“Papai, a vovó vai trazer o Brasil com ela?”
Sete meses depois de mudar de país, o filho ainda gostaria que alguém trouxesse em suas malas o calor, a língua, os pássaros, a família e o estoque infinito de farinha de mandioca que ele não sabe de onde vem, mas sabe que gosta.
Faz frio e chove lá fora. Cinzas, os dias terminam cedo. O sol ainda vai dormir às 17h. Se o Fred de 15 anos, lá na ensolarada Penápolis, coração do Brasil, visse essa cena não acreditaria.
20 anos atrás, só o ato de voar de avião parecia algo tão insólito que era mais fácil contentar-se em sonhar com meter os pés no mar, distante mais de 500 quilômetros da cidade natal. As viagens da infância costumavam ser para dentro da gente mesmo.
Mas a vida foi gentil. Estudei jornalismo, ainda no interior, arrumei um emprego, conheci minha esposa, cuja família – vejam só – era alemã. Depois de uma primeira temporada fora do país, nunca me senti tão caipira.
Caminhar pelas ruas de Berlim – polvilhadas de gente do mundo todo e temperadas pelos quitutes dos turcos que para lá emigraram – me fazia pensar: o que me faz sentir estrangeiro em meio a tanta fartura?
Em Berlim, toda parte racional é excelente: transporte público conecta a cidade de ponta a ponta, há segurança e lá desabrocha o romance improvável entre o livre mercado e o estado de bem-estar social que o Brasil polarizado de hoje não pode nem vislumbrar. Que faltava, então?
Aquela coceirinha na alma só poderia ter caráter sentimental. Guardei-a numa caixinha para cuidar dela quando voltasse para casa.De volta ao Brasil, segui o conselho do médico-escritor Drauzio Varella:
“Se você não é um gênio como Tolstói e Dostoiévski que podem converter qualquer banalidade em um grande livro, escreva sobre algo que só você poderia contar”.
Decidi narrar, então, a trágica e violenta colonização da minha cidade, fundada sobre os ossos dos kaingangs, em um romance chamado “Desamparo” (2019). Mergulhei na quentura do sertão paulista tão distante da neve alemã e habitado por saracuras, jaós, ipês, perobas, cabriúvas e vinganças sangrentas.
Quando o livro ficou pronto e foi lançado, minha esposa ganhou uma bolsa para estudar em Berlim e voltamos para a terra dos seus ancestrais com nosso filho de dois anos e meio e as memórias do cerrado caipira.
Morar em outro país com uma criança pequena te leva a uma imersão muito maior na cultura local. Você passa a conviver com os coleguinhas do seu pivete e com os pais desses coleguinhas. Você precisa entender o sistema de saúde e de educação, as regras de etiqueta e até as tradições locais celebradas pelos pimpolhos alheios.
Seu filho passa a ser um pequeno embaixador cultural da pátria adotiva assim que aprende a nova língua. No nosso caso, o filho passou 4 meses chorando e implorando para voltar para casa. No quinto mês fez-se o milagre da transubstanciação. Nosso pequeno havia tornado-se um poliglota capaz de comunicar-se na língua bárbara muito melhor que eu (que ando fazendo um curso intensivo diário) e disposto a corrigir minha pronúncia precária.
Com a língua aclimatada, a creche deixou de ser tortura e os pequenos locais deixaram de ser inimigos. Entendemos as comemorações natalinas (que por aqui correm o mês de dezembro inteiro) e tivemos que ceder às emoções insossas de um dia de “Carnaval Alemão”.
O filho ainda espera que a avó traga o Brasil na mala. Mas não percebe que, ao enunciar esse desejo, sua voz sai com um leve sotaque germânico e suas raízes alargam-se: transcontinentais.
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