Pense em como escrever sem o uso do símbolo que você jurou ser super imprescindível no momento de construir um período.

Essa frase está bem estranha. Isso porque a ideia era escrever uma frase sem usar a letra “a” que explicasse a ausência da vogal. Escrever sem a letra mais usada na língua portuguesa significa substituir palavras e, consequentemente, alterar um pouco o sentido do que se diz.

A proposta faz parte de um jogo de linguagem ou um exercício criativo elaborado por um grupo de escritores e matemáticos, majoritariamente franceses, na década de 1960. Marcel Duchamp e Italo Calvino faziam parte deste grupo, que se chamava Oulipo – Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como “oficina de literatura potencial”. 

Ouli o quê?

O Oulipo propunha desafios de escrita. Por exemplo, fazer um texto onde cada palavra deve ser iniciada por uma letra da sequência do alfabeto, ou seja, a primeira palavra começa com “a”, a segunda com “b” e assim por diante. Ou substituir substantivos de um texto pelo sétimo substantivo que aparece após ele no dicionário. Com as regras, eles acabavam criando novos sentidos para o texto. “Eles mexiam a forma, mexiam na linguagem, percebendo muito bem o movimento da linguagem. E aí isso vira quase um jogo entre eles. Eles se reuniam e tinham jogos, eles propunham as brincadeiras, como escrever sem determinada letra, fazer jogos de palíndromo”, conta Priscila.

O Oulipo não foi, de início, um movimento de muita repercussão. Levou uns dez anos para que se tornasse conhecido por obras como de Georges Perec, que escreveu um romance inteiro, La disparitio, sem a letra “e”, a mais comum no Francês. Depois, Perec escreveu uma história em que a única vogal que ele usou foi justamente a letra “e”, Les Revenentes.

“Tem gente que odeia, acha que isso não é literatura. Eu acho que é um pouco parecido com a sensação que você tem de ler Finnegans Wake, do James Joyce [um dos grandes marcos da literatura experimental por ser escrito com a fusão de palavras em inglês e outras línguas]. Por que uma criatura escreve aquilo e por que alguém vai ler? É uma experimentação, né? E isso, na verdade, gera o gatilho da criatividade.

Se você tem tudo à mão, se todas as opções estão colocadas, isso não ajuda quando você está com bloqueio para criar alguma coisa. Se você tem tudo, tem todas as letras à sua disposição, o que você pode fazer para vencer o bloqueio? Tirar uma letra, por exemplo.”

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Mais de 50 anos depois do Oulipo, Priscila Borges, professora da Faculdade de Comunicação da UnB e o marido, o filósofo Gustavo Gomes, buscaram recriar uma versão do movimento nas redes sociais. Juntaram o “F” de Facebook com o nome do grupo e criaram o Foulipo. A ideia é brincar com a forma como o conteúdo circula pela timeline, por meio de desafios semanais. Desde novembro, o casal cumpre os desafios – para estranhamento de muitas pessoas que os seguem na rede social.

Imagem retirada da Página do Movimento Foulipo no Facebook

As regras para cada semana são bastante criativas. Alguns exemplos: copiar o nome de uma pessoa que apareça nas sugestões de amizade do Facebook, jogar no Google e postar a notícia que aparece; escolher uma notícia de política que aparece na timeline, selecionar palavras da notícia, jogar no Google acrescentando na busca a expressão “+letra”, escolher uma música para ilustrar a notícia e postar; compartilhar a 6ª publicação pública da timeline com o texto da 4ª publicação. Todos os desafios, claro, vêm acompanhados da hashtag #foulipo.

“Os criadores do Oulipo tinham estratégias para conseguir escrever. Só que eram todas estratégias de linguagem, muito mais do que de inspiração efetivamente. Daí essa relação muito forte com os matemáticos, porque são duas linguagens arbitrárias…Então mexer na arbitrariedade da linguagem transforma o próprio modo de escrever e aí isso gerava um jeito diferente de escrever que destravava o processo”, completa.

A essência questionadora do Oulipo foi parar no Facebook por um incômodo de Priscila e Gustavo com a forma como a rede “controla” os posts.  “O Facebook só entrega pra você o que você gosta de ver, né? A sua timeline está cheia de gente falando a mesma coisa. Então, as pessoas começam a achar que a timeline delas reflete uma realidade e que talvez seja a realidade que ela vive e ela acha que, de alguma forma, o Facebook é a porta dela de comunicação com o mundo. Essa premissa é falsa”, reforça Gustavo.

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Os dois também se incomodavam com a imagem idealizada que muitas pessoas constroem no Facebook. “Você vai cultivando a sua timeline com os textinhos não sei o que lá, o meme não sei do quê e isso vai tentando mostrar pras pessoas que te observam que você é determinada pessoa porque você faz determinadas coisas no seu Facebook. E o que também evidentemente é falso”, completa Gustavo.

No auge da polarização política do Facebook, quando muita gente começou a escrever que excluiria quem postasse determinados temas, o casal decidiu fazer algo a respeito. “Aí eu falei: ‘Ah não gente, ou eu saio desse trem ou a gente acha um jeito melhor de ficar aqui dentro’, lembra Priscila. Passaram a postar textos nonsense relacionados ao Oulipo, desconstruindo a lógica do Facebook.

“A gente começou a pensar em como usar o Facebook pra poder pensar uma regra que vá contra ou me faça repensar o modo como eu estruturo a timeline. Então passamos a considerar a timeline como um texto, e, em seguida, pensar em como reestruturar esse texto”, explica Priscila. “Então eu vou causar problemas no texto e eu não tenho mais controle sobre o texto, né? Em vários dos exercícios do Oulipo eles perdiam um pouco o controle sobre o texto. Por exemplo, quando você tira uma letra, como no caso do Perec, o texto fica um pouco prejudicado, apesar de que ele ainda pode escolher outras palavras, mas tem alguns desafios que são trocar todos os substantivos de um texto. E aí você vai trocar o texto inteiro. Só que, pô, quando trocar pelo sétimo substantivo que aparecer no dicionário, eu não sei o que vai acontecer, entendeu? E aí eles trocam os substantivos todos e esse é o texto. Foi pensando um pouco mais nesse tipo de coisa que fizemos o Foulipo.”

“Esse Foulipo é um negócio meio esculhambação. É uma forma de esculhambar o Facebook. E esculhambar o Facebook envolve você abdicar de ter uma persona virtual consistente ou coerente ou de acordo com as expectativas das pessoas ou, até mesmo, de acordo com as suas próprias expectativas. Se você está disposto a fazer um desafio como o Foulipo, você meio que já não tem mais expectativas. E tem também um lance mesmo que é experimentar e ver como o Facebook vai se comportar de volta”, Gustavo.

Como os dois não eram tão ativos nas redes sociais, o fato de postarem alguma coisa todos os dias fez com que os amigos notassem sua “presença” nas primeiras semanas de postagem #foulipo. Os posts aparentemente sem sentido causaram estranhamento nos seguidores do casal. Mas para entender do que se tratava, não bastava perguntar. Era preciso fazer a pergunta certa.

“No começo, a coisa era um pouco mais restritiva. Tem regras de como é que a gente tem que se comportar e uma delas, logo no início, era a seguinte: a gente não responde absolutamente nada. A gente faz as postagens, as pessoas vão achar estranho e se elas perguntarem alguma coisa no comentário, como: ‘Mas o que é isso?’ e tal, a gente não diz nada. Mas se alguém nos procurar por mensagem privada e fizer a pergunta certa a gente responde”, conta Gustavo. A pergunta certa era: O que é Foulipo? “Se a pessoa falar: ‘Vocês estão doidos? O que vocês estão fazendo?’, cara, ignoro (risos).”

“Acho que o mais legal do início foi o incômodo que gerou nas pessoas, assim, de chegar em festas de aniversário e elas dizerem: ‘Pelo amor de Deus, agora que vocês estão aqui, me explica esse negócio de Foulipo!’”, Priscila.

Hoje já não é preciso perguntar. De acordo com descrição da página criada para divulgar as regras da semana para as postagens, #foulipo é um experimento lúdico-literário-estético-político (necessariamente nesta ordem) fadado ao fracasso desde a sua concepção. Ou seja, #foulipo é um jogo que não pode ser vencido nunca, baseado numa concepção literária. #foulipo questiona a construção de personas virtuais a partir de uma cosmética da timeline facebookeana.

Quer jogar?  

Projeto Lupa

O Projeto Lupa publica relatos sobre pessoas ligadas à arte de contar histórias: escritores, roteiristas, jornalistas, músicos, contadores de história oral, entre outros. Tentamos sempre relacionar as dimensões prática e subjetiva da criação: Quais os caminhos para quem ama as palavras? Dá pra viver disso? Como é o processo criativo? Nossos textos buscam criar experiências de leitura prazerosas mantendo um olhar afetivo e singular sobre cada entrevistado.