Quando me mudei para um bairro tradicional de imigrantes em Lyon, passei a ter um contato muito maior com estrangeiros de toda parte do mundo. Na França, a maior parte dos trabalhadores estrangeiros é oriunda de países africanos: nigerianos, senegaleses, algerianos e muitos outros; dessa maneira, passei a seguir de perto seus hábitos e frequentar quase que diariamente seus espaços de convivência.

Certa vez notei as dificuldades de uma amiga do Quênia de acessar certos serviços em seu smartphone. Foi ouvindo seu relato e depois pesquisando que descobri que a sempre democrática internet havia segregado um continente quase inteiro da sua rede.

A Internet não liga pro continente africano
A Internet não liga pro continente africano

Com a popularização dos computadores no final do século XX e começo do XXI, passamos a acreditar veementemente na democratização do conhecimento. Falamos em um mundo onde a velha mídia não detinha mais poder absoluto sobre a informação e onde você não precisava convencer uma editora para que as pessoas lessem aquilo que você escreve. Esta idealização da internet é uma ideia um tanto bonita, porém muito utópica e que não leva em conta restrições de classe social e especificidades regionais.

No caso de países em desenvolvimento (termo que eu detesto, já que ele assume que certo países pararam no tempo) como o Brasil, esta questão não é tão clara quanto na Europa e na América do Norte. Ainda que a cultura da internet esteja presente nas classes sociais mais pobres (entre os jovens), ela engatinha de maneira lenta, tendo seu acesso muitas vezes limitado a redes sociais populares. O quadro parece ser muito mais agravante quando olhamos para o continente africano e para certos países asiáticos de regimes autoritários.

O autor estadunidense Thomas Friedman, em seu livro The World is Flat (O mundo é Plano), lançado em 2007, alega que este seria o novo estado do planeta, já que vivemos em uma era onde as pessoas podem “se conectar, jogar, competir, se informar, falar e colaborar de maneira mais igualitária”. Sua opinião sobre tecnologia é uma grande representação do que é chamada de “ideologia californiana”, que diz que a internet criou um campo de disputas limpo e igualitário para a manifestação de opiniões e o acesso de informação.

No entanto, o que funciona para a Califórnia não é necessariamente verdade para o resto do globo.

O governo Chinês (e outros governos autoritários na Ásia como a Coréia do Norte e o Vietnã) são bons exemplos de lugares onde uma pessoa não pode simplesmente usar o Twitter ou buscar informações sobre certos assuntos no Google. No entanto, o caso destes países é particular porque se trata de um problema político, onde é necessário conquistar uma abertura maior para estabelecer este “paradigma do mundo plano”.

Computadores de segunda mão são tudo o que eles possuem pra se "conectar" com um mundo que não lembra deles
Computadores de segunda mão são tudo o que eles possuem pra se “conectar” com um mundo que não lembra deles

O continente Africano se mostra um caso muito mais complexo. Primeiro porque é muito difícil falar do dele num âmbito generalista, dado o seu tamanho e suas infinitas especificidades. A segunda razão é que, ao contrário dos problemas de censura, aqui temos outros fatores que se tornam obstáculos, desde a precariedade da infraestrutura até o posicionamento das demais regiões do globo em relação ao continente africano.

Em particular, a África subsaariana parece ser um lugar que não existe para o mundo da internet.  A britânica Jenna Burrell, em seu livro Invisible users (Usuários Invisíveis), nos conta a respeito de sua experiência em Gana, nas Lan houses de Accra, onde a autora realizou um estudo acerca dos jovens usuários de Internet locais.

A primeira especificidade que notamos sobre Gana e sobre a maior parte dos países da região (Costa do Marfim, Benin e etc) é que o uso do computador é mais comum em Lan houses e cyber cafés do que em casa. Este locais, normalmente montados com PCs de segunda mão vindos da Europa ou da América, concentram todos os dias uma boa quantidade da população jovem da região, que vê nestes cafés a melhor oportunidade de acessar redes sociais e trocar mensagens com seus amigos.

A pobreza e a precariedade de condições não são os únicos empecilhos. Quase todos os países da África Subsaariana tem economias completamente baseadas em dinheiro físico, o que restringe completamente a possibilidade destes jovens de comprar coisas pela rede. Mesmo que a cultura dos cartões de crédito chegue um dia até lá, os sites ocidentais parecem ter uma visão extremamente negativa do continente, e normalmente consideram qualquer visitante ou usuário africano como algum tipo de calote ou tentativa de fraude virtual.

A autora Jenna Burrell descobriu isto da pior maneira possível, durante a sua pesquisa, quando ela tentou acessar a gigante Amazon (que mesmo durante viagens pela América Latina ou a Europa é facilmente acessível) e o site imediatamente resetou o seu password e começou a mandar avisos para o seu email sobre um possível hackeamento.

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O Paypal fez mais ou menos a mesma coisa, dizendo que não trabalhava na região e a levaram a completar uma série de medidas de segurança que terminaram com uma verificação pelo celular estadunidense da autora, que obviamente não funcionava em Gana.

Um dos vários cafés pra acessar a Internet
Um dos vários cafés pra acessar a Internet

Boa parte do trabalho de Burell consistiu de acompanhar diariamente a vida destes jovens em Gana, procurando saber mais sobre suas estórias e motivações. Antes da chegada da Internet, era muito comum que estes meninos tivessem amigos por correspondência no exterior e eles usam a rede para tentar reproduzir este tipo de experiência, usando sites como o Yahoo Chat.

Outros jovens procuram pessoas para fazer negócios ou entrar em contato com os amigos. No entanto, as barreiras culturais parecem sempre ser grandes e levar a pequenos desentendimentos de ambas as partes. Um rapaz reclamou que seus correspondentes não entendiam direito o que ele queria. O mal entendido ocorreu quando ele decidiu entrar em salas de bate-papo cristãs para procurar parceiros de negócios, pois acreditava que os cristãos seriam honrados em seus compromissos. No entanto, o jovem de Gana não obteve nenhum sucesso até perceber que todos as outras pessoas conectadas só queriam discutir a bíblia.

Uma garota afirmou que costumava procurar relações com pessoas que estariam dispostas a lhe dar presentes. Normalmente, isso gerava uma reação muito negativa com os usuários europeus ou estadunidenses. O tópico claramente soaria estranho para brasileiros também, que pensariam se tratar de algum tipo de esquema. No entanto, para a cultura de Gana e da Nigéria, a troca de presentes é um dos aspectos mais básicos e comuns do cotidiano. Muitos jovens não conseguiam entender bem o porquê dos pedidos por presentes resultarem em bloqueios e expulsões quase que imediatas das conversas e salas de bate-papo.

Estas descontinuidades culturais também são reforçadas pela grande assimetria material, a percepção simplista da riqueza do ocidente e da pobreza na África, e também pela forma apressada e direta de falar destes africanos, que por não terem computadores em casa, são obrigados a pagar por minuto sua conexão.

O problema maior é que de simples dificuldades de comunicação a internet parece ter entrado em um âmbito ainda pior, a completa exclusão de determinadas regiões do globo baseadas tão somente em mecanismos de geolocalização. Isso ocorre, por exemplo, com boa parte dos sites internacionais de relacionamentos, que efetivamente bloquearam países como Gana e a Nigéria e não podem ser acessados de lá.

Para os residentes desta parte da África subsaariana, existem dois tipos diferentes exclusão:

  • A falha na hora de incluir estas culturas;
  • O bloqueio completo.

Estar na frente de um computador, na África subsaariana não garante contato direto com o mundo
Estar na frente de um computador, na África subsaariana não garante contato direto com o mundo

No primeiro caso, temos o ecommerce como um todo, que não possui soluções para integrar uma economia baseada em dinheiro vivo (como cartões-presente adquiridos em lojas físicas). Representando o bloqueio completo, temos sites como Amazon, Paypal, todos os produtos da Apple, Plentyoffish e etc, que não podem ser acessados desta região do globo. O blogueiro nascido em Gana, Koranteng, que mantém um blog sobre a questão, sumarizou o problema:

“Se nós levarmos em conta que o ecommerce é um componente para cidadania moderna global, nós africanos somos todos uma espécie de imigrantes ilegais e nossa participação na modernidade é, no máximo, marginal.”

Estes exemplos mostram que os jovens internautas africanos se vêem completamente excluídos de alguns dos recursos mais simples da internet, coisas que mesmo em países como o Brasil são consideradas mais do que normais.

Esperamos que esta situação seja provisória e que, com o constante barateamento da tecnologia digital, este quadro possa ser revertido.

Hoje já vemos que tanto a África do Norte quanto a África do Sul avançaram significativamente neste território. A Primavera Árabe, como movimento político, poderia não ter decolado sem a ajuda de uma classe jovem que decidiu usar a internet como ferramenta para se encontrar, marcar e organizar protestos.

Se os países do ocidente começarem a reconhecer os africanos subsaarianos em termos de maior igualdade, ou até mesmo enxergá-los como um mercado em potencial, estaremos mais próximos do sonhado “Mundo Plano” que Thomas Friedman declarou em 2007.

Felipe Velloso

Carioca erradicado na França, Felipe Velloso se formou em História, mas largou os tomos empoeirados e os arquivos para viver a vida de redator e escritor. Apaixonado por quadrinhos, games, literatura e cinema, Felipe hoje se prostitui de maneira literária pelo velho continente.