Já tive muitas experiências marcantes em minha vida, mas vou contar aos leitores PapodeHomem como passei pelo meu primeiro – e espero último – terremoto de verdade. 27 de fevereiro, o dia em que o Chile ficou com uma perna para cada lado dos Andes.
Moro no Chile há 3 anos e aqui os tremores acontecem com alguma frequência. Temos um a cada dois meses. Em geral são rápidos e muitas vezes nem sentimos, apenas ouvimos as coisas se mexendo. Quando dividia o antigo apartamento com uns amigos tinha a impressão de que algum retardado estava andando na bicicleta ergométrica no meio da noite.
O terremoto em Santiago, o lado desenvolvido de Chile
Link YouTube | Vídeo gravado de um celular
0-5 segundos: Estava meio dormindo, meio acordado quando senti um tremor. Não era forte, mas foi o suficiente para me acordar àss 3:30 da manhã. No começo pensei “Não é nada”. Por via das dúvidas, levantei e já fui colocando meu shorts.
5-10 segundos: A coisa foi ficando mais forte. Saí do apartamento e deixei a porta aberta. Pensando “Até o tempo de eu chegar na escada, já terminou”. Mais uns 5 segundos.
10-20 segundos: Quando cheguei na escada a coisa já estava ficando forte. Nem pensei, desci que nem um foguete. Tudo muito rápido, parecia que o prédio ia cair, eu só via a frente, perdi completamente a visão periférica.
Em uns 5 segundos desci os 5 andares e encontrei uma menina que estava acabando de chegar com o cachorro tentando sair. O medo dela era tanto que ela não conseguia empurrar a porta da escada. Empurrei a porta e saímos. Ela saiu pela frente, eu saí por uma porta ao lado. Foi a primeira porta que vi e estava travada (logo no começo do terremoto ela ficou travada).
Não tive dúvida: meti o pé, quebrei o vidro e saí. Enquanto passava pelo corredor rumo à liberdade pensava: “Droga de corredor, deveria ter saído pela frente”. Tinha a clara impressão que o prédio ia cair em cima de mim antes de chegar do outro lado.
Finalmente estava do lado de fora, vendo o fim do terremoto. Essa coisa da ação me lembra o “sequestro da amígdala”, que é quando parte do cérebro assume o comando para situações de emergência. Às vezes a pessoa nem lembra o que aconteceu. Processo descrito no Inteligência Emocional, de Daniel Goleman.
Logo em seguida cortaram a luz. Os sistemas de emergência fazem isso automaticamente.
Os celulares e telefones pararam de funcionar e as pessoas começaram a sair de carro no escuro. No meu prédio, todo mundo ficou em casa; apenas uns 10 desceram. Todos tranquilos, mas diziam que aquele realmente tinha sido mais forte. Todos lembraram do de 1985. Pelo rádio ouvíamos as primeiras notícias de que no sul a coisa tinha sido feia.
Uma meia hora depois voltou a luz. Foram 60 réplicas (pequenos terremotos de grau 5 ou mais) pelo país no sábado. Meu bairro não teve problemas estruturais, como quase toda Santiago, cidade feita para terremotos. O maior terremoto já registrado no mundo foi no Sul, em 1960. Tão forte que não cabia na escala Richter. Tiveram que mudar a escala.
Se você um dia quiser discutir com um chileno, discuta sobre futebol. Sobre terremoto eles entendem e as normas de construção são rígidas. O que não quer dizer que em todos os lugares do Chile as normas sejam respeitadas.
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Houve uma tentativa de saque em supermercado em uma cidade chamada Lampa. A polícia interviu e prendeu 13 pessoas na hora. Não houve mais nenhum saque grande em Santiago.
Mesmo em Santiago, houve algum desabastecimento. Mas a reposição já começa.
Mas foi uma destruição parcial. A vida prossegue com as pessoas pela rua e alguns comércios abertos.
E assim termina o terremoto na parte desenvolvida: minha casa estava com água, luz, gás e sem rachaduras, como se nada tivesse acontecido.
Depois do terremoto, o outro Chile
O primeiro grande problema foi quando a presidenta, Michelle Bachelet, minutos depois, ainda na madrugada, tentou acalmar as pessoas pelo rádio dizendo que estava tudo bem e não havia perigo de Tsunami. Logo em seguida o improvável Tsunami atacou diversos povoados costeiros matando centenas.
Tivemos prédios que desabaram no sul – misteriosamente quase todos das construtoras Socovil ou Paz.
“Assistia televisão e de repente estava vendo as estrelas pela janela”, disse uma moradora. Ainda se estão analisando as causas, mas só aconteceu com os prédios mais novos, com menos de 5 anos e de certas construtoras.
No dia seguinte pela manhã começaram alguns saques – de forma “inocente – e a polícia evitou enfrentamento. Eram poucos policias, desestruturados e temiam serem vistos como força repressora insensível batendo no povo faminto. Num dos saques se fala em quase mil pessoas.
Link YouTube | Galera levando tudo o que dá
Depois vimos a polícia com a brilhante ideia da permitir os saqueios, de forma “controlada”.
A coisa em poucas horas fugiu de controle e em outros pontos havia gente levando televisores de plasma e máquinas de lavar e até caixas eletrônicos.
No domingo, após a tentativa fracassada de roubo à loja La Polar (uma espécie de Casas Bahia), os criminosos incendiaram a loja e o bairro foi junto.
O exército sai às ruas nas principais cidades do Sul e é decretado toque de recolher. Logo no primeiro dia já temos um baleado pelo exército. Tivemos 3 terremotos no Chile pobre: um físico, um social e um político.
Com todos os supermercados saqueados e grande parte das lojas, inclusive de eletrônicos e farmácias, o Sul enfrenta desabastecimento e a iniciativa privada não tem a mesma pressa – que tem em Santiago – para reabastecer as lojas saqueadas e sem segurança.
O governo não consegue demonstrar a mesma eficiência que teve para o Haiti, quando em 2 horas havia um avião de ajuda pronto.
A boa notícia é que aos poucos a ajuda vai chegando e a coisa vai se normalizando. Foram relativamente poucas vítimas e o país se mobiliza. Fui tentar doar sangue algumas vezes, mas já há tantos doadores que estão pedindo para as pessoas voltarem.
E assim termina o terremoto do Chile na metade pobre: tanques nas ruas, toque de recolher e a presidenta indo chorar no colo dos americanos. Como no Haiti.
Mais:
• Fotos impressionantes da destruição aqui e aqui.
• Foto recente do Chile visto do espaço (postada pelo astronauta japonês @Astro_Soichi)
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