Auditório bem cheio no colóquio da Faculdade de Direito. Sem ar condicionado, o calor ia me levando à sonolência. Mas o assunto é bom e, os expositores, preparados. De um lado, a pesquisadora entusiasmada defende a proposta de um possível Estatuto da Diversidade Sexual.
“É o Direito que diz como as coisas devem ocorrer na realidade ou é a realidade que, mostrando as trajetórias das pessoas na busca pela felicidade, desafia o Direito a evoluir?”
Refletia sobre isso enquanto o debatedor se preparava para fazer o contraponto. Lembro de bons argumentos que defendem que o indivíduo tem o direito de agir como bem quiser, desde que não prejudique os outros. Engraçado, não tinham resolvido isso no século XIX?
E aí o debatedor finaliza, me arrancando do meu sonho:
“Podem até aprovar o Estatuto da Diversidade Sexual, mas eu só peço que continuem permitindo que eu seja hétero!”
O auditório todo aplaude de pé. Aclamação geral.
E eu fico sem entender. Em nenhum momento durante a discussão a favor da proteção das novas formas de afetividade alguém procurou limitar os héteros. Aquilo me pareceu muito esquisito.
Comentando depois com amigos, vi que eles reagiram da mesma forma que a platéia. Fiquei bem curioso sobre a razão disso.
Vou tentar aqui lançar um pitaco. Só isso, longe de tentar resolver o ponto. Estou sinceramente interessado nas opiniões que surgirem.
As formas de regulação social
Vou me apoiar no exemplo da causa homossexual pra analisar a fonte de grande parte da resistência, o monoteísmo ocidental, que, também, foi um dos primeiros métodos de regulação social.
As religiões mais comuns no Ocidente possuem um conteúdo ético que é bem interessante. Deus se comunica basicamente para estipular o código moral a ser seguido, segundo o qual seremos recompensados ou punidos. Uma violação desse código, apesar de poder causar prejuízo para os outros, é especialmente ruim por constituir uma ofensa a Deus.
E esse conteúdo é interessante porque ele é bem parecido com o conteúdo ético que fundamenta a atuação do Estado moderno. Pegue a idéia de pecado, substitua Deus por Estado e você tem um raciocínio que é bem comum e útil no Direito Penal, por exemplo.
Eu não aponto essa semelhança para criticar. É só uma constatação. Nem seria louco de, a partir do meu ateísmo, propor o fim do Estado. Acho legítima certa regulação social. Mas não acho que uma sociedade regulada é necessariamente uma sociedade ética ou esclarecida. Esse paralelo Estado-Religião serve apenas pra tentar evidenciar o que eu acho que sejam as razões de um comodismo e de um abuso.
O Estado-Deus nas sociedades ocidentais
Em razão disso, vivemos uma regulação dual: certo ou errado; virtude ou pecado, lícito ou ilícito. São categorias rígidas, pré-definidas. Por outro lado, qualquer visita a consultórios de psicologia vai revelar nuances, matizes, um mosaico humano em degradê.
Podemos até afirmar que vivemos em um Estado laico, mas ainda vivemos em arenas em que a questão fundamental é definir o certo e o errado, na tarefa de identificar e punir as pessoas ruins. Dá pra entender o apelo desse modelo. Nele, o controle parece eficiente contra um mundo complicado. É só separar o joio do trigo e está tudo certo.
Nossa sociedade acaba espelhando esse modelo e os elos da nossa rede se formam ou se rompem muitas vezes segundo esses critérios. Não nos afastamos mais dos pecadores, mas dos culpados.
E olha que foi Jesus quem impediu o apedrejamento da prostituta. Daí eu achar que esse modelo tem mais a ver com o que queríamos – na nossa fragilidade – que o Estado fosse, do que propriamente com os valores que inspiraram o modelo.
A lei e os mandamentos
Se violar a lei parece pecado, o que é seguir a lei? “Ora, é fazer o certo!” Concordo, mas dá pra ir além. Se a lei favorece meu comportamento, significa que tenho respaldo do Estado. Não só material – no sentido de que posso me defender se alguém me atingir – mas respaldo moral. Em outras palavras, o Estado-Deus disse que estou certo.
Se isso parecer que faz sentido, qual será a reação quando o Estado diz, por meio da lei, que um comportamento, que sempre foi visto como oposto ao correto, passa a ser permitido? Nossa lógica dual entra em pane e o resultado é bastante angústia.
“Peraí, agora o Estado disse que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é possível, certo. Isso quer dizer então que o meu casamento heterossexual é o errado?”
Além disso, quando o Deus-Estado acolhe um novo comportamento – por meio do direito – isso lança sobre aqueles que conduzem suas vidas de modo tradicional uma luz de auto-avaliação: “então existe outro jeito de viver a vida?”.
Só que não é bom passar por isso.
Acho que o debatedor tirou sua frase de efeito – “que continuem permitindo que eu seja hétero” – desta visão.
Qual é a jogada, então?
Esse Deus, ao invés do outro, está ao nosso alcance. Vemos a face dele e o caminho está aberto à todos. É só participar da sociedade democrática.
Se o truque pra ganhar é identificar certos padrões com a fala do Estado, basta confundir a vitória moral com a vitória política. Esse fenômeno em que grupos sociais disputam a formação e a expressão da vontade do Estado foi chamado de Legislação simbólica pelo professor Marcelo Neves, da Universidade de Pernambuco.
Na opinião do professor, além dessa legislação simbólica servir pra confirmar os valores de um grupo sobre o outro, serve também pra criar uma aparência de atuação estatal, sem resolver de fato o problema.
Embora eu compreenda e concorde com o movimento de afirmação legislativa que levou homossexuais, negros e mulheres à política, acabo pensando que o professor tem sua razão. As manifestações legislativas favoráveis a esses grupos, embora importantes, não resolveram os problemas e ainda criaram resistência dos grupos que lhes são “contrários”, que, de forma ressentida, reclamam das ditaduras das minorias.
Uma breve (in)conclusão
Você está aí lendo isso querendo concordar ou discordar, querendo justiça quando os jornais exploram um crime particularmente ruim, querendo acertar, querendo saber “a verdade”, estabelcer culpas e responsabilidades. Desista. A realidade sempre vai dar rasteiras no nosso dualismo do céu e a terra e da vã filosofia.
A sensação de confusão já o coloca num impulso de concordar ou discordar e a fragilidade está aí, não na sociedade.
Retomo o mote inicial do texto. Não é a forma da união entre as pessoas que denota o avanço da sociedade. A sociedade avança na medida em que reconhece que não existe uma união intrinsecamente boa ou natural, e pára de meter o bedelho na forma como adultos irão buscar a felicidade.
A falha da técnica regulatória não é de técnica, mas de propósito. Não precisamos só regular as novas situações – embora isso não seja ruim.
Precisamos é de novas formas de pensar.
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