Nota do editor: assim que li o texto “O racismo não é um problema individual”, pedi ao Alex Castro que o reescrevesse apenas trocando “racismo” por “machismo” e fazendo as devidas alterações de contexto. O resultado segue abaixo. De fato, se quisermos conversar sobre (e eventualmente superar) o machismo, precisamos despessoalizá-lo.

Eu nunca acusei nem jamais acusaria ninguém de machista. Um, porque é mal-educado. Dois, porque o machismo ou não das pessoas individualmente é irrelevante.

Ninguém está inocente nesse tribunal, nem mesmo as próprias vítimas – que muitas vezes são algozes de si mesmos. Quem pode levantar a mão e jurar, de cara limpa, sua completa inocência?

Por um lado, uma típica tática do deixa-disso brasileiro é definir machismo de modo tão restritivo que a palavra se esvazia. Realmente, se machista é só aquele cara que ativamente vai lá e dá na cara da mulher, então machistas não somos nós, os cultos e bem-educados, mas aquele outro, lá longe, distante.

Machismo é coisa de publicitário americano dos anos 50, certo?

Por outro lado, instituir uma caça às bruxas aos “machistas” entre nós também é um caminho sem volta, pois acaba fazendo do machismo um pecado quase religioso, daqueles que se comete até em pensamento.

Não sou tribunal pra sair decretando quem é machista e quem não é. E nem vocês, amigos leitores. Nossa sociedade é complicada demais pra isso. Nada é tão simples assim.

O problema do Brasil não é o machismo individual de uma ou outra pessoa, mas o machismo estrutural, constitutivo, de nossa sociedade.

Não estou propondo de modo algum uma reflexão individual sobre nosso próprio machismo como pessoas. Isso não adianta nada. Vai ter gente dizendo que não é machista porque nunca bateu em mulher e outro vai dizer que é machista porque sente tesão pela bunduda mesmo achando ela burra e chata. E daí?

Estou propondo uma reflexão sobre como funciona o nosso país, sobre nossa história, sobre nossas dinâmicas sociais, sobre nossa política, sobre nosso padrão de beleza, sobre nossa literatura.

A própria estrutura da nossa sociedade é tão arraigadamente machista que não é necessário haver pessoas-de-opiniões-machistas no controle. De certo modo, essas pessoas seriam até contraproducentes: chamariam muito atenção. Basta que todos façam seu trabalho honestamente, que a polícia desconfie sempre das mulheres que gritam “Estupro!” ou que as agências de publicidade continuem sempre objetificando a mulher, além de mil outras pequenas coisas que nos soam totalmente naturais, e pronto, as mulheres continuarão efetivamente afastados dos centros de poder – sem que exista uma única lei contra elas! Apesar de termos uma presidenta…

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Mudar nossas próprias opiniões é razoavelmente fácil. Nossa tarefa é mudar as próprias bases da sociedade. Reescrever nossa teoria de Brasil.

Nosso baralho está viciado

É uma questão de algoritmo social, não de buscas individuais

Nossa sociedade não se organizou sozinha, nem caiu pronta do céu: foi organizada por muitos homens (ênfase em “homens”), ao longo de muitos séculos, e obedece, via de regra, aos interesses de quem a organizou – interesses muitas vezes conflitantes e contraditórios, pois a sociedade é fruto não de uma “conspiração a portas fechadas”, mas de um longo processo social e político.

No caso do Brasil, nossa sociedade foi engendrada por uma elite machista, classista, hierarquizada, racista, paternalista, hipócrita e autoritária, e continuamos funcionando de acordo com esse paradigma até hoje, mesmo que sob o verniz da democracia e do estado de direito.

Então, se todos os brasileiros magicamente deixarem de ser machistas mas as estruturas e instituições permanecerem inalteradas, essa nossa hipotética sociedade sem machistas continuará intrinsecamente machista e marcada pela mais profunda desigualdade de gênero.

Acredito nos bons sentimentos de todos, mas não deixo de achar incrível que, mesmo ninguém sendo machista nessa nossa sociedade tão linda, o resultado final é que as cidadãs brasileiras sempre acabam se fudendo.

O baralho que herdamos dos nossos antepassados já está viciado para beneficiar sempre um tipo específico de jogador. Não basta somente que nós, os jogadores beneficiados, simplesmente não trapaceemos. É necessário trocar de baralho.

* Melhor livro para se entender as questões de gênero no mundo de hoje: Problemas do Gênero: Feminismo e Subversão de Identidade, de Judith Butler.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu