Penso, penso, e não consigo decidir se gosto ou não da Slutwalk – em português, a Caminhada das Vagabas.

Pra quem não sabe, a Slutwalk surgiu em Toronto, em abril, depois que um policial disse em uma palestra que mulheres não deveriam se vestir como vadias (“sluts”) para evitar serem estupradas.

Uma causa legítima: não culpar a vítima pela violência. | Fonte: The Guardian.
Uma causa legítima: não culpar a vítima pela violência. | Fonte: The Guardian.

A fala repercutiu e muitas mulheres, indignadas com a normalização da ideia de que a culpa da violência é da vítima, decidiram reagir. Vestidas de putas, com maquiagem carregada e saias curtas, tomaram as ruas.

O movimento se espalhou rapidamente por várias cidades do mundo, ganhou visibilidade e apoio, inclusive de muitos homens. Chegou até o Brasil, onde vai acontecer no dia 4 de junho, em São Paulo, com o nome Marcha das Vadias.

Até aí, magnífico. Afinal, uma das formas mais horrendas do patriarcado que nos cerca é a ideia de que mulher está pedindo pra ser estuprada por se vestir de tal e tal jeito. Como se estupradores só atacassem gostosas de minissaia, e não mulheres de todas as idades, padrões de beleza, usando todo tipo de roupa. Como se estupro fosse a respeito de machos excitados que não conseguem se controlar, e não demonstração de poder e violência.

Dá pra se reapropriar de uma palavra que nunca pertenceu às mulheres?
Dá para se reapropriar de uma palavra que nunca pertenceu às mulheres?

Apesar disso tudo, ainda fica o estigma. Saia curta é sinônimo de se oferecer para o sacrifício, como uma vaca que caminhasse alegremente para o abatedouro. Sair na rua mostrando uns quadrados de pele a mais é como dizer: pode mexer comigo, estou pedindo.

Homens se sentem no direito de falar com você, chamá-la de princesa, de gostosa, ou até coisa pior (“Essa aí eu chupava todinha, hmmm”). A forma como você se veste parece um convite à interação indesejada. Algumas pessoas acham isso inofensivo, uma forma de alimentar o ego feminino; fêmeas extra-carentes podem passar na frente de construção para ouvir xaveco de pedreiro e se sentirem melhor consigo mesmas. Mas a maioria das mulheres não gosta disso.

Existe um olhar de admiração que é educado e respeita o limite; existe outro que te faz sentir como um pedaço de picanha dependurada em ganchos no teto. Um olhar que te transforma em um objeto, te despersonaliza. E esse não é legal.

Ser chamada de puta, vagabunda, vadia, também não é novidade para as mulheres. São os termos a que os homens – e até outras mulheres – recorrem quando querem ofender uma garota. Pode ser um cara que te viu na rua de saia curta, andando de bicicleta, um ex-namorado enciumado ou uma menina invejosa. Vadia, vaca, vagabunda. Vale também chamar de puta, se a menina for promíscua, mesmo que não trabalhe como profissional do sexo.

E aqui cabe uma distinção: slut não significa puta; o termo, em geral, se refere às mulheres promíscuas. Em português, o equivalente seria vadia ou vagabunda. Apesar dessa diferença, os termos se confundem, e é por isso que a Slutwalk declara apoiar profissionais do sexo, e é por isso que ex-prostitutas se sentiram ofendidas com ela.

Usar essa roupinha não é uma licença para puxar papo.
Usar essa roupinha não é uma licença para puxar papo.

As palavras vadia e vagabunda, assim como slut e em, muitos casos, “puta” e “whore”, foram criadas por homens para humilhar e degradar as mulheres. E realmente ofendem: em alguns casos, porque as mulheres não se identificam; em outros, como no meu, pela ideia implícita de que a pior coisa que uma mulher pode fazer é ser promíscua, dar pra quem bem entender. A prostituição seria (ênfase no “seria”) a expressão máxima dessa liberdade sexual, e por isso deveria ser celebrada.

Então, a ideia por trás da Slutwalk, além de protestar contra culpar a vítima, é se reapropriar da palavra slut, dar a ela um significado positivo, empoderador.

Isso já aconteceu antes na história: o movimento negro, por exemplo, reivindicou para si o uso da palavra “preto”, que passara a ser usado pelos brancos para diminuí-los e humilhá-los.

Só que no caso de “slut” é diferente. A palavra nunca foi usada pelas mulheres; foi criada por homens para xingá-las, humilhá-las, espezinhá-las. Seja para nomear as vagabundas metafóricas (mulheres que usam saia curta) ou literais (prostitutas e mulheres promíscuas em geral), o uso do termo é sempre pejorativo.

Aí é que as coisas começam a ficar complicadas. Porque o termo “slut”, afinal, está associado à prostituição. Não é uma associação direta: vadia e puta não necessariamente se equivalem, uma é profissional e a outra não. Mas no imaginário social, as palavras – e os papéis – se confundem. Na Slutwalk, as participantes se vestem de putas, que dizem apoiar e chamam de “irmãs”.

Uma parcela das feministas quer resgatar a prostituição como algo emponderador. Afinal, o corpo é da mulher e ela pode dispor dele como quiser. Certo. Mas e a prostituição infantil? As crianças raptadas para servirem de escravas sexuais? As putas que vivem em regime de semi-escravidão, trabalhando a troco de drogas e mantidas na linha na base da porrada pelos cafetões? Os clientes violentos que pensam estar lidando com um pano de prato, uma penteadeira, um brinquedo de carne, qualquer coisa, em vez de uma pessoa?

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 Picanhas no açougue: é no que transformam as mulheres alguns olhares agressivos.
Picanhas no açougue: é no que transformam as mulheres alguns olhares agressivos.

Talvez chegue o dia em que a prostituição seja apenas uma questão de mercado, uma opção diferente para ganhar a vida (“Faço Odontologia ou viro puta?”), mas hoje essa prática não se resume a escolhas pessoais. E foi esse questionamento que fez Rebecca Mott, ex-prostituída, ao explicar porque não participaria da marcha.

Não é questão de fazer um julgamento moral. A puta que é feliz, que tem uma vida boa, não me preocupa. O complicado aqui é a glamourização de um estilo de vida que, na prática, traz sofrimento a muitas mulheres.

Muitas mulheres que participam das Slutwalks estão em uma posição confortável: moças privilegiadas que não conhecem a rotina real de uma puta. Querem se solidarizar com as putas, chamá-las de irmãs, mas o que realmente sabem sobre as dificuldades da prostituição? Certamente não o suficiente, se pensam que isso é algo a ser glamurizado. Ser puta não é necessariamente sinônimo de liberdade.

Claro que ninguém quer ficar presa nesses rótulos, essa dicotomia masculina que divide mulheres entre “putas” e “santas” (ai, Sandy!), como se não houvesse infinitas camadas eróticas e sexuais no meio.

Certamente que uma puta não é merecedora de desprezo por ter essa ocupação, e certamente que nenhuma mulher, puta ou não-puta, vadia ou não-vadia, merece ser estuprada por qualquer razão que seja (muito menos a falta de pano acima do joelho). E certo também que chamar um protesto de Marcha das Vadias chama muito mais a atenção que um ato normal contra assédio e violência sexual. Mas será que é realmente necessário? Será que não há outras formas de chamar a atenção para o problema?

Dá pra glamourizar uma palavra associada à exploração sexual das crianças?
Dá pra glamourizar uma palavra ligada, por associação, à exploração sexual das crianças?

Ou será que a única forma de defender os direitos das mulheres é ser uma feminista cheirosinha, sexy, que se depila e usa salto alto? O tipo que, como escreveu Meghan Murphy, acaba não questionando muita coisa?

Entra em ação justamente o mecanismo que o feminismo se propõe a combater: o fato de que a maior obrigação que uma mulher tem é agradar ao homem. Sua indignação tem que ser palatável, senão ela vira uma chata, solteirona, tiazinha, e isso a gente não deseja nem pra pior inimiga, né?

Então, apesar de concordar com as premissas da Slutwalk, não tenho certeza de que a palavra slut, ou vadia, ou puta, possa ou deva ser reapropriada. Talvez devamos deixar essa palavra para quem realmente se encaixa no conceito dela, e se essas pessoas acharem legítimo ressignificá-la, que o façam.

Por outro lado, tenho amigos (muitos deles militantes do movimento LGBT) que conseguiram se reapropriar com sucesso de termos usados para desqualificá-los. Palavras como putinha, viadinho, cachorrona são usadas carinhosamente. A ideia é que, já que a palavra não vai desaparecer, o melhor é reformá-la. Nas palavras de uma amiga:

“Não estou falando que só porque você é amiga de um viadinho que você pode usar viadinho a torto a direito; tem que pensar em como você usa. Quando a palavra quer dizer algo negativo obviamente não é bom.”

Mas também aqui a palavra é ressignificada por quem realmente se encaixa no conceito dela; não é um grupo de pessoas privilegiadas tentando fazer isso, de forma condescendente, em nome de outros grupos.

Complicado? Muito. Mas acho que dá, sim, para concordar em algumas coisas básicas. Como dizem muitos cartazes vistos nas Slutwalks, temos que parar de dizer às mulheres para não serem estupradas e dizer aos homens para não estuprarem.

O feminismo cheirosinho acaba reforçando a ideia de que as mulheres precisam senpre agradar aos homens.
O feminismo cheirosinho acaba reforçando a ideia de que as mulheres precisam sempre agradar aos homens.

Outro ponto pacífico é que a forma de se vestir, assim como a vida sexual, tem que ser escolhas das mulheres, e elas têm que ser respeitadas. Não é bacana andar na rua com um decote um pouquinho mais aberto e isso ser uma senha para ser abordada. A luta das mulheres tem que estar inserida numa luta maior, a luta por direitos civis, humanos, iguais para todos.

Quanto aos detalhes, vamos concordando em discordar, mesmo entre mulheres, mesmo entre feministas. Porque – e eu não sou a única a ter essa percepção – uma das vantagens da forma feminina de pensar é não precisar estar certa o tempo todo.

Jeanne Callegari

Jornalista e escritora, publicou o livro <a><em>Caio Fernando Abreu:rninventário de um escritor irremediável</em></a>