro casamento homoafetivo da América Latina, realizado na Argentina.
Adianto que o objetivo principal desse texto é analisar a decisão do ponto de vista técnico. Portanto, um pouco por vício, outro pouco por necessidade, a linguagem pode ficar meio obscura, assim, se ficar com alguma dúvida é só dizer nos comentários.
Meu amigo Fernando, do Gravataí Merengue, escreveu um artigo concordando com a decisão sob o argumento de que o Estado proclama uns valores fundamentais +A e em seguida estabelece -A e que o STF fez uma correção material e tal e coisa. Disse, ainda, que não há como sustentar que o tribunal tenha excedido suas funções.
Comecei estas linhas determinado e contestá-lo. Quando terminava de escrever me convenci de que eu simplesmente já não tinha mais certeza e me coloquei a reescrever desde o início. Imagino que “fazer ciência” seja algo mais ou menos parecido com isso. Então, daqui em diante tentarei fornecer aos senhores alguns meios para que avaliem por si mesmos. Acompanhem o raçocino.
A diferença entre regra e princípio
A doutrina jusfilosófica/constitucional mais modernosa e que está super na moda – cujos representantes mais famosos são Ronald Dworkin, na tradição anglo-americana, e Robert Alexy, no sistema europeu continental, no qual nos incluímos – costuma distinguir entre dois tipos fundamentais de normas: os princípios e as regras.
Grosso modo, os primeiros seriam cláusulas gerais e abertas, graduáveis, que serviriam de norte dos sistemas jurídicos, ou como dizem alguns, “mandamentos de otimização”; já as regras seriam normas “fechadas”, no sentido de terem de ser cumpridas de uma maneira pré-determinada (até pelo próprio enunciado). A grande questão gira em torno de responder como proceder quando houver contradição.
Tradicionalmente, fala-se em “conflito de regras” e “colisão de princípios”, que tratariam de tipos diferentes de contradição, bem como de modos diferentes de resolução. No conflito de regras a solução seria a “do tudo ou nada”, onde uma das regras deveria ser afastada e a outra aplicada (os critérios para isso não vêm ao caso). Na colisão de princípios, seria necessário fazer uma “ponderação” entre eles numa solução que conseguisse harmonizar a convivência mútua dos colidentes.
A pergunta que surge daí é: e quando o contrassenso for entre princípio e regra? Então, aí fica polêmico e o panorama resumido é mais ou menos o seguinte: uns dizem que isso não ocorre, pois os princípios sempre determinam a leitura das regras; entre os que aceitam, afirma-se que prevalece aquele de maior hierarquia, já se ambos forem constitucionais, aí decide-se no pega-varetas ou, se for urgente, no cara-ou-coroa – em qualquer caso vence o melhor de três, sendo proibido chamar a terceira de “nega”.
Entendendo os termos da polêmica
Os ministros julgaram simultaneamente duas ações, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277. Ambas estão previstas pela própria Constituição e servem exatamente para questionar a constitucionalidade de alguma lei ou ato normativo.
Num caso, o Governador do Rio pedia a “interpretação conforme à Constituição” (do alemão Verfassungskonforme Auslegung) de alguns dispositivos do Estatuto dos Servidores Civis do RJ. Além disso, pediu também a “revisão” (abstrata) de todas as decisões judiciais ou administrativas que negassem de alguma forma o reconhecimento da união estável homoafetiva.
No outro, o Procurador-Geral da República pedia a interpretação conforme do art. 1.723 do Código Civil.
Essa tal de “interpretação conforme” é umas das técnicas de controle de constitucionalidade e também um princípio norteador na interpretação de qualquer texto jurídico. Tem dois momentos ou faces: (a) na interpretação de documentos jurídico-normativos de acordo com normas e princípios constitucionais e (b) na determinação de qual interpretação deve prevalecer, quando o texto admitir mais de uma.
Então vamos ver o que diz esse tal art. 1.723, que é cópia do art. 1º da Lei nº 9.278/96:
“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
Por sua vez, são praticamente reproduções do art. 226, § 3º, da Constituição:
“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
Dados os elementos, coube então aos ministros responder se podia ou não e quais os fundamentos.
Decisão correta ou gambiarra?
Observem que, apesar da diferente redação, os dois artigos dizem essencialmente a mesma coisa, já que os requisitos estabelecidos pelo Código Civil influem absolutamente em nada no que diz respeito ao sexo ou sexualidade dos envolvidos.
E justamente aí reside o problema: a regra constitucional não parece padecer de obscuridade. O impasse então toma contornos mais palpáveis e delicados. Vejam bem, se o texto fosse apenas da lei, bastava declarar a inconstitucionalidade com redução de texto – literalmente mandando riscar a expressão “entre o homem e a mulher” – e correr pra galera! No entanto, o texto também está na Constituição e eles não podem, por uma série de razões, dizer que a Constituição mesma é inconstitucional.
Exatamente por isso, o argumento dos ministros foi basicamente o seguinte: o fato de o dispositivo enunciar “entre o homem e a mulher” não implica que tenha restringido a união estável a essa única hipótese; além disso, a Constituição Federal só faz menção ao sexo dos indivíduos esta vez, não a repetindo em nenhum outro ponto daquele capítulo, nem mesmo quando fala do casamento.
Para fundamentar a decisão usaram, principalmente:
- Princípio da dignidade da pessoa humana – fundamento do Estado (art. 1º, III).
- Princípio da igualdade – direito e garantia fundamental individual (art. 5º, caput e inciso I).
- Princípio da não discriminação – objetivo fundamental do Estado (art. 3º, IV).
A fundamentação é de fato boa e forte. Por outro lado, não se pode perder de vista que a norma indiretamente questionada também é constitucional; mais do que isso, é originária, foi elaborada e posta pelo constituinte, que, em regra, é soberano e pode colocar na Constituição o que ele quiser, inclusive contradições.
Daí estarmos diante, ainda que indiretamente, de um curioso pedido de interpretação conforme a Constituição da própria Constituição Federal, o que já é por si só estranho. Não bastasse isso, ao que tudo indica, resvala na controversa possibilidade de existirem normas constitucionais inconstitucionais.
A questão é que dentre os clássicos princípios hermenêuticos – Hermenêutica Jurídica é a área que tenta estudar regras, modos e critérios da interpretação dos textos normativos – existe um dizendo que “a Lei não contém palavras inúteis”.
Por fim, esclareço para quem não tem muito contato com toda essa frescuraiada jurídica: dizemos que o STF, no exercício de suas funções jurisdicionais como “Guardião da Constituição” e nos limites intrínsecos à separação dos Poderes, age como legislador negativo, o que significa que a ele é dado o poder de limar normas do ordenamento, mas nunca inserir novas.
Assim, o ponto crucial aqui é responder: Pode haver contradição originária na própria Constituição? Se houver, pode o STF corrigi-la?Eu, sinceramente, não tenho certeza e particularmente me sinto inclinado a dizer que a corte não tem esse poder.
Levanto essa questão aqui, porque, não sei se vocês pensam nisso, é preocupante ver os tribunais decidindo politicamente (contra a lei), por mais nobres que sejam os motivos e a causa. A menos que a situação seja uma aberração insustentável como foi o caso do Nazismo, que foi inteiramente baseado em leis (tanto que os oficiais julgados em Nuremberg alegaram que só estavam cumprindo as leis e as ordens) ou de um Apartheid.
Não parece ser o caso, razão pela qual o meio adequado para resolver o problema seria a Emenda Constitucional. Mas, como disse, não tenho mais certeza, apenas me sinto inclinado a pensar que o tribunal fez uma gambiarra para suprir uma omissão legislativa –um modo de proceder que vez ou outra o tribunal adota mesmo.
E finalmente digo que sou terminantemente favorável à decisão do ponto de vista ético e jurídico (ressalvadas questões puramente técnicas como falei acima), acho que sequer deveria haver discussão e menos ainda intromissão da Igreja. É profundamente estúpido perguntar para o Carlos, a Ana e o Joseph Ratzinger se o Roberto e o Jorge, homens adultos e capazes, podem se unir e casar no cartório. Soa pouco mais do que absurdo.
Sobre outras espécies de argumentos dissertei noutro lugar e endosso e aplaudo fervorosamente o voto do ministro Celso de Mello que, no popular, meteu uma bicuda:
“São irrelevantes, do ponto de vista jurídico, as opiniões morais ou religiosas que condenam as relações homossexuais. Ainda que tais opiniões constituíssem o pensamento hegemônico hoje nos órgãos políticos representativos (…), nem a maioria, nem mesmo a unanimidade dessas opiniões, está acima da Constituição.”
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