No último plantão que dei na UTI Respiratória do Hospital das Clínicas, admiti uma jovem portadora de asma, sobrevivente de uma parada cardiorrespiratória por falta de oxigênio, devido a uma crise asmática grave naquele dia. Foi atendida prontamente em casa pelo marido (que havia aprendido BLS no seu país de origem) e trazida ao hospital pelo SAMU, após retorno à circulação espontânea, já intubada e sob ventilação mecânica.

Apesar do atendimento pré-hospitalar brilhante, da chegada rápida ao serviço de emergência e do suporte intensivo em uma UTI especializada, a moça cheia de sonhos e possibilidades não recuperou a atividade cerebral e nos deixou.

Além de ficar na memória da equipe, o caso é um bom ponto de partida para pensarmos em alguns aspectos da assistência à saúde.

Remédio de graça

“Esse remédio eu consigo pegar de graça, doutor?”

Essa é uma das últimas perguntas que ouço em algo ao redor de 90% das minhas consultas no Hospital das Clínicas. A resposta tem sido sempre “sim” e esse é um dos pontos principais do que me faz acreditar que estamos indo melhor do que se diz por aí.

Como já contei aqui, o SUS é um “plano de saúde que cobre tudo”. “Cobrir tudo” não é suficiente, entretanto. É gigantesca a dificuldade que tenho, consulta após consulta, para convencer donas Marias e seus Joãos a tomar os remédios para pressão alta e diabetes. Adesão ao tratamento é sempre uma questão e qualquer pequena dificuldade no acesso aos remédios é suficiente para jogar meu trabalho no lixo – os colegas sabem do que estou falando.

Aos que não ficaram comovidos, lembro que quando um paciente não toma seus remédios para uma doença crônica – por qualquer motivo que seja – o problema não é só dele. Pacientes bem tratados ambulatorialmente têm menos complicações e complicações menos graves. Pacientes bem tratados ambulatorialmente chegam menos à UTI. E quem paga pela UTI somos todos nós.

A internação em UTI é uma das situações mais dispendiosas na assistência a qualquer paciente. Custos humanos e operacionais, instrumental, insumos – tudo se aproxima do absurdo. A despeito disso, a situação clínica muitas vezes suplanta os limites do nosso cuidado e as altas taxas de mortalidade mostram que o universo não se compadece dos nossos investimentos e esperanças.

Nada de inerentemente errado com isso; pelo contrário, considero essa situação extrema o que há de mais apaixonante na Medicina. Na maioria das vezes, porém, poderíamos ter feito algo muito antes que tão impressionante parafernália fosse necessária.

A asma é uma doença inflamatória crônica das vias aéreas que se manifesta por crises de falta de ar após exposição a desencadeantes, por inflamação da mucosa respiratória, produção excessiva de muco e contração involuntária da musculatura dos brônquios. Dispomos de muitos tratamentos para a asma em suas diferentes fases e contextos: a parada cardiorrespiratória por hipoxemia é o fim de uma história natural que poderia ter sido modificada em muitos pontos. Como a maioria das histórias naturais das doenças que estudamos.

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Ataque de asma é assim: você é esse cara da foto, mas sem o equipamento de oxigênio

A tal “custo-efetividade”

Para quase todas as condições clínicas (mas não todas), tratar antes é tratar melhor, ou seja, é mais eficaz (maior chance de sucesso) e mais eficiente (melhores resultados com menor custo). E “eficiência”, em saúde, atende por “custo-efetividade”.

Já disse aqui que o cobertor curto das verbas é uma preocupação tão essencial quanto os efeitos diretos das nossas opções, mas a preocupação com esse conceito fundamental pode estar sendo negligenciada na formação médica atual, como bem notaram os editores do New England Journal of Medicine nesse brilhante comentário.

Toda a proposta de organização do SUS e algumas notícias recentes sobre sua administração, no entanto, trazem alguma esperança nesse sentido.

Enquanto as grifes da saúde privada investem em “medicina cênica”, hotelaria portentosa, arsenal tecnológico e supervalorização dos über-especialistas, as políticas públicas de saúde aos poucos têm abandonado a demagogia eleitoreira da construção maquinal de

hospitais para realmente amparar a atenção primária e provê-la dos recursos necessários à entrega dessa medicina custo-efetiva. Temos nos preocupado menos com demandas egoístas e mais com um sistema viável e intervenções que realmente fazem diferença.

Não se trata de paternalismo ou demagogia. O raciocínio é bem simples e direto. O remédio para pressão alta da dona Maria tem mais impacto sobre sua expectativa de vida que a UTI na qual será internada quando infartar se não fizer nenhum tratamento. E é muito mais barato.

Sabendo disso, o Ministério da Saúde, pelo programa Saúde Não Tem Preço, com um convênio com farmácias por todo o Brasil, disponibiliza medicamentos gratuitos e facilmente acessíveis. Pois é, seu João, uma desculpa a menos pra não tomar o remédio.

Como era certo que aconteceria, a melhora na entrega dos cuidados de atenção primária já produziu efeitos mensuráveis, diminuindo o número de internações por complicações de hipertensão e diabetes neste ano. Recentemente, o programa passou a distribuir medicamentos para asma — para pacientes como aquela da UTI, só que bem antes da UTI.

Se a atenção à saúde continuar tomando esses rumos, minha “clientela” na medicina intensiva deve diminuir nos próximos anos. E eu estou torcendo por isso.

Mecenas: Ministério da Saúde

Saúde Não Tem Preço é o programa do Ministério da Saúde que distribui de graça medicamentos indicados para o tratamento de hipertensão, diabetes e agora asma nas farmácias e drogarias credenciadas no programa Aqui Tem Farmácia Popular.

Em um ano o Saúde Não Tem Preço beneficiou 10 milhões de pessoas com remédio de graça. Já são mais de 20 mil farmácias em mais de 3.200 municípios. E, em todo o país, muitos brasileiros vivem dias melhores.

Lucas Pedrucci

Gaúcho expatriado, é pianista aposentado, jogador de rugby em fim de carreira, ex-oficial da FAB, paraquedista das categorias de base e meditante wannabe. Seu principal hobby é a Medicina, que estudou na USP e tem praticado no Hospital das Clínicas.