Antes de começar a descascar as eleições gerais de 2010, gostaria de deixar claro duas coisas. A primeira é que eu acredito no voto como instrumento de transformação política e social,  que instituições políticas sólidas fazem um país melhor e  também acredito no brasileiro, em todo potencial do nosso país. A segunda coisa é que, como já dissemos, o Tiririca é um coitado e o buraco é mais embaixo.

África do Sul, 1993: Se você acha chato sair para votar, experimente ficar 40 anos sem fazer isso

Pesquisa eleitoral pra que mesmo?

Até domingo de manhã, a ciência estatística dos institutos de pesquisa era taxativa: Dilma bateria Serra no primeiro turno. Mesmo com as margens de erro, o candidato tucano não faria cócegas na preferida de Lula. Nessa mesma toada, a dupla do Senado paulista já estava decidida: Marta e Netinho.

Ao final da tarde, quando às pressas entreguei a urna para os assistentes da escola em que trabalhei, tive uma certeza: vai ter segundo turno. Na seção em que fui presidente, Dilma bateu Serra pela contagem de apenas cinco votos, em um universo de 298 votantes. O Boletim de Urna também acusava outra surpresa: para o Senado, Aloysio Nunes teve o mesmo número de votos que Marta e Netinho. Somados!

A primeira grande lição que o pleito desse ano nos deixa é que os institutos de pesquisa andam descalibrados. Espero que seja somente um problema de método e amostra, que é perfeitamente perdoável e compreensível. Não quero crer que as pesquisas, ditas imparciais e científicas, estejam impregnadas de desvios amostrais tendenciosos, pelos quais os recortes favoreçam determinado candidato. Afinal, numa cidade como São Paulo, podemos ter resultados diferentes dentro de um mesmo bairro.

Síndrome de Mr. Magoo: Vox Populli, Ibope e Datafolha erraram a mira.

Tiririca… Quem ri de quem?

Ao chegar em casa, liguei a tevê para acompanhar a apuração. Meio entendiado pelo bololô dos analistas políticos, sintonizei em um jogo de futebol americano. Entre um tackle e outro, o narrador anunciava a plenos pulmões: “Tiririca já ultrapassou os 500 mil votos, minha gente!”. Aos risos, o jovem comentarista do jogo soltou: “Um minuto de silêncio pela morte de tudo que é bom, belo e justo!”.

A eleição do palhaço Tiririca foi a coqueluche dessas Eleições. Com jargões grudentos (“Vote no Tiririca, pior que está não fica”) e encenações-pastelão que envolveram até seus pais, o cearense Francisco Everardo Oliveira Silva conquistou 1.353.820 votos, se elegendo para o cargo de Deputado Federal por São Paulo pelo Partido da República.

Na verdade, nessa história toda, Tiririca é um coitado. O Partido da República (PR), outrora Partido Liberal (PL), se aproveitou da popularidade do artista para recuperar fôlego na Câmara. A eleição de Tiririca arrastou mais quatro parlamentares do partido para Brasília. Parlamentares esses que se o PR jogasse limpo, não conseguiria eleger (veja aqui a lista completa de quem puxou quem).

Se ao menos Tiririca tivesse passado por essa escolinha…

Tiririca é um coitado pois foi um títere da canalhice partidária e vítima da fragilidade do sistema eleitoral. Um artista analfabeto que experimentou o fel das desigualdades sociais, preconceitos e injustiças de nosso país, se entregou ao oportunismo do coronelismo de nossos partidos. Ao invés de recuperar sua dignidade como indivíduo, a vendeu sob um fino verniz de protesto. Com sua popularidade, o humorista poderia levantar a bandeira da cultura ou propor melhorias na educação infantil. No entanto, preferiu trocar uma oportunidade de ouro por um troféu de barro.

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“O brasileiro tem o que merece”… E você é o quê? Americano?

O lamento quanto a eleição de Tiririca ecoa pelos salões da sociedade decente do nosso país. Jovens bem nascidos e “educados”, como o nosso jovem comentarista de futebol americano, parecem ter decorado os mesmos jargões: “O Brasileiro tem o que merece”, “Brasileiro não sabe votar”, entre outros disparos mais preconceituosos e muito mais ignorantes. Nesse sentido, Maria Rita Kehl foi genial em seu texto para o Estadão: “Dois pesos…”.

Comentários desse tipo são a mais pura expressão de que no Brasil não existe cidadania. Estamos tão enclausurados em nossos confortos, que a culpa pelo país estar “Isso que tá aí” é do governo, dos analfabetos, dos partidos, do funcionalismo público e até do futebol. A culpa é de todo mundo, menos nossa.

Número do Candidato + Confirma: um bom começo para mudar essa paisagem.

Mas será que nós votamos bem? Será que não repetimos o comportamento daquele eleitor do Tiririca, só que com uma roupagem diplomada e bem vestida?

Quantos de nós, que votamos em candidatos “sérios”, sabemos de fato quais suas propostas? Quantos de nós, envolvidos em um falseamento ideológico, não condicionamos nosso voto por circunstâncias virtuais e irrelevantes (tenho faculdade, não voto nesse partido)? Quantos de nós não votamos em um conhecido, numa ilusão de auferir vantagens futuras quaisquer?

Não, nós não somos assim. Somos conscientes, sabemos o que fazemos. Assim como os tantos eleitores que, mesmo com a nojeira corrupta do marido comprovada, levaram Weslian Roriz para o segundo turno no Distrito Federal.  Assim como todos aqueles que, ignorantes da saudável separação do Estado e da Religião, elegeram pastores, padres, bispos e renovadores carismáticos pelo país afora. Sem contar os pseudo-famosos e as caricaturas que habitarão o parlamento a partir de 2011.

Para todos nós, que somos cheios de consciência e certeza, fica a sugestão de um mantra vindo de Gandhi: “Temos que ser a mudança que queremos para o mundo”. De novo, “Temos que ser a mudança que queremos para o mundo”. Não adianta querer limpeza se sujamos nossas ruas. Não adianta querer respeito se não respeitamos. Não adianta querer cidadania, se não somos cidadãos.

O segundo turno está aí. Ainda temos uma chance. E depois das eleições nossa ação deve continuar. Por isso, seja a mudança que você quer. Para o seu mundo. Para o nosso país. Para sua comunidade. Para o cara que trabalha aí do seu lado. Para você mesmo.

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Flaco Marques

Rapaz do interior de SP que vive suas desventuras na cidade grande. Poliglota valente, busca equilibrar o jeito cosmopolita de ser com a simplicidade caipira de viver.