Ser médico, entre outros privilégios – e encargos – me obriga a lembrar o tempo inteiro de que nossa ilusão de controle é o mais frágil dos nossos delírios cotidianos. Por algum motivo, acreditamos que estamos seguros. Temos nossas carreiras planejadas, estamos certos de que teremos filhos, prometemos aos outros e a nós mesmos que estaremos lá – onde e quando quer que seja.
De vez em quando, temos lapsos de compreensão da nossa fragilidade e vulnerabilidade – para voltar à sonolência usual logo em seguida. Sabe aquelas horas em que – quase!? – o ônibus de mais de 10tons quase besuntou o asfalto com o seu corpo. Segundos de aquaplanagem quase o levaram, junto a sua amada, para um mergulho de carro num bonito abismo. Dois minúsculos genes em uma célula da sua medula quase translocaram-se iniciando uma proliferação desordenada que o levaria à morte em poucos meses.
Pois é, esse “quase” é menos confiável do que nossa síndrome de super-homem nos faz acreditar. Nesses anos frequentando ambientes diversos do Hospital das Clínicas – e da vida – entrei em contato com muitas histórias de quem experimentou o outro lado. De quem viveu o “imagina se…”
Listei alguns destes “imprevistos comuns”.
Trauma
As chamadas “causas externas” são a maior causa de morbidade e mortalidade entre a população mais jovem, especialmente a masculina. Nos mais velhos, perde espaço – mas não deixa de fazer estrago.
Lembro-me de grupos de jovens ricos e bonitos que passaram pela sala de emergência cirúrgica do Pronto Socorro do HC, vítimas de acidentes de carro no fim de noites de festa. Lembro-me da moça trabalhadora que se distraiu no ponto de ônibus da Rua Teodoro Sampaio e foi atingida por um ônibus. Lembro-me da criança de oito anos que chegou sem pulso ao PS do Hospital Universitário após um atropelamento. Lembro-me de pacientes desfigurados por explosões na UTI de queimados.
A diferença entre nós e eles?
O quase.
Link Vimeo | Uma leve brincadeira e…
Câncer
A palavra “câncer” já carrega em si um peso e uma série de imagens de horror que anulam completamente a possibilidade de que ela esteja na mesma frase em que se lê “eu”. Preconceitos pipocam por todos os lados. Câncer é coisa de gente velha, que fumou e bebeu a vida inteira. Ou resultado de tristeza e amargura. Obviamente, não poderíamos estar mais errados.
No estágio que fiz no grupo de Cuidados Paliativos do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo – um dos grupos pioneiros e mais respeitados do Brasil nessa bonita e crescente área da Medicina – acompanhei os últimos momentos de pacientes mais jovens que eu e mais alegres que você, vítimas de cânceres avançados e sem possibilidade de cura.
O rapaz do tumor de testículo com dores que nos desafiavam diariamente, a jovem com câncer de mama espalhado pelos pulmões, a colega de faculdade que lutou contra uma neoplasia hematológica, todos eles tinham planos pra o final de semana, para as próximas férias, para daqui a 10 anos. Nenhum deles imaginava que a vida seria tão pouco cuidadosa com seus anseios. Nós nunca imaginamos.
Doenças Mentais
Aconselhar um paciente, por qualquer motivo, a procurar um colega psiquiatra é quase garantia de cara feia, exaltação, exigências de esclarecimentos e retratações. Além de todo o preconceito segundo o qual a psiquiatria se ocuparia de “loucos”, há dificuldades sérias em abandonar nossa arrogância e admitir que a nossa mente pode não estar nos oferecendo a melhor leitura do mundo que nos cerca.
Observa-se que a prevalência total de transtornos mentais – abuso de substâncias, depressão, ansiedade, esquizofrenia, transtornos de personalidade – passa dos 20%.
Inclusive, isso deu origem àquela velha piadinha: se você estiver em uma sala com mais quatro pessoas e todas elas lhe parecerem normais, o maluco deve ser você.
O fato é que a chance de, em algum momento da vida, nossa mente nos falhar e precisarmos de ajuda profissional não é nada desprezível.
“Raridades”
Por mais que traumas, cânceres e as “doenças da alma” nos assustem e façam com que tentemos fechar os olhos, ainda temos alguma noção de que eles estão por aí, esperando o momento de nos sacudir. Isso não acontece com algumas condições menos conhecidas, mas que também podem nos pegar na próxima esquina.
Doenças auto-imunes – quando nosso sistema imunológico reconhece partes do nosso próprio corpo como estranhas e as “ataca” como a agressores – podem causar quadros dramáticos. Pacientes com lupus frequentam assiduamente o hospital, pela doença e pelas complicações do tratamento.
Infecções inicialmente simples, como uma gripe ou diarreia, às vezes precipitam quadros um pouco raros, como a Síndrome de Guillain-Barré ou a Síndrome Hemolítico-Urêmica.
Nada impede, ainda, que você seja portador de alguma doença genética rara, como o Angioedema Hereditário ou a Coréia de Huntington e ainda vá manifestar seus sintomas.
Sim, tudo isso existe e não estamos a salvo.
O que fazer diante desse fim?
Poderia ficar horas descrevendo doenças estranhas ou assustadoras – para ficar só nos problemas de saúde. Mas acho que já defendi meu ponto: não temos qualquer garantia na vida.
Mas e daí? Abraçamos-nos todos e esperamos a morte chegar? Antecipamos a coisa toda e vamos nós ao encontro da morte?
Creio que não. Nesse ponto eu compartilho um pouco da visão do Alex Castro.
Se só tecido morto não dói, a própria dor e a possibilidade da dor fazem parte do que nos define. Como diz Tyler Durden – com o perdão do clichê – é só quando aceitamos a dor, quando nos dispomos a perder tudo é que podemos fazer qualquer coisa.
“Primeiro você tem que saber – não temer – saber que um dia vai morrer.”
Estando atento – e aberto – à possibilidade do soco é que se vive para além do medo e do controle. É atravessando o caos de olhos bem abertos que experimentamos plenamente o mundo.
Lembrando-nos da morte (da dor, dos obstáculos, das armadilhas) não nos distraímos dos nossos projetos verdadeiros. Não custa nada reforçar, de novo e de novo, que não temos tempo a perder.
“A vida só se dá pra quem se deu”, como dizia o poeta.
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