1. A jovem de calcinha e nossos comentaristas
Não há outra forma de deixar isso mais claro do que com essa metáfora.
Uma menina de 16 anos sai nas ruas vestindo calcinha fio dental. Após umas quadras, ela é estuprada por dois delinquentes.
Parece mais do que óbvio que a verdadeira motivação do estupro não é o fato de a menina estar vestindo calcinha pelas ruas, por mais imprudente que seja. Qualquer mulher tem o direito de andar da forma que quiser, pois absolutamente nada justifica ou atenua o crime de estupro.
O uso da calcinha fio dental pode ter sido um fato que, na mente dos criminosos, disparou o gatilho de sua ação naquele específico momento. Mas não haveria gatilho se não houvesse uma arma previamente fabricada. E a arma, no caso, e causa verdadeira do estupro, é uma cultura machista que trata a mulher como objeto e enxerga em determinadas vestimentas um convite induvidoso para o sexo.
Ocorre que, na imprensa e nas redes sociais, diversos “formadores de opinião” decidem discutir o quanto andar nas ruas de calcinha fio dental e salto alto é inapropriado. Todos esses “formadores de opinião” ressaltam em seus textos que não estão atenuando ou tentando justificar o estupro, mas acham que é uma boa oportunidade para discutir-se o uso de calcinha nas ruas.
Pior ainda, alguns chegam ao cúmulo de analisar a situação econômica dos dois delinquentes, casualmente moradores da periferia, e a situação econômica da vítima, casualmente filha da classe alta, para sugerir que os estupradores foram colocados naquela situação por uma conjuntura social provocada pela classe abastada a qual pertencia a menina. Esses analistas, claro, sempre salientam que, com isso, de modo algum desejam amenizar o crime.
Isso é muito curioso, pois revela uma enorme incoerência. Ora, se esses “formadores de opinião” não estão tentando justificar o estupro pelo uso da calcinha, deveriam estar discorrendo sobre o estupro e suas verdadeiras causas. Contudo, ao decidir falar da calcinha, contradizem com seus atos e sua abordagem aquela ressalva que fazem de que não estão tentando justificar os criminosos.
Não é outra coisa a que está ocorrendo neste momento em relação ao atentado à redação da revista Charlie Hebdo. O que mais vemos nas redes sociais agora são análises sobre a impropriedade da linha editorial da revista francesa (como as que temos aqui, aqui e aqui), e muito poucas, quase nenhuma, abordagem sobre o verdadeiro problema: o crescimento do fundamentalismo ao redor do planeta – e não apenas do fundamentalismo islâmico, mas também do cristão e do israelense.
2. O assassinato insidioso
“Alto lá!”, alguém pode estar dizendo neste momento, “os cartunistas da Charlie Hebdo não estavam apenas exercendo seu direito de livremente fazer o que quisessem de suas vidas, como a menina na metáfora da calcinha estava: eles ofenderam de forma agressiva a fé religiosa de muitos fieis”. Ou seja, eles teriam ido muito além no exercício de um direito individual, atacando direitos alheios.
Em primeiro lugar, a metáfora ainda continua válida, pois o sentimento de ofensa religiosa é tão subjetivo e culturalmente orientado quanto o sentimento do que é sexualmente estimulante. Ambos dependem da conjuntura cultural e de características subjetivas daquele que se sente ofendido ou estimulado. Tenho amigos católicos que riem das piadas sobre a Bíblia feitas pela turma do Porta dos Fundos, enquanto outros da mesma fé odeiam visceralmente qualquer coisa relacionada a esse grupo de humor.
Em segundo lugar, ainda que admitamos o argumento de que os cartuns da revista Charlie Hebdo eram, de fato, ofensivos e absurdamente desrespeitosos (e eu acho o que eram), abordar nesse momento tal questão, por mais ressalvas que se faça de que o atentado foi terrível e condenável, é uma forma sim de insinuar, pela escolha de um tema tão irrelevante, que os cartuns foram a causa do crime e, portanto, que as vítimas tinham certa responsabilidade em suas mortes.
Em outras palavras, fazer a escolha de aproveitar este momento para analisar a suposta impropriedade dos cartuns da Charlie Hebdo, ou então para discorrer sobre a necessidade de limites para a liberdade de expressão, ao invés de optar por abordar o verdadeiro problema evidenciado no atentado, é perpetrar coletivamente um novo assassinato de todas as vítimas do ato terrorista do dia 07 de janeiro. Um assassinato não de seus corpos, mas um homicídio insidioso, acovardado, de suas reputações e de sua posição de vítimas de um ato de barbárie.
Pois os cartuns da revista Charlie Hebdo não foram, de modo algum, a causa do atentado terrorista.
3. Onde estão cartunistas curdos e a islamófobos da Nigéria?
A prova de que os cartuns não tem vínculo real com as causas do atentado terrorista surgiu dois dias depois, na forma da seguinte manchete:
Dois mil mortos causaram o menos comoção internacional do que doze franceses assassinados. E nem mesmo esse crime descomunalmente bárbaro parece ter motivado nossos analistas a largarem sua análise sobre cartuns para, finalmente, discutirem o problema do fortalecimento do fundamentalismo. Afinal, é muito mais divertido acusar cartunistas mortos de islamofobia do que enfrentar a questão de que eles e mais 2 mil nigerianos são vítimas de uma “monstruosidade coletiva” que está surgindo e devorando parte de nosso planeta.
E, no fim de semana que se seguiu, tivemos mais uma evidência de que seguíamos um caminho equivocado:
Esse último crime foi perpetrado pelo mesmo grupo que treinou os Irmãos Kouachi no Iêmen. O que se observa é que, na mesma semana do atentado em Paris, tanto na Nigéria quando no norte do Iraque grupos fundamentalistas com aspirações e visões de mundo semelhantes aos terroristas que invadiram a redação da Charlie Hebdo mataram milhares de inocentes – e pelo que nos consta nenhuma dessas outras vítimas desenhou nenhum cartum, e nenhuma delas vive em um país de primeiro mundo islamofóbico que oprimia os seus algozes. Na verdade, o fundamentalismo islâmico mata por motivos estúpidos, como, por exemplo, o fato de uma menina tentar ir à escola.
E se os irmãos Kouachi estiverem vivos neste exato momento naquele lugar especial do paraíso reservados aos fieis que se sacrificaram na Guerra Santa, cada qual cercado de 72 virgens, certamente estão olhando aqui para baixo e dando risadas.
Em primeiro lugar, conseguiram colocar em cheque a incondicional liberdade de expressão garantida em países como França e Estados Unidos, e que não possuímos em nosso país apenas devido à nossa atrasada herança católica e à dificuldade de secularizarmos efetivamente o nosso Estado – um Estado atualmente prestes a ser capturado por fundamentalistas neopentecostais, como se a maldição do Clero já não tivesse causado malefícios por séculos ao Brasil.
Em segundo lugar, outro motivo para os irmão estarem felizes lá, em meio à farra com as virgens, é que os radicais do outro lado, ou seja, os reais islamofóbicos da Europa, tal como Jean-Marie LePen e sua filha, estão aproveitando a oportunidade para conquistar mais espaço e legitimação pública na implantação de suas políticas de xenofobia. E acreditem, isso talvez não interessasse diretamente aos irmãos Kouachi, mas é de grande serventia para aqueles que os adestraram no Iêmem, e que os utilizaram como peões.
Sim, para o Estado Islâmico e demais fundamentalistas muçulmanos, a radicalização europeia é tão útil quanto foi para Bin Laden a Guerra ao Terror implementada pelos americanos, dentro de uma lógica segundo a qual quanto maior for o ódio e o preconceito dos ocidentais, mais fácil será converter jovens ao fundamentalismo.
E isso tudo nos traz a uma importante lição que os bizantinos aprenderam a respeito de perder o foco sobre o que verdadeiramente importa.
4. De bizâncio à esquerda moderna
Em 1453, a cidade de Constantinopla estava em alvoroço. Um importantíssimo debate era travado a respeito de um assunto de elevada relevância. Diante dos olhos empolgados da sociedade bizantina, as autoridades religiosas discutiam acaloradamente sobre uma desafiadora questão:
Os anjos tem ou não sexo?
O problema é que, do outro lado dos muros da cidade, os muçulmanos, sob o comando de Maomé II, não queriam saber desse papo de anjos e sexo. Estavam ocupados aniquilando todo o exército do imperador Constantino XI. Em 29 de maio, venceram seus inimigos, invadiram Contantinopla e saquearam, estupraram e mataram o quanto puderam.
Desde então, ficou famosa a expressão “questão bizantina”, ou seja, o debate sobre um assunto na verdade irrelevante, e que desvia nossa atenção de um perigo iminente.
Sempre que surge na internet um novo artigo sobre se os cartuns da Charlie Hebdo são ou não ofensivos e se deve haver limites para a liberdade de expressão, me recordo dessa história da queda de Constantinopla, pois me parece que é uma versão moderna do debate sobre o sexo dos anjos. Pressupõe-se, com isso, que o suposto preconceito de parte da população europeia aos imigrantes islâmicos seja a causa realmente decisiva dos ataques terroristas.
Por mais que, por exemplo, Leonardo Boff ressalte em um artigo publicado dia 10 de janeiro que não deseja justificar a atitude dos terroristas, o mero fato de ele discorrer sobre a suposta islamofobia dos cartuns da Charlie Hebdo, tirando o foco do assunto realmente importante (o crescimento do fundamentalismo) acaba por minimizar a natureza hedionda do crime que tirou vida não só de cartunistas, mas de outras pessoas (entre elas, um policial muçulmano).
Mas isso é compreensível, se lembrarmos que a essas análises se originam de comentaristas da esquerda. Não nos iludamos, a esquerda brasileira é, em parte e salvo honrosas exceções, tão tacanha quando nossa direita, e quando se depara com um fato terrível como o ataque terrorista à redação da revista Charlie Hebdo, tenta encaixar uma situação complexa dentro da moldura rígida e simples de suas convicções. Incapaz de protestar ostensivamente contra o fundamentalismo islâmico (pois os fundamentalistas muçulmanos são inimigos de seus inimigos, ou seja do países desenvolvidos do Ocidente, notadamente dos Estados Unidos), voltam seu foco, apressadamente, na direção dos artistas politicamente incorretos do Charlie Hebdo.
Para complementar o encaixe na moldura de seu discurso, esses analistas fazem questão de lembrar da situação de penúria e preconceito a que estão submetidas as comunidades muçulmanas na Europa. Concluído o encaixe da situação complexa na moldura ideológica, o quadro que penduram na parede é esse: a culpa, de um lado, é dos países imperialistas e, de outro, do excesso de liberdade de expressão concedido a uma imprensa que deve ser tutelada pelo Estado.
Pronto: conseguiu-se criar um discurso que pode, por exemplo, ser oportunisticamente utilizado para pregar o controle estatal dos meios de comunicação (ironicamente denominada “democratização da mídia”), como fez o ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, no Twitter recentemente:
Com isso tudo, estamos deixando de discutir o que realmente importa e minimizando o verdadeiro perigo. Deveríamos estar neste momento analisando as verdadeiras causas dos ataques terroristas.
E é importante atentar para o seguinte detalhe: quando falamos de encontrar as causas do terrorismo, o que buscamos é reconhecer quais conjunturas dão origem a atos terroristas. Não se trata de encontrarmos respostas que resultem em medidas repressivas, pois essas, em geral, tem por consequência apenas legitimar preconceitos e aumentar o radicalismo de todos os envolvidos (na verdade, os comandos terroristas esperam por medidas repressivas do Ocidente, pois legitimam seus atos e trazem mais adeptos).
Trata-se de desarmar o terrorismo na sua origem, compreendendo o que leva alguém a atitudes tão extremas como as dos irmãos Kouachi e da menina de 10 que, num atentado suicida, explodiu um mercado na Nigéria e levou consigo a vida de 19 pessoas.
O próprio Cherif Kouachi tentou ser rapper antes de aderir ao fundamentalismo. Em que momento ele se tornou um fanático? Quais as condições arrastam milhares de seres humanos para as fileiras do radicalismo?
Numa tentativa de responder a essa pergunta, muitos cedem à tentação de atribuir os ataques terroristas à situação econômica e social dos muçulmanos na Europa Ocidental. E, de fato, constata-se que muitos muçulmanos são ali vítimas de preconceito e segregação cultural, ocupando postos de trabalho pouco prestigiados e vivendo quase à margem da sociedade.
Porém, em 07/01/2015, duas mil pessoas foram assassinadas na Nigéria por um grupo de fundamentalistas islâmicos (Boko Haram), e três dias depois dezenas de curdos no Iraque foram massacrados por um outro grupo de fundamentalistas islâmicos (Estado Islâmico). Não tenho notícias de que na Nigéria e nos territórios turcos exista islamofobia – até porque a maioria dos curdos, hoje, são muçulmanos.
Além disso, o policial que foi morto pelos terroristas era muçulmano, o que evidencia não ser assim tão rigorosa a alegada islamofobia. Postos de trabalho que dão arma e autoridade para intervenção violenta em nome do Estado são confiados a supostas vítimas do preconceito num país da Europa: as autoridades iranianas fariam o mesmo se um ocidental cristão ou judeu tentasse ingressar nas fileiras de sua polícia? Há, sim, setores islamofóbicos em todos os países europeus, como há setores antissemitas até hoje naquele mesmo continente: porém, dificilmente podemos afirmar que essa seria a causa dos atentados.
5. O verdadeiro inimigo
Falar sobre a islamofobia na França, sobre os exageros dos cartuns da Charlie Hebdo e sobre a falta de oportunidades dos jovens muçulmanos na Europa é desviar inconscientemente a atenção para o verdadeiro perigo que ronda a todos nós e que motiva várias espécies de atentados terroristas: o fundamentalismo religioso.
E por fundamentalismo não se está aludindo apenas ao de origem muçulmana. O perigo surge ao redor do planeta e em todas as religiões.
Temos, no Brasil, o fundamentalismo das igrejas neopentecostais. Não se trata de um fundamentalismo inofensivo, mas atuante e que produz sofrimento desnecessário, como quando a bancada evangélica tentou excluir da lista de procedimentos-padrão do SUS o aborto na gravidez decorrente de estupro, uma hipótese legalmente permitida pela Lei brasileira. E se avizinham do terrorismo todos os homicídios com motivação homofóbica perpetrados no Brasil em 2014, inspirados na mesma concepção de mundo dos pastores neopentecostais que enxergam na homossexualidade não apenas uma doença, mas um pecado efetivamente mortal.
Além disso, ao lado do fundamentalismo islâmico temos o fundamentalismo sionista, que perpetra o genuíno terrorismo de Estado, como quando houve a invasão da Faixa de Gaza em julho de 2014, da qual resultou até mesmo o bombardeio de uma escola financiada pela ONU. E nos Estados Unidos temos a gestão Bush, responsável pela invasão do Iraque e pelas atrocidades cometidas na prisão de Abu Ghraib, que recebeu total sustentação política de grupos de fundamentalistas cristãos como o Christian Coalition.
Essa ampla perspectiva permite visualizar um aspecto terrível no funcionamento desses grupos fundamentalistas espalhados pelo mundo: a radicalização de um deles resulta no fortalecimento e radicalização do outro. A radicalização do fundamentalismo sionista, com ataques à minoria palestina, tem como consequência o aumento do radicalismo em todo o mundo islâmico, que por sua vez confere maior legitimidade aos fundamentalistas cristãos dos EUA e às suas reivindicações de retomada e manutenção da Guerra ao Terror, que por seu turno arregimenta a atuação de países aliados na Europa, o que tem como resultado o aumento da chance de atos terroristas no velho continente, do que resulta o fortalecimento da islamofobia. O círculo é interminável.
Enquanto não reconhecermos que o fundamentalismo religioso, capaz de interferir na política interna e externa das principais nações do mundo, é uma ameaça crescente e um perigo real aos direitos humanos, às liberdades individuais e à democracia; enquanto não nos dedicarmos a analisar com seriedade e sem pressupostos ideológicos as razões que conduzem os indivíduos a professar uma fé religiosa fundamentalista, estaremos discutindo o sexo dos anjos, estaremos perdidos em disputas inúteis, sem notar que os fanáticos de todos os credos escalam nossos muros, para pilhar e violentar os valores humanistas conquistados às duras penas por nossos antepassados.
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