Ainda eram 8h10 daquele dia griséu e o cemitério era um corpo só, uma massa de gente zanzando com lentidão, vagueando com olhos plácidos os túmulos dos queridos entes. Mal se caminhava naquelas alamedas cheias de pessoas – 120 mil falecidas e 110 mil vivas até o fim do dia –, de nomes desconhecidos, de retratos desbotados, de cruzes lascadas, de flores frescas pisoteadas, de sepulturas azulejadas em tons mais ou menos austeros. Eu estava ali naquele Finados para conhecer um santo.

Céu de Finados sobre nós (Foto de Luiz Gustavo Leme)

Sob um céu amantado e uma terra populosa a contemplar seus mortos, o aposentado Valdelício Beneti encontrou o sepulcro de seu amigo da juventude. Quadra 51 do Cemitério da Saudade, em Marília. Nesse Dia dos Mortos, havia mais flores que nos anos anteriores – o amigo de Seu Valdelício é pop. E um homem santo. As duas placas anônimas de gratidão por milagres ainda jaziam lá na parede da capela, bem como a inscrição

Guaracy Marques Pinto, morto em 1964, com 21 anos.

Um grupo de aproximadamente dez pessoas ladeava o humilde jazigo castigado pelo tempo. Com exceção da quantidade de flores, estava tudo igual aos olhos visivelmente fatigados do sexagenário Valdelício. Por mais que as visitas se repetissem todo ano, para o aposentado sempre era uma emoção ímpar estar na capela de Guaracy, em vida ladrão e, agora, espírito divino.

O ladrão

Guaracy ganhou as páginas policiais do antigo Jornal do Comércio pela primeira vez em 1962, antes de completar a maioridade. A ele, foram atribuídos 36 roubos – todos cometidos no período de 15 dias. Alcunhado de Pé de Veludo graças à sua destreza em entrar nas residências mais ricas sem despertar os moradores, Guaracy, por vezes, invadia e furtava mesmo que a família estivesse em casa, acordada. Nunca as vítimas se apercebiam da ação por causa da leveza dos passos do ladrão. A audácia era tamanha que, por vezes, no meio do roubo, o jovem bandido tirava uns minutos para fazer um lanchinho, ou mesmo ir ao banheiro.

Também não raros eram os bilhetes que Pé de Veludo deixava para as vítimas. Uns, provocadores; outros, galanteadores. Isabel Cristina Pereira, estudiosa do Pé de Veludo, levantou alguns recados deixados por Guaracy: segundo ele, uma tal Shirley “tinha pernas bonitas”; já a comida da casa da Cida “estava uma delícia”, bilhete postado ao lado do liquidificador usado para uma vitamina durante o furto; um marido “deveria cobrir a mulher para ela não ficar mostrando esse bundão”.

O santo

O que espanta e até mesmo comove, porém, é a caridade do gatuno. Ao fim do expediente de crimes, partilhava o que conseguia com os menos afortunados de seu bairro. Comprava mantimentos para as famílias pobres, pagava refrigerante aos moleques da rua, distribuía álbuns e figurinhas aos alunos da Escola Estadual Gabriel Monteiro. O ladrão mudou a vida, por exemplo, de Edson.

Oração pelo bandido (Foto de Luiz Gustavo Leme)

Aos cinco anos, Edson não pensava em ser o funileiro que hoje é. As coisas mudaram, exceto uma: a vida difícil. Naquela época, um dia, ele caminhava com a mãe pela rua Amazonas. Ambos estavam com fome e não havia alimento em casa. O menino não hesitou quando cruzou com Guaracy na rua. “Moço, me dá um pão”, pediu Edson, sem prever que aquilo lhe renderia uns beliscões da mãe, mulher desconfiada daquele que todos diziam ser bandido. Ao pedido, Guaracy fez mais: levou mãe e criança a um bar e comprou alguns mantimentos para a família.

O matador que morreu

Wilson Mattos, um dos mais famosos radialistas de Marília, foi o único que cobriu ao vivo a morte de Guaracy Marques Pinto. Na época, ele era repórter policial da Rádio Clube em tempos em que que jornalista gastava sola de sapato para apurar um fato. Fazia o giro pelas delegacias quando soube que “o delegado foi à casa do Pé de Veludo e morreu baleado”. Isso resume todo o bangue-bangue que alvoroçou Marília e acabou com a vida de policiais e de Guaracy.

Depois de ser acusado de corrupção de menores – afinal, dar goró a menores é crime – e com um passado de meliante nas costas, Guaracy ficou novamente no radar da polícia. Um novo delegado adjunto lotado em Marília, de nome Ewerton Fleury Curado, ouviu falar deste tal Pé de Veludo. Intimou-o, mas Guaracy negou-se a comparecer à delegacia. Dr. Ewerton decidiu ir à casa de Guaracy. Lá, fez uma revista. E encontrou um arsenal.

Dois tiros. Alcyr, irmão de Guaracy que estava em casa com outros dos seus, ao ver que o delegado havia descoberto onde os revólveres e as garruchas estavam malocadas, não hesitou e disparou duas vezes. Dr. Ewerton foi atingido no coração e na cabeça, mas viria a morrer apenas no hospital. O ordenança também foi atingido.

Todos fugiram. Fez-se breve paz em que dois corpos sangravam à morte iminente. Foram socorridos e levados ao hospital. Então, toda a força policial soube do ocorrido. Seguiram à casa de Joscelino.

Guaracy não estava presente no tiroteio. Chegou de ônibus logo em seguida e nada viu.

Pouco tempo depois, um batalhão estava em frente da casa dos Marques Pinto. Guaracy não se entregaria com vida.

Todos os depoimentos são unânimes: Guaracy era o único dentro de casa, mas ziguezagueava os cômodos e disparava com veemência. Com vontade. Com cólera. Era um exército do lado de fora contra um único homem do lado de dentro da casa, mas parecia o oposto. O bangue-bangue durou das 15 horas às 18h30, e nenhuma das forças ficou sem munição, tamanho era o arsenal dos Marques Pinto.

Agradecimento para o santo ladrão (Foto de Luiz Gustavo Leme)

Depois de mais de três horas de zunidos de dentro para fora da casa e vice-versa, a polícia não via modos de dar fim ao tiroteio, de capturar Pé de Veludo vivo ou morto. Hoje não se sabe quem, mas um dos policiais teve a brilhante ideia de equipar um carro com uma placa de aço para se aproximar da residência. Um escudo móvel que, por fim, possibilitou que a força militar adentrasse no terreno. Chegando lá, outra ideia espetacular: por que não jogar uma bomba de cloro dentro da residência para afugentar Guaracy e quem mais houver? Genial!

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Fez-se a bomba de cloro com materiais da estação de tratamento do Departamento de Água e Esgoto de Marília, que ficava próximo da casa. Pronta, ela foi atirada dentro do imóvel. Minutos se passaram. Os tiros cessaram. Ninguém saiu.

Guaracy foi encontrado morto. Seu pulmão havia ressecado em virtude do gás cloro. A quantidade utilizada foi tamanha que apenas às 23 horas do dia seguinte o cheiro se dissipou por completo e os peritos puderam trabalhar. “Ele foi exterminado com arma química”, resume Wilson, ainda hoje indignado com o fato de, mesmo sendo proibidas armas do gênero em guerras, ainda assim um exemplar delas foi usado em Marília.

Além de outros cinco policiais, ambos morreram: delegado e bandido. O primeiro, de maneira heroica, em cumprimento do dever cívico; o segundo, de modo desumano, humilhante, “[…] apresentando ferimentos vários, inclusive os produzidos por armas de fogo, o jovem delinquente jazia estirado sobre os umbrais de uma porta, na posição de quem tentasse, do quarto, atingir a sala que dava para o alpendre”, segundo o jornal. Uma morte destinada apenas aos mártires, quiçá.

A mortalha continuou pelos dias que se seguiram àquele fatídico 9 de dezembro de 1964. Dois irmãos de Guaracy foram encontrados mortos em cidades vizinhas, e tais assassinatos nunca foram investigados.

O abençoado que cura

Hoje, alguns detalhes passam despercebidos pela memória de Wilson. De fato, há pouco interesse no tiroteio. O mesmo não se diz dos desdobramentos originados por ele. Assassinado pela polícia em 1964, Guaracy tomou status de mártir. Para a beatificação a boca popular, falta pouco ou nada. Mesmo do outro mundo, Pé de Veludo apronta das suas peripécias. Valdelício, assim como outros marilienses, diz ter sido milagrosamente curado pelo ladrão. Ou melhor, por seu espírito quase santo.

No começo da década de 1970, o aposentado teve um problema no fígado. Os médicos não conseguiam curar. “Pedi ao espírito de Guaracy e fui atendido.” Fazem coro à crença de Seu Valdelício os antigos moradores do bairro, testemunhas da boa alma do gatuno. A parte que coube ao aposentado, porém, dinheiro nenhum paga. Seu Valdelício sabe disso e traduz sua gratidão no choro escondido por olhos amiudados pela idade. Sempre que o aposentado visita Guaracy no Finados, esbarra em curiosos e outros ditos agraciados, em acadêmicos que pesquisam a vida do ladrão e repórteres. Neste ano, até o meio-dia, cerca de 250 pessoas passaram pela última morada daquele que, em vida, já foi o terror das moradas mais altivas da cidade. Muitas pessoas acendem velas, e o calor próximo ao sepulcro contrasta com o clima ameno daquela manhã.

Postada em meio à quentura, está Vanda Lúcia Beneti, esposa de Seu Valdelício. Ela não conheceu Pé de Veludo pessoalmente, mas garante: se um dia seu marido não puder visitar o amigo, ela vai sozinha prestar homenagem ao gatuno. Por respeito e gratidão aos feitos miraculosos daquele santo ladrão após sua morte, Vanda visitará o desconhecido e lhe acenderá uma vela. Lamenta apenas os filhos não terem esse mesmo gesto.

“Em nome do Pai, do Filho…” (Foto de Luiz Gustavo Leme)

Um homem calvo, de camisa polo em tom rosa enfiada na bermuda branca, para em frente à capela. Fixa seus olhos na porta transparente – sempre trancada –, e tenta enxergar o interior. De maneira furtiva, leva a mão à testa e encosta o rosto no vidro para melhor reverenciar o retrato do ladrão. Lá dentro jaz uma fotografia antiga, visivelmente restaurada em cores, e lembra decerto algumas obras de pop art. Sim, o santo é pop. O professor Aníbal Guedes Abigail não conheceu Guaracy Marques Pinto como Pé de Veludo. Para os amigos, como o professor, o gatuno era apenas Vivi. Eram amigos e vizinhos.

Enquanto observa a imagem atrás do vidro empoeirado, Aníbal relembra sua infância e a importância daquele ladrão em sua vida. Aos 13, o professor deixou seus amigos graças aos conselhos de Pé de Veludo que, na época, contava 18 anos. “Eu estava saindo com uns bandidinhos da vila e Vivi pediu-me para manter distância daquele pessoal. Nunca mais os vi desde então. Acatei o conselho e cortei relações”, conta Aníbal, que não nega respeito ao nada infame ladrão e afirma: todos no bairro o escutavam. Pé de Veludo – ou Vivi – era estimado por sua inteligência e persuasão pelos moradores de uma das mais pobres regiões de Marília.

Até mesmo Aníbal, amigo íntimo de Pé de Veludo na década de sessenta, impressiona-se com as histórias de benfeitorias post-mortem do ladrão que ouve na rua. “Eu soube de uma menina que, desenganada pelos médicos, pediu a graça da cura e Pé de Veludo concedeu”, relata o professor, que nunca precisou pedir graça alguma para si. Não sabe se a história é verdade, tampouco conhece seus personagens, mas nada disso importa: maior que o homem é o mito.

Aníbal deixa a quadra 51 para, enfim, visitar seus parentes. Não sem antes olhar o aglomerado de gente na capela. Sai satisfeito. Desvia dos corpos – vivos e mortos – e some por entre cruzes, azulejos e flores.

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Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.