Acontece quase sempre quando você se manifesta sobre um problema. Pode ser o problema que for, pode ser onde for. Você pode estar preocupado com o avanço da política anti-imigração do governo Trump, com os cortes no investimento em pesquisas do governo Temer, com a situação complexa do Oriente Médio, com o que parece ser um cenário pós-apocalíptico na cidade onde vivem os primos da sua mãe por conta da grave da PM no Espírito Santo.
O que importa é que existe um problema, você está preocupado com ele de forma sincera, você está externando essa preocupação.
Aí, claro, vai inevitavelmente surgir alguém que vai dizer que aquele problema não merece a sua preocupação por algum motivo – é muito longe de você e você devia se preocupar com algo mais perto, é muito perto de você e você devia se importar com algo mais global, houve alguma outra tragédia sobre a qual ele considera que você não se manifestou ou mesmo que ele já estava se manifestando sobre essa tragédia faz tempo e você só chegou agora.
E ainda que isso tenha um pouco a ver com uma certa necessidade natural que as pessoas tem de serem intoleráveis na Internet – raramente na vida real você está tendo uma conversa com um amigo e ela é interrompida pelo conhecido de um conhecido pra dizer que vocês estão errados, coisa que acontece várias vezes no Facebook, por exemplo – isso tem muito a ver com uma certa noção confusa que várias pessoas tem de que cada pessoa só é capaz de se preocupar com uma coisa de cada vez e que, se você está demonstrando preocupação com “x” você necessariamente não está preocupado com “y” ou “z”.
Quando você diz “como assim investir em esporte quanto tem gente passando fome?”, você ignora a possibilidade de atuar em duas frentes, assim como o fato de que é exatamente o equilibro desses investimentos que ajuda a manter os mecanismos sociais funcionando da melhor maneira possível (não que eu esteja sendo Ronaldo Fenômeno e falando que estádios merecem mais atenção que hospitais, mas apenas que a sociedade precisa dos dois, cada um com seu devido senso de prioridade).
Quando você diz um “mora em Goiás, pra que tá preocupado com o governo Donald Trump?” você tá subestimando não apenas a capacidade de empatia das pessoas como também as implicações que as ações de um país acabam tendo na vida das pessoas que vivem em outro –ainda mais se a pessoa de Goiás planeja viajar pros Estados Unidos nos próximos quatro anos, por exemplo.
Não apenas as pessoas são capazes de se preocupar em vários níveis com várias coisas ao mesmo tempo – você pode se importar com o mesmo grau de sinceridade com os problemas do seu prédio e do seu planeta – como na verdade é até um ótimo sinal você conseguir perceber o micro e o macro, o que te afeta e o que afeta outras pessoas, esteja você incluído entre elas ou não.
Obs.: o autor deste texto está ciente do “paradoxo da cagação de regra” em que qualquer crítica sobre algum tipo de cagação de regra, ou seja, sobre alguém tentando dizer o que os outros podem ou não fazer, se torna automaticamente também uma cagação de regra, porque você está tentando dizer ao outro o que ele pode ou não fazer quanto ao que os outros podem ou não fazer.
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Nota: o Terceiro Olhar é uma coluna de atualidades escrita pelo João Baldi, publicada quinzenalmente às quintas-feiras.
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