O que você acharia de ter a sua história de vida guardada num museu? Você mesmo, pessoa comum que pega ônibus, paga boleto, se apaixona, toma uma depois do expediente, vai pro parque no domingo. Você, e não o D. Pedro I, o Picasso ou a galera do Castelo Rá-Tim-Bum.Bom, alguém já pensou nisso e criou o programa Conte Sua História, no Museu da Pessoa, em São Paulo, que recebe semanalmente qualquer pessoa que queira gravar um depoimento.
A fila de espera chega a quatro meses. Já são quase 20 mil histórias de vida registradas que alimentam exposições, livros didáticos, pesquisas acadêmicas, filmes e programas de TV e mudam a perspectiva de que a História só é escrita pelos vencedores.Para pesquisa de escritores e roteiristas, o acervo do Museu é um prato cheio. “Tem personagens prontos. Quer saber como é um imigrante que veio pra São Paulo? A gente tem centenas. Você lê o depoimento e tem um retrato de vida construído”, conta Lucas Ferreira de Lara, coordenador do Conte.
Lucas já participou da gravação de mais de cem entrevistas e dá aqui seu depoimento sobre como é conversar com gente que vai do Vinícius Oliveira, ator mirim do filme Central do Brasil ao inventor do chapéu do Indiana Jones (ele é brasileiro!).
*Nos vídeos, selecionamos algumas das histórias preferidas dele
“O Conte Sua História é o carro-chefe do Museu da Pessoa e semanalmente recebe pessoas – qualquer pessoa – que queiram vir dar seu depoimento. Elas ligam, mandam e-mail, a gente agenda e grava. Sem triagem. É uma delicia porque você nunca sabe o que vem.
Já entrevistei meninas que foram abusadas sexualmente, já entrevistei torturadores e torturados da Ditadura Militar. Em seis anos trabalhando aqui, já fiz mais de cem entrevistas, certamente.
(ALERTA DE GATILHO: Esse vídeo contém relato de estupro)
1. Aquele que fingia ser um bom pai
Tudo começa com algumas linhas gerais, tipo: quem é você? E o restante é imprevisível. Tem aquelas entrevistas super gostosas, tem pessoas que são ótimas contadoras de histórias e tem entrevistas super pesadas.
Muitas pessoas são relutantes em contar sua história porque elas pensam: mas por que minha vida importa? Por exemplo, eu entrevistei um comerciante que vende cannoli, aquele doce italiano, dentro do estádio do Juventus, que é um time de futebol de imigrantes muito antigo. E ele dizia: ‘Por que vocês me chamaram? Não tenho nada pra falar’. Aí no lançamento da exposição em que usamos essa entrevista, ele foi, levou filhos, genro, ficou super emocionado, olhou pra mim e falou: ‘Agora eu entendi!’. Quando a pessoa percebe que junto com outras, sua história ganha sentido, o meu trabalho vale a pena.
A missão do museu é transformar essas histórias de vida em fonte de conhecimento. A gente prega que toda pessoa tem o direito de ter sua história de vida preservada, independente de quem seja.
Na nossa metodologia de entrevista [disponível no site do museu] tem muito peso a relação do entrevistado com o entrevistador. Somos sempre dois. O P1 [pesquisador 1] é o cara que vai fazendo entrevista. O P2 [pesquisador 2] vai fazendo minutagem, selecionando os trechos que seriam mais legais para um vídeo. O P1 não pode ter nada na mão, nem uma caneta, é olho no olho do entrevistado. Pra gente não tem nada mais importante – e pra mim mesmo – do que estar ali com a pessoa. Ela está abrindo a vida dela. Você certamente sabe mais sobre a vida dela do que o filho dela, do que a mulher dela e tem que ser uma relação recíproca.
Mas a gente, entrevistador, nunca compartilha uma história nossa. A metodologia é totalmente focada na entrega do entrevistado. É uma coisa difícil, mas mais bonita ao mesmo tempo porque a comunicação se dá no olhar. A pessoa vê que você se surpreendeu ou que se emocionou com uma história triste dela. É uma troca de gestos.
2. Amor à camisa
Existem limites nessa relação. É muito tênue a linha do que a gente pode ou não perguntar. Então muitas vezes você sente que a pessoa não está disposta a falar sobre determinada coisa e vai muito do seu treinamento saber se insiste ou não. Por exemplo: tem muitas pessoas mais velhas que criaram uma expectativa de registrar seu legado de vida e chegam com discurso pronto. Vai do pesquisador ir desconstruindo esse discurso, mas com um respeito pela entrega da pessoa, pelo direito dela de selecionar o que quer contar. É muito louco, a memória é uma coisa muito louca. Se você vier hoje, vai contar algumas coisas. Se vier daqui uma semana, já vai contar outras.
Tem muita história de pescador e quem é você pra contestar? Na região do Tapajós [o museu faz expedições para gravar séries temáticas], um cara contou que viu o boto! E que o boto falou pra ele que o filho dele ia nascer. OK… Pra nós, um bom contador de histórias geralmente é aquele que… Assim, se você pergunta: do que você brincava quando era criança? Tem gente que diz que jogava bola. E tem gente que fica 45 minutos só descrevendo as brincadeiras da infância. Pra gente, o bom contador de histórias é esse.
3. Vou achar o dono
As entrevistas têm em média 1h30 de duração, mas já fiz em 40 minutos e em 6 horas. A ideia não é que se fale sobre o que acha sobre determinado tema. Mas que mostre como aquele tema aparece na sua vida. Então muitas vezes, numa série sobre consumo sustentável, você entrevista um presidente de uma ONG de reciclagem e esse tema vai aparecer na infância do cara, na relação que a mãe dele tinha com as coisas que ia jogar fora. Pra gente o bom contador de histórias é o que está disposto a compartilhar.
Um que me marcou foi um cara que nos deu um briefing básico e, quando a gente entrou no estúdio de gravação, parecia que eu estava numa dimensão paralela de tanto que a história era envolvente, meio realismo mágico, meio García Marquez. Ele conta a cena da morte do pai numa luta de facas na frente dele, num bar, com o pai e o oponente morrendo abraçados no chão. E ele conta como o sangue escorria em volta. A gente- eu e o outro pesquisador – saiu da história e ficou meia hora assim [Lucas faz uma expressão de queixo caído].
A pessoa está ali falando de si, mas está falando sobre a História do Brasil, a História Social e História dos Costumes. O nosso acervo fotográfico [cada entrevistado leva dez fotos que ilustrem sua vida] – que a gente chama de álbuns de família – é meu preferido. Porque é uma História da vida privada no Brasil. Tem fotos de trabalho, de bebê, no parque, na formatura, no carnaval.
Como historiador, o Museu me encantou muito com essa perspectiva de que a gente não trabalha com a História dos grandes nomes. Por exemplo, cada vez tem entrado mais conteúdo nosso em livros didáticos. Isso é legal porque você vai trabalhar um tema como ditadura e consegue ter várias perspectivas. Assim como você tem a foto, tem o texto, tem o documento oficial, você tem o depoimento como mais um documento. É incrível… Você mostra que a História só faz sentido se construída por todo mundo.
4. O andarilho do Cambuci
Muita gente procura o acervo pra pesquisa, de arquitetos a arqueólogos. E vêm muito cineasta e escritor. Recentemente, veio um pessoal da TV Brasil que achou 12 histórias incríveis e queria fazer uma série sobre elas. Nesses casos, a gente entra em contato com a pessoa e vê se ela autoriza a passar o contato. Porque tem pessoas que não querem e que até pedem pra tirar seu depoimento do ar.
Os motivos são casos clássicos: amor e trabalho. O cara vem aqui, conta uma história lindíssima de amor e como lutaram contra tudo e todos pra ficarem juntos etc. Passa um ano o cara te liga e fala: ‘Tô com outra pessoa, ela viu o depoimento no ar e isso tá me complicando!’ E de trabalho o cara vem, fala que ama o trabalho, que não consegue se imaginar noutro lugar. Daí um ano ele está na empresa concorrente e liga falando que alguém jogou o nome dele no Google, viu o vídeo e isso quase lhe custou a vaga.
São tantas histórias de vida que nem sei quais minhas preferidas… É muito difícil falar! (risos). É igual chegar numa festa de família e perguntar se você gosta mais do seu pai ou da sua mãe.
Quando vim para São Paulo eu queria dar aula, mas me apaixonei pelos museus porque vi que eles têm outras formas de compartilhar o conhecimento. Meu avo é pernambucano e tinha muito forte a coisa de contação de histórias. Minha avó é italianassa e contava história o dia inteiro enquanto cozinhava. Eles moravam no mesmo terreno que a gente em Praia Grande (SP), onde cresci e talvez meu gosto pelas histórias de vida tenha vindo disso.
Amo isso aqui. Tenho muitos amigos que trabalham noutras áreas e morrem de inveja. A equipe que está aqui tem a visão de que um trabalho como esse não tem dinheiro que pague. Você ter a oportunidade de conhecer outra pessoa, outro universo a cada semana é enriquecedor. A partir do momento em que você entra no estúdio e acende aquela luzinha vermelha [que sinaliza que se está gravando] qualquer coisa pode acontecer.”
O Museu da Pessoa é virtual. Tem 60 mil fotos e 17 mil depoimentos, dos quais 12 mil imagens e 11 mil transcrições estão disponíveis online. Muitas entrevistas têm trechos disponibilizados em vídeo. Dá pra pesquisar e criar suas próprias “coleções”, com vídeos separados por temas, como cuidar do outro, vida no campo, futebol, literatura infantil etc. O Museu destaca as coleções mais bacanas criadas pelos visitantes. Dá também pra enviar um vídeo com sua história de vida, caso seja de fora de São Paulo, ou se voluntariar pra ajudar em transcrições e catalogação à distância. Saiba mais em: http://www.museudapessoa.net
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Nota da edição: Uma vez por mês você acompanha, no PdH, uma republicação do Projeto Lupa.
Ele reúne depoimentos e fotos de profissionais ligados à arte de contar histórias. Apresentam escritores, roteiristas, jornalistas, contadores de histórias, dramaturgos, redatores publicitários, críticos literários, letristas musicais, entre tantos outros. São muitos personagens, com algo em comum: a paixão pelas palavras.
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