Smartphones são incríveis e atingiram a maturidade faz algum tempo. Tanto que começamos a ver, em termos práticos, o surgimento de uma segunda fase, uma tentativa de Apple e Google de dar mais destaque a iOS e Android como fim em vez de servirem apenas de palco para apps de terceiros. Em meio a essa disputa, a privacidade do usuário desponta como um fator de diferenciação.

A WWDC deste ano reforçou o que vem se tornando um mantra para a Apple: a defesa da privacidade do usuário. A empresa vive da venda de hardware, logo não tem a necessidade de conhecer os hábitos e gostos dos seus clientes, nem de se aproveitar desses dados para fazer dinheiro. É uma abordagem comercial diametralmente oposta à do Google, o que fortalece (ainda mais) a ideia de antagonismo entre as duas.

O Google precisa saber quais sites você visita, por onde você anda, com quem você conversa. O negócio da empresa de Mountain View é conectar anunciantes a públicos específicos, e é nessa palavra, “específicos,” que está a sua força e o que o destaca no campo da publicidade online. Gmail, YouTube, Android, todos os produtos do Google têm, em paralelo às suas finalidades explícitas, a tarefa de ajudar a formar perfis mais precisos da base de usuários. É o preço que se paga pela gratuidade do Google.


O Google usa o hardware como meio “burro” para uma nuvem super inteligente. A Apple, o contrário: dados mais limitados da nuvem enriquecendo seus já superiores dispositivos.

Dobrando as apostas

Há anos o Google não se incomoda muito em esconder suas intenções, o que levou a empresa a lançar alguns fiascos, como basicamente tudo o que tentou em redes sociais (Buzz, Wave, Plus). Só que eles acertaram em outras frentes, como na unificação da política de privacidade dos seus serviços e na expansão global do Android. Coisas como o Now on Tap são apostas ainda mais altas e específicas no acúmulo e processamento de dados pessoais a fim de entregar publicidade hiper segmentada.

Já a Apple parece estar dobrando a aposta em privacidade. Essa sempre foi uma virtude meio secundária, aferida por especialistas e ativistas dos movimentos e práticas da empresa, mas pouco presente no marketing institucional. Até agora.

A reviravolta pela qual o tema passou nos anos que se sucederam às revelações de Edward Snowden sobre a NSA se apresentou como uma boa oportunidade, uma que vem sendo aproveitada. O povo parece estar mais consciente também, e demandando transparência na forma como suas informações são tratadas. A última pesquisa da Pew Research sobre a relação dos adultos norte-americanos com a privacidade online demonstrou isso: 90% dos 498 entrevistados disseram que “controlar quais informações sobre eles são coletadas é importante.”

Foto: TechCrunch

Mesmo quando se aventura em personalização individualizada, como com o Assistente Proativo que virá no iOS 9, ou na recomendação de publicações e artigos do recém-anunciado Apple News, a empresa faz questão de enfatizar que o que ela sabe sobre o usuário é anonimizado, desvinculado de outras partes do seu ecossistema e jamais compartilhado com terceiros.

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Privacidade vs(?) Experiência de uso

Com frequência, quando se fala em privacidade e segurança online, se diz que essas duas características precisam estar em harmonia com a comodidade para serem adotadas em massa. As estratégias de Apple e Google em breve darão resultados tangíveis a essa teoria.

A Apple está entrando em uma área, a de predição de necessidades e aprendizado de máquina, em que o Google está claramente na frente. E, ao usuário final, pelo menos à maioria, o que ele vê na tela do smartphone é mais importante do que concordado ao (não) ler um termo de uso e o que é compartilhado nos bastidores de um sistema online. Em outras palavras, não basta ser privado para ganhar o usuário, é preciso ser melhor:

Reconhecidamente, o Google Maps é melhor que o Apple Maps, o Gmail é melhor que o Apple Mail, o Google Drive é melhor que o iCloud, o Google Docs é melhor que o iWord e o Google Fotos consegue “surpreender e deleitar” melhor que o Apple Fotos. Mesmo com os riscos.

Se a Apple realmente se importa com a nossa privacidade, então ela deve parar de falar sobre a importância disso e começar a criar serviços melhores baseados na nuvem que queiramos usar — aí sim ela nos protegerá.

Há bons argumentos no sentido de que é possível conciliar privacidade com experiência de uso, talvez com uma ou outra comodidade perdida no meio do caminho. Cabe à Apple provar isso, coisa que não conseguiu até o momento.

Quando coisas incríveis como o Google Fotos surgem, é difícil não notar na disparidade que existe entre as duas empresas. Não à toa, todo usuário de iPhone tem uma pastinha com apps nativos da Apple nunca usados. Num cenário onde o iOS atua como palco, isso não é problema. Como protagonista, ou seja, com a Siri e o Assistente Proativo bebendo dos apps nativos e dos dados gerados pelo usuário para serem úteis, aí vira algo que preocupa.

A defasagem dos apps e experiências de uso em relação ao Google é culpa da ineficácia da Apple em executar ou do modelo de privacidade adotado? Até que ponto o compromisso com a privacidade será empecilho à criação de apps e serviços melhores pelo Google? São perguntas que começarão a ser respondidas no final do ano, com Android M e iOS 9.

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Esse texto foi originalmente publicado no Manual do Usuário.

Rodrigo Ghedin

Escreve sobre tecnologia, estuda comunicação e vive tentando entender a convergência dessas duas áreas. Está à frente do <a>Manual do Usuário</a>