Autonomia é a arte de decidir por si, isto é, a capacidade de compreendermos o que é melhor para nós mesmos e, então, implementar nossas decisões. Autonomia também significa poder rever nossos caminhos e decidir por outra coisa que não a que nos é oferecida ou a que todo mundo faz.
Se por um lado as forças externas — a cultura, a influência das pessoas próximas, os espaços que frequentamos, as referências e admirações que cultivamos — são capazes de nos condicionar, elas não podem determinar como vamos agir. Ainda que os condicionantes extrínsecos sejam difíceis de ignorar, a determinação de como agir é um atributo intrínseco e intransferível de cada um.
Humberto Maturana, em suas reflexões sobre o que condiciona o fazer humano, afirma que existem dois tipos de emoções, entendidas por ele especificamente como “disposições corporais dinâmicas”, que condicionam diferentes domínios de ação possíveis: o amor e a rejeição. O amor, para Maturana, é a aceitação incondicional do outro como legítimo outro (como na poesia do psicodramatista Jacob Levy Moreno: “Então ver-te-ei com os teus olhos; e tu ver-me-ás com os meus”).
A partir disso, é possível inferir que o amor, conforme delimitado por Maturana, é um verdadeiro promotor de autonomia nas relações. Talvez por isso o autor tenha afirmado que é o amor a emoção central do convívio social. Só por meio do amor é que acolhemos as escolhas, sentimentos e dizeres do outro sem retrucar. Sem querer impor as nossas verdades. É somente por meio do amor que percebemos a habilidade de todos em assumir uma vida autônoma.
Assim, abrimos espaço para o desenvolvimento da autonomia do outro. Isso não significa que não possamos interagir com ele, mas a forma com que as interações ocorrem a partir do amor é diferente. É horizontal e dialógica. Tal postura aponta para uma disposição genuína em entender profundamente e ajudar, sem achar que podemos resolver os problemas das pessoas.
A outra emoção que Humberto Maturana distingue é a rejeição. Ao rejeitarmos algo ou alguém, estamos negando internamente a possibilidade de convívio com aquela realidade. Nos fechamos ao outro e, assim, desabilitamos completamente nossa curiosidade em relação a ele. Ao deixarmos de reconhecer nas pessoas a sua legitimidade em agir diferente de nós, dificultamos muito o avanço de sua autonomia.
Na verdade, se considerarmos a autonomia como a capacidade de decidir o mais livremente possível, a rejeição ao outro causa em nós a mesma prisão que causamos a ele. Ficamos condicionados a rejeitar, e assim encolhemos nossa própria liberdade em proceder de outra maneira.
Ao agir de forma recorrente sob a emoção da rejeição, um sentimento de não poder voltar atrás começa a nos rodear, uma vez que é penoso admitir que não somos mais os únicos donos da verdade. Nesse sentido, a pesquisadora Maria da Conceição de Almeida traz algumas provocações interessantes:
O primeiro (rejeição) opera pela recusa prévia frente a um fenômeno, a um valor, a uma circunstância. Poderíamos chamar a isso de um estado cognitivo covarde, medroso, frágil. Rejeitar e negar a priori uma situação, um enunciado, ou um “outro” qualquer, não denota a resistência como fragilidade?
A recusa como medo de autodestruição? A negação apriorística como inconsistência interna que não pode se pôr à prova?
Infelizmente sinto que a rejeição tem sido a emoção predominante na educação formal: negamos sucessivamente as curiosidades, o poder de escolha e a manifestação dos talentos únicos de cada pessoa.
Maturana, no entanto, não afirma que o amor e a rejeição sejam contrários. O oposto de ambos é a indiferença. Estar indiferente ao outro é não o enxergar, é estar apático, inerte. Assim como a rejeição, penso que a indiferença exerce uma destacada influência nos espaços educativos tradicionais, na medida em que se percebe nos estudantes — e em muitos professores — um estado de torpor bastante peculiar.
Por sentirem que suas singularidades não estão sendo notadas, deixam também de enxergar. Assim, é possível concluir que quando somos indiferentes em relação ao outro, tudo o que conseguimos é suscitar nele mais indiferença ou até mesmo rejeição. Quando o rejeitamos em seu direito de ser alguém diferente de nós, causamos nele rejeição ou, às vezes, indiferença.
O amor não entra nessa conta.
Logo, a autonomia também não.
Vejamos o que Rubem Alves nos diz sobre o olhar em um trecho que se conecta intimamente com o que estamos falando a respeito das emoções como condicionantes das nossas ações:
Há tantos olhares diferentes! Há olhar de desprezo, de admiração, de ternura, de ódio, de vergonha, de alegria… A mãe encosta o filhinho na parede e, a um metro de distância, lhe estende os braços e diz sorrindo: “Vem”. Encorajada pelo olhar, a criança, que ainda não sabe andar, dá seus primeiros passos.
Há olhares que dão coragem. E há olhares que destroem. Por exemplo, aquele olhar terrível da professora que encara a criança de um certo jeito, sem nada dizer. Mas a criança entende o que o seu olhar está dizendo: “Como você é burra…”.
Ao considerar uma ideia de autonomia que conversa com a perspectiva de Humberto Maturana, o conceito deixa de exprimir um significado voltado para o primado incondicional do indivíduo para dar lugar à noção de autonomia com corresponsabilidade. Traduzindo: não estamos tratando do mesmo conceito de autonomia que surgiu lá atrás, com a burguesia e o Iluminismo europeu. É como se vinculássemos à demanda por liberdade individual — epicentro do significado inicial de autonomia — um cuidado amoroso com o outro, legítimo ainda que muito diferente de mim.
Se seguirmos o raciocínio adicionando ao significado de autonomia um cuidado atento em relação aos processos do meio que nos cerca, chegaremos à noção de “ontonomia”. De acordo com Vitória Mendonça de Barros, do Centro de Educação Transdisciplinar (CETRANS), se a heteronomia ocorre a partir de imposições externas e a autonomia, em seu sentido puro, se dá por meio de decisões absolutamente baseadas no sujeito, o lugar da ontonomia é o da interação entre o eu, o outro e o mundo.
Através do diálogo, nossa capacidade de reflexão é maximizada e, portanto, decisões mais conscientes podem ser tomadas. Assim, onde há ontonomia a liberdade também é potencializada, uma vez que as pessoas não se veem presas nem a um sistema tradicional de regras, nem ao seu próprio ego.
Ao encaixar no significado de autonomia as ideias de responsabilidade para com o outro e a natureza, fica claro que não estamos defendendo um ideal ingênuo, solitário e libertário a qualquer custo. A autonomia que enxergamos no doutorado informal vai sendo construída ativamente por meio da interação. Ela ocorre a partir dos encontros “de igual para igual” do indivíduo com as realidades circundantes, e aí sim a pessoa pode decidir com liberdade.
Precisamos romper com o estereótipo do cientista autodidata que se isola em seu laboratório durante longos períodos para só sair de lá com um prêmio Nobel. A autonomia educacional que propomos é aquela que se permite ser não só autodidata, como alterdidata. Assim, auto e alter — o eu e o outro — são capazes de se transformar a partir do que trocam entre si.
Mas, se essa ideia de autonomia é tão próxima da ontonomia, porque então escolhemos não utilizar este último termo? Em toda a trajetória do grupo que se dedicou a sistematizar as bases do doutorado informal, houve uma preocupação a respeito de como iríamos apresentá-lo e comunicá-lo. Ontonomia não é um termo usual, ao passo que a palavra autonomia, além de ser mais palatável, já se disseminou no Brasil principalmente por conta do pensamento de Paulo Freire. Aliado a isso, vejo tantos discursos a favor da autonomia na educação que comecei a enxergar o doutorado informal como uma maneira concreta de tirá-la do papel e trazê-la para a esfera do indivíduo. Se queremos ser autônomos em relação ao que aprendemos, nada mais coerente do que começar a mudança que queremos ver a partir de nós mesmos.
A autonomia também pode ser entendida com base no arquétipo da trimembração do ser humano proposto pela antroposofia — pensar, sentir e querer/agir. Segundo essa perspectiva, dispomos dessas três faculdades para atuar no mundo. Justamente por se tratar de um arquétipo, o conhecimento do ser humano trimembrado tem raízes ancestrais. Satish Kumar, fundador da Schumacher College na Inglaterra, propõe como lema da faculdade algo muito semelhante: cabeça, coração e mãos.
Partindo dessa visão, distingo três possibilidades de vivência da autonomia: na dimensão do pensar ela se refere à capacidade de lidar com a liberdade do que aprender (temas, assuntos, áreas de interesse); na dimensão do sentir, é a habilidade de interagir livremente com qualquer pessoa ou realidade, confiando na destreza de nossas intuições; e na dimensão do querer/agir, trata-se da coragem necessária para criar ou escolher os procedimentos e formatos mais ajustados às ações que cada um quer realizar.
Há ainda uma quarta possibilidade, que se apresenta ao se pensar a dimensão do querer/agir em um sentido mais próximo aos nossos desejos e vontades (querer). É a autonomia do porquê: a capacidade de escolhermos nossas próprias motivações em um caminho de aprendizagem. Mesmo em ambientes educativos que já permitem às pessoas construírem as autonomias do que (pensar), do quem (sentir) e do como (querer/agir mais próximo do agir), ainda assim a autonomia do porquê pode não ter sido conquistada.
Não é trivial: para que isso aconteça é preciso que abdiquemos de qualquer pretensão de restringir ou controlar os desejos, intenções e sonhos do outro. A autonomia do porquê é a motivação intrínseca sendo capaz de se expressar de forma livre. Se considerarmos que toda ação parte de um motivo, fazer valer a autonomia do porquê requer que desde o início não haja tentativas de redirecionar (ou anular) a vontade de alguém. Nem sempre nossas motivações são claras, mas é preciso que haja liberdade suficiente para que possamos aprender a escutá-las.
Infelizmente, as autonomias do quê, do quem, do como e do porquê são cotidianamente banidas em boa parte dos espaços formais de ensino. Vejo alguns projetos que já têm conseguido alcançar as duas primeiras, mas é especialmente difícil criar espaços que propiciem as duas últimas. O doutorado informal pode ser um poderoso aliado para vivenciarmos essas autonomias. Por meio de um percurso de aprendizagem livre é possível sentir na pele o que significa uma pedagogia da autonomia. As dores e as delícias.
Obs.: este artigo foi originalmente publicado no Medium do autor.
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