A culpa é da testosterona. Ou, pelo menos, era, já que estudos recentes comprovam que explicar as diferenças de gênero pela presença do hormônio é um equívoco científico.
As desculpas esfarrapadas parecem, enfim, estar com os dias contados.
A professora de filosofia e história Cordella Fine se debruçou sobre a questão e deu vida ao livro Testosterona Rex, publicado no final de 2018. Na obra, a britânica desconstrói a teoria de que a evolução biológica desembocou na distinção entre os sexos e vai além, jogando, também, luz à discussão sobre as implicações sociais da ideia.
Quer um exemplo prático? Quando oficializou sua candidatura à presidência, em 2017, Ciro Gomes lançou mão da tal teoria para comparar diferenças comportamentais entre ele e a única mulher candidata, Marina Silva:
"Não a vejo com apetite de ser candidata, ou então é uma tática nova que eu nunca vi na minha vida pública, que é o negócio de jogar parado, de não dar opinião. Não vejo ela com a energia e o momento é muito de testosterona. Eu não elogio isso, é algo do Brasil. É um momento muito agressivo, e ela tem uma psicologia muito avessa a isso"
Ciro endossa o coro daqueles que usam as diferenças químicas como justificativa para diferenciações comportamentais. Cordella explica em sua obra que tal ligação teve início com um clássico estudo realizado em 1948:
“Em meados do século passado, o biólogo e geneticista britânico Angus Bateman conduziu uma série de experimentos com as drosófilas (Drosophila melanogaster), também conhecidas como mosquinhas-das-frutas. No fim das contas, elas se tornariam a fonte de uma torrente de alegações sobre as diferenças psicológicas que se desenvolveram entre mulheres e homens”.
Como achado da pesquisa, Bateman apresentou ao mundo sua teoria de que, naturalmente, machos tendem a ser mais promíscuos e que fêmeas tendem a ser mais seletivas nas escolhas dos parceiros sexuais.
Em 2012, o estudo foi refutado por pesquisadores da Universidade da Califórnia. Patrícia Gowaty, professora de ecologia e biologia evolucionária e também líder do recente estudo, diz que algumas evidências anteriores foram aceitas como fatos e que, por isso, as conclusões de Bateman talvez nunca deveriam ter sido publicadas. Esse trecho do G1 explica exatamente como ocorreram os dois experimentos.
"O estudo de 1948 analisou o comportamento de populações de cinco ou três moscas de cada sexo em um vidro. Os insetos formaram pares livremente e Bateman examinou os filhotes ao virarem adultos.
O problema, segundo os pesquisadores atuais, ocorreu na hora de observar os respectivos pais de cada mosca da nova geração. O autor havia analisado mutações visíveis que só poderiam ser transferidas de pai para filho. Assim, escolheu apenas as moscas que receberam tanto alterações do pai quanto da mãe, deixando de fora várias outras possibilidades adaptativas.
Hoje em dia, os geneticistas modernos usam evidências moleculares para determinar o parentesco de cada filhote, mas na década de 1940 a análise de DNA ainda não estava disponível.
Além disso, no novo estudo, Patricia descobriu que animais com duas mutações graves eram inferiores a 25% do total e menos propensos que os outros a sobreviver até a idade adulta. Outro problema foi que a metodologia atribuiu mais descendentes aos pais que às mães, algo impossível levando-se em conta que cada filhote tinha apenas um pai e uma mãe.
Foi por essa razão que Bateman concluiu que os machos produzem mais descendentes quando têm múltiplas parceiras, enquanto as fêmeas têm o mesmo número de filhos independentemente de se relacionar com um ou vários companheiros."
É justamente para se afastar dessas correntes teóricas que o livro existe. Não há uma relação que comprove a ligação entre maior presença do hormônio a um aumento daquilo a que, hoje, chamamos masculinidade — e que estamos, aliás, a todo custo, tentando entender e repensar.
Quando um argumento utilizado a rodo cai por terra, há aí uma oportunidade de ouro. Neste caso, por que não trazer à tona a própria reflexão sobre comportamentos que matam e adoecem numa esmagadora maioria mulheres, sim, mas também afetam os próprios homens? É o argumento científico falho saindo de cena para nos dar a chance preciosa de mergulharmos numa investigação social profunda.
“Em certo sentido, mulheres e homens não são tão distintos ou diferentes quanto às vezes tendemos a pensar. Geralmente, existe uma grande presença tanto de traços considerados ‘masculinos’ quanto de traços ‘femininos’ em ambos os sexos. Assim, muitos homens podem ser mais ‘femininos’ (mais empáticos do que a mulher média ou com preferência por apenas um parceiro sexual) e muitos homens podem ser mais ‘masculinos’ (por exemplo, uma pessoa propensa a assumir mais riscos ou mais competitiva que o homem considerado comum). Portanto, não faz sentido perguntar ‘uma mulher pode ser como um homem?’ A qual homem você se refere? Existem sim diferenças entre os sexos, mas estas se ‘misturam’. Isso significa que não há ‘homem típico’, e simplesmente saber se alguém é homem ou mulher não significa que você sabe como ele é”, afirma a escritora, em entrevista à revista Época.
O que Cordella Fine está tentando nos dizer é que há limites da abordagem científica para justificar o comportamento humano e que os tipos de situações em que nos encontramos e como as interpretamos é parte do que chamamos de “gênero”.
Nesse sentido, ao que tudo indica, o Testosterona Rex da forma como o conhecemos — e aceitamos — está cedendo espaço para que compreendamos as masculinidades. Mais que isso: para que se possa, enfim, incluir outros tipos no espectro do que é, hoje, ser um homem.
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