Constantemente me vejo fazendo cálculos no orçamento e verificando promoções atraentes para conseguir comprar alguns bens materiais. Às vezes, nessas horas, me pergunto: faz sentido buscar tudo isso?

Será mesmo que temos clareza e certeza daquilo que queremos? Ou será que simplesmente estamos seguindo um modelo abstrato de oferta e demanda, que há muito tempo deixou de ser a realidade do que a humanidade, e nós, realmente precisamos?

Enxergamos o mundo através da ótica de mercado

…e isso nos deixa em uma situação complicada.

É difícil imaginar que é possível avaliar e administrar a sociedade de qualquer maneira que não seja precificando-a e deixando que o livre-mercado estabeleça as relações. Somos todos reféns do mito dos mercados autorregulados, julgamos que sem eles, ficaríamos perdidos.

Os mercados servem como uma bússola para pensar sobre o valor das coisas. Mesmo que ela raramente aponte para o norte, permite a fantasia de que sabemos para onde estamos indo e o que nos motiva.

É como se todos sofressem da cegueira de Anton

A cegueira de Anton é um estado clínico raro (categorizado clinicamente como anosognosia) que pode ocorrer após derrame ou dano cerebral traumático. Os portadores ficam cegos, porém dotados de uma crença de que podem enxergar.

Os médicos se vêem diante de pacientes que insistem não haver nada de errado com eles, apesar da vivência de estranhos episódios alucinógenos.

Os doentes enxergam fenômenos inexplicáveis – uma paciente relatou ver pela janela uma nova aldeia, e em outra ocasião a presença de uma criança esfomeada em sua casa. Eles explicam seus hematomas e ferimentos como consequências da falta de jeito e da distração, mas não da cegueira. Suas confabulações tortuosas, nas quais racionalizam os ferimentos, oferecem as condições para o diagnóstico da doença.

A insistência em que o livre-mercado ilumina nosso mundo, e a apresentação de desculpas quando ele falha de modo espetacular, é uma confabulação comparável à de quem finge enxergar quando está cego.

Síndromes como a cegueira de Anton transcendem a individualidade. Transformam não apenas o modo como enxergamos a nós mesmos, mas a própria capacidade de ver os outros como eles são: se alguém é rico, certamente tem sucesso e é feliz, não é mesmo? Olhar o mundo através dos mercados não apenas distorce nossa visão própria – chega a projetar nossa incapacidade sobre todos os demais.

Simples companheiros de consumo

Como metáfora, a cegueira de Anton nos ajuda a pensar por que é tão difícil entender a economia atual. Estamos presos a uma cultura e a uma política que insistem no fato de que mercados constituem a maneira apropriada de fazer sentido do mundo, que é possível torná-lo mais perfeito por meio irrestrito de oferta e procura.

Isso é uma ilusão. Além: distorce a forma como enxergamos as demais pessoas.

Ao olharmos para outros seres humanos como simples companheiros de consumo, ficamos cegos em relação às profundas conexões que existem entre nós e desvirtuamos nossas escolhas políticas e sociais. Como consumidor de alimentos, você pode tanto anunciar suas objeções quanto recusar a compra – voz ou saída. Não há espaço para renegociar, de modo que todo mundo possa se alimentar, nem para se tornar um coprodutor – existem somente as possibilidades de suplicar por mudanças ou ir embora.

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O pior cego é aquele que não quer enxergar

Também não adianta usar o fraco vocabulário político do consumismo ou insistir para que o governo “faça a coisa certa”. (Como se ele estivesse cometendo uma falha grave no serviço de atendimento ao consumidor, que poderia ser corrigida por meio de uma reclamação adequada a algum supervisor).

Não defendo um mundo sem mercados. A ideia do mercado como um lugar em que pessoas com necessidades distintas trocam bens está presente em todas as formas de civilização humana. O que caracteriza o mercado de hoje é que a troca não é realizada em função da necessidade, mas sim do lucro. É pura ideologia pensar que a melhor maneira da sociedade funcionar é deixar que os mercados busquem o lucro sem interferência.

Os termos em que operam os mercados são determinados pelos mais poderosos; é assim que funciona. A cegueira aqui, a anosognosia, é nossa fé numa faculdade que sempre nos trai – a promessa falsa de que mercados orientados para o lucro podem apontar o real valor de tudo.

Não se trata de um cabo de guerra entre mercados que empurra a sociedade em direção ao futuro e movimentos de retorno que a puxam de volta ao passado. Os movimentos são construídos a partir de políticas que as pessoas têm à mão e, com essas políticas, instituições completamente novas são erguidas. Mudanças sociais não constituem processos do tipo vai-vem. O debate teórico dicotômico entre Estado x Mercado está esgotado também.

O futuro será moldado por nossa vontade de imaginar um tipo diferente de sociedade de mercado e por novas maneiras de avaliarmos o mundo, sem recorrer ao tique de livre-mercado. Olhando para nossas próprias motivações intrínsecas, podemos deixar de nos comportar como doentes que se curam nos próximos 5% de desconto, ou IPI reduzido.

Às vezes me sinto um vidente cego da sociedade de mercado (consumidor). A grande preocupação é que esse comportamento age sobre toda a vida e sobre nossas decisões. Tudo é oferta x demanda. Só que não.

Reconhecer a cegueira já é um grande passo para viver melhor.

Imagens: arquivo da revista LIFE, sobre o “pequeno crash” de 1962 nos EUA

André Tamura

Consultor de Negócios, Estudante de Ciências Econômicas, apaixonado por Economia Comportamental. Nascido em São Paulo, operário no Japão e morador de Floripa.