Eu estava em um encontro que nem era propriamente sobre o tema. Era uma agenda transversal que reunia representantes de organizações da sociedade civil, do governo e de agências da Organização das Nações Unidas (ONU). A Xica, dita assim mesmo, apresentada assim, grafada assim, aproveitou a oportunidade e pediu a palavra. Levantou lá do fundinho uma mulher negra e pegou o microfone, sem demonstrar exaltação:
“Você me conhece? Você se sente bem em me representar? Estou falando como a Xica 200 milhões de pessoas do Brasil. Essa é uma angústia que eu tenho. Eu não tenho saber acadêmico, mas tenho o saber da prática, da sobrevivência. Na nossa comunidade, onde tem mulheres feministas, quantas Xicas da vida foram mantidas em cárcere privado durante dez anos, sobreviveu e agora tem sequelas, cega de um olho, dois natimorto, duas taquicardia, 51 anos, fiz ontem, tô viva. E aí eu me dirijo aos nossos representantes nacionais e internacionais e pergunto porque que não escutam uma Xica dessa? Será que é porque ela não é acadêmica? Ou porque não sabem? Se não sabiam, estão sabendo agora. Esses homens não nos escutam. A maioria dos representantes é homem. Eu fui espancada por um homem, mas não tomei raiva dos homens. Ainda acho que vou encontrar meu príncipe encantado. E tenho três filhas lindas, negras. Pelo amor de Deus. As mulheres estão gritando. Por serem espancadas, pela desigualdade, mas não tem escuta também para os homens. Só que a maior parte dos homens também não quer nos escutar. Eu sou uma mãe, mulher, livre. Eu quero voltar a estudar, fazer faculdade, estou começando um curso de inglês agora, não dá mais para camuflar a situação.”
Não dá. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que mais de um terço das mulheres de todo o mundo são vítimas de violência física e sexual. Trata-se de um problema de saúde global com proporções endêmicas, provocando problemas como fraturas, contusões, complicações na gravidez, depressão e transtornos mentais. A agressão cometida por parceiro íntimo é o tipo mais comum de violência contra as mulheres em todo o mundo, chegando a 30%. No Brasil, do total de 52.957 denúncias de violência contra a mulher recebidas pelo 180 em 2014, 27.369 corresponderam à violência física (51,68%).
91% dos entrevistados em maio e junho de 2013 pelo Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) concordam que “homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia”. Por outro lado, pesquisa realizada pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular conclui que jovens percebem o machismo arraigado na sociedade, mas reproduzem ações e valores que reiteram as desigualdades de gênero e a violência doméstica. Embora 96% dos jovens aprovem a Lei Maria da Penha, muitos parecem não se dar conta de assumir práticas sexistas e conservadoras. Xica, vítima de violências diversas, tem sorte. Ela não está entre as 50 mil mulheres assassinadas no Brasil por causas violentas entre 2001 e 2011. Segundo o Ipea, foram, em média, 5.664 mortes por ano, 472 a cada mês, 15,52 por dia ou uma morte a cada 1h30. Xica se salvou.
Estado das coisas
Quando vi a chamada para o evento, pensei “Como assim o primeiro? Nunca houve um antes?”. Parecia óbvia a necessidade, mas só agora, por iniciativa dos institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, tivemos o I Seminário Internacional Cultura da Violência Contra as Mulheres (São Paulo/2015). Lá, as “acadêmicas” que fazem escutas às Xicas diariamente tornaram público esse “grito”. A antropóloga Rita Segato, militante feminista e pesquisadora, explica que particularmente na família negra e indígena o homem se transformou no colonizador dentro de casa. Por sua fragilidade e vulnerabilidade, absorve o modelo de masculinidade do opressor e reproduz o mandato que chega de fora e o captura, tornando-se imensamente violento.
“Quando o Estado chega nas tribos, a violência aumenta, o que é um paradoxo. Às vezes a modernidade entrega com uma mão o que já tirou com a outra. Se não compreendemos a complexidade dessa cena, não vamos conseguir traçar estratégias adequadas.” Ela reflete ainda que, no Brasil, temos o hábito de considerar tudo o que acontece com a mulher como parte da esfera íntima, do espaço do lar. Está certa. De acordo com a pesquisa do Ipea, 89% dos entrevistados tenderam a concordar que “roupa suja deve ser lavada em casa” e 82% aceita que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Nos países da América Central, segundo ela, há uma percepção da diferença e dos vínculos entre crimes contra as mulheres na família e o avanço das gangues, os assassinatos e as formas de violência contra o corpo feminino, fenômeno que está sendo chamado de “as novas formas da guerra”.
Rita nos dá uma pista em vocabulário acadêmico que a intuição de Xica já havia registrado: o Estado não é inocente, porque também é contraventor. Sua origem, misógina, racista, patriarcal, ainda que acolha mulheres em alguns espaços institucionais, tem sua constituição atravessada pelas noções de conquista, colonização e formas específicas de ataque às mulheres, domínio, massacre físico e cultural dos corpos que não são brancos ou que são feminilizados.
A figura máxima de representação democrática no Brasil, a presidência da república, é hoje ocupada por uma mulher. A Câmara dos Deputados, no entanto, composta por representantes do povo eleitos pelo sistema proporcional em cada estado, conta com 513 Deputados Federais, com mandato de quatro anos. 50 são mulheres. Ou seja, menos de 10%. A composição do Senado Federal é de 81 Senadores. 13 mulheres. No cenário municipal, São Paulo, cidade da jornalista, tem 55 vereadores. 5 mulheres. Em Belo Horizonte, cidade da Xica, são 41 vereadores na Câmara. Apenas uma mulher no exercício. Talvez isso explique a dificuldade dos representantes em ouvir as Xicas ou mesmo se dar conta de sua existência.
A saída? Para a pesquisadora, estratégias que partam de dentro do Estado aliadas ao resgate do feminismo de rua praticado no início dos anos 70, onde a união de amigas, irmãs e relações vinculares faziam circular informação de maneira interpessoal, fortalecendo as mulheres para o reconhecimento e para a reação em situações de abuso, violência, assédio ou discriminação. O que seria um bom Estado? “Aquele que cuidasse da devolução do tecido comunitário, de sua restauração, que não nos permita respeitar o íntimo, a esfera privada, no caso de haver uma mulher sendo oprimida. A formação em comunidade conseguia proteger as mulheres muito melhor do que os agentes do Estado moderno.”
“Esse Estado que nós queremos, sem nós lá dentro, nunca vai existir.” O chamamento é de Luiza Bairros, ativista do movimento negro e ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do Brasil entre 2011 e 2014. Luiza conta que esteve recentemente em Tocantins. Ao visitar uma comunidade quilombola, estava preparada para ouvir reivindicações relativas à regularização de territórios, questão sobre a qual poucos avanços foram promovidos nos últimos anos. No entanto, a reivindicação girou em torno das bolsas de permanência para alunos cotistas na universidade da região.
“Quer dizer, eu não posso achar que não mudou nada, entendeu como é que é? Porque essa mãe que se levantou com a questão tem uma percepção do que ela, a família e a comunidade toda tem para reivindicar do Estado que definitivamente não é mais a mesma de dez, quinze anos atrás. Acho que fizemos as instituições brasileiras se moverem na direção da resposta às demandas, dos direitos, dos interesses do conjunto da população. Mas acho também que quanto mais caminhamos, mais está colocado para nós, mulheres, e para nós mulheres negras mais especificamente, a necessidade de avançar na ocupação dos espaços de poder efetivos. Porque é por esses espaços que nossas reivindicações chegam lá. No avanço que fizemos, criamos uma margem institucional e a discussão continua desigual.”
Continua desigual
A iniciativa Énois | Inteligência Jovem realizou um estudo, em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, com mais de 2.300 mulheres de 14 a 24 anos, das classes C, D e E, que envolveu a aplicação de questionário online e entrevistas em profundidade para compreender como a violência contra as mulheres e o machismo atingem as jovens de periferia. Os números levantados pelo estudo mostram que 74% das entrevistadas receberam um tratamento diferente em sua criação por serem mulheres. 90% dizem que deixaram de fazer alguma coisa por medo da violência, como usar determinadas roupas e frequentar espaços públicos. 77% acham que o machismo afetou seu desenvolvimento.
Flávia Piovesan, procuradora do Estado de São Paulo, especialista em Direitos Humanos, Direito Constitucional e Direito Internacional, traz mais alguns dados:
– 70% dos pobres do mundo são mulheres.
– 70% dos analfabetos adultos no mundo são mulheres.
– Se tomarmos como exemplo a pirâmide salarial brasileira, na base estão as mulheres negras, seguidas dos homens negros, mulheres brancas e homens brancos. O racismo é estruturante e se alia à perspectiva de gênero.
– Mulheres que trabalham fora dedicam à casa em média 4 horas do seu dia. Portanto, às 40 horas da jornada de trabalho adicionamos 28 horas, o que resulta em 68 horas semanais. Já os homens que trabalham fora, segundopesquisas do economista Pastore, dedicam 0,7 hora do seu dia à esfera doméstica. Uma jornada de trabalho de 45 horas semanais, portanto.
“O empoderamento das mulheres demanda autonomia física, econômica e política.” Flávia ressalta as recentes conquistas no poder judiciário, como o reconhecimento das uniões homoafetivas, em maio de 2011, numa atuação antimajoritária, bem como a antecipação terapêutica do parto no caso de anencefalia fetal. “Mas essas vitorias estão sendo ameaçadas por meio do estatuto na família e estatuto do nascituro, reação dos conservadores. Nosso parlamento é hoje o mais reacionário das últimas décadas, nossas pautas estão reféns das bancadas religiosas.”
Colaboração da mídia
Para Guilherme Canela, assessor de comunicação e informação para o Mercosul e Chile da Unesco, existe um chororô de jornalistas da região sobre a dificuldade de se fazer matérias de qualidade sobre a questão da violência de gênero. A rede complexa de discussão de políticas públicas esbarra nas questões de direitos humanos, coisa que, em teoria, apenas grandes corporações com poderio econômico e redações equipadas conseguiriam levar adiante.
O prêmio Pulitzer de reportagem deste ano vem para desmistificar essa impressão. Um pequeno jornal da Carolina do Sul foi contemplado pela série “Till Death Do Us Part” (Até que a morte nos separe), publicada ao longo de 2014. Glenn Smith, jornalista e editor de projetos especiais do periódico, conta que o trabalho de apuração teve início em 2013, quando as políticas de prevenção de violência de Washington DC apontaram a Carolina do Sul como o estado mais letal em termos de mulheres que tinham sua morte provocada por homens. A região já havia aparecido entre os dez estados mais letais nos últimos 15 anos e esteve em primeiro lugar três vezes.
“Começamos a nos perguntar porque isso acontecia e porque mais pessoas estavam se preocupando com isso. Passamos oito meses viajando por todo o estado conversando com vítimas, crianças, policiais, juízes, políticos, qualquer um que pudesse lançar luz à questão e nos ajudar a compreender todos os fatores políticos, culturais, econômicos ou qualquer outro que nos apontasse porque a Carolina do Sul enfrentava esse problema.” O resultado da investigação foi surpreende. Encontraram mais de 300 casos de mulheres que morreram nas mãos de homens em uma década. Isso é mais do que o número de soldados naturais do estado que morreram em combate no Afeganistão.
A quantidade de assassinatos de mulheres na Carolina do Sul é maior do que o dobro da média nacional. Entre os muitos fatores que levam a isso está a escassez de recursos para as vítimas. Durante a investigação, jornalistas constataram que havia 46 abrigos para animais, por exemplo, e apenas 18 para receber mulheres vítimas de abuso e violência doméstica. Depois, descobriram que cerca de 60% dos casos que seguiam para a corte criminal eram abandonados por uma ou outra razão. Dezenas de medidas foram adotadas na tentativa de prevenir mortes, mas as políticas não eram eficazes.
“Após a publicação da série, a resposta social veio quase que imediatamente. Policiais, políticos, juízes, todos estavam falando sobre o assunto, como melhorar os recursos, a educação, as políticas. Precisamos traçar estratégias, fazer campanhas de educação sobre violência doméstica nas escolas, aumentar a punição dos abusadores. Foi muito bom ver toda essa movimentação. Isso é um recado para a mídia lá fora. Nós somos uma empresa muito pequena. Temos uma equipe de 18 pessoas com uma tiragem de 8 mil exemplares. Alguns podem pensar que somente grandes corporações conseguem fazer esse tipo de projeto, mas não se você estiver comprometido em contar histórias que importam”, diz Glenn.
Guilherme acredita que o segredo dessa matéria é a associação entre discussão dos crimes e das políticas públicas, o que não acontece na cobertura de violência pela mídia brasileira. Em vez de tratar os relatos como ocorrências isoladas, a sugestão é que a mídia atue de maneira a situar casos individuais entre dados gerais e investigar as possíveis respostas sociais aos desafios que se colocam. É também uma questão de quantidade, espaço de cobertura e vocabulário politicamente correto, mas principalmente de perspectiva.
As mídias alternativas, no entanto, já cumprem um papel de reação, lançando por meio de ações autônomas campanhas de conscientização sobre os direitos das mulheres. É o caso da Chega de Fiu-Fiu, iniciativa do blog Think Olga, que começou com a atitude de um grupo de amigas e chegou até a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, promovendo uma ação conjunta com o Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Outros exemplos são as hashtags “eu não mereço ser estuprada” e “menina pode tudo”, esta última campanha do Énóis | Inteligência Jovem, incentivando relatos e protestos sobre o assunto, ampliando a percepção de situações abusivas e provocando debates.
“É curioso que se a internet tem sido um espaço de circulação de violência e de obrigação, também tem sido um espaço de resistência. As meninas estão mais politizadas e entendem mais coisas como violência, percebem o direito delas à integridade, ao consentimento, o direito ao próprio corpo… isso é um ganho impressionante”, afirma Beatriz Accioly, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). “As redes sociais, mais do que as mídias tradicionais, têm esse papel, o potencial subversivo de resistência, da possibilidade de mulheres se unirem em rede.”
Mas, ao facilitar o funcionamento de redes, a tecnologia fez surgir novas formas de abuso e crimes de gênero, como a chamada “pornografia de vingança”. Filmada e fotografada com ou sem consentimento, as imagens íntimas de uma mulher podem ser veiculadas no término do relacionamento, em situação de chantagem, extorsão ou revanche. “Acho importante questionar o termo pornografia e essa vingança. E as pessoas que circulam esse material? Para além da pessoa que iniciou, quem continua o círculo? Um fato como esse não diz respeito só ao casal nem aos profissionais de direito. Diz respeito a todo mundo que recebe e em vez de mandar um e-mail pra moça dizendo ‘eu sinto muito, serei testemunha se você for dar parte’, passa adiante ou dá risada.”
Entre os entrevistados em maio e junho de 2013 pelo SIPS do Ipea, 26% concordam que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. Em 2011, foram notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, 12.087 casos de estupro no Brasil, o que equivale a cerca de 23% do total registrado na polícia em 2012, conforme dados do Anuário 2013 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos no País, mas 91% dos homens dizem considerar que “bater em mulher é errado em qualquer situação”. 56% dos homens admitem que já cometeram alguma dessas formas de agressão: xingou, empurrou, agrediu com palavras, deu tapa, soco, impediu de sair de casa, obrigou a fazer sexo. (Data Popular/Instituto Avon 2013). Talvez esteja entre os que admitem aquele que manteve Xica sob cárcere e tortura por dez anos.
Homens que choram
A pesquisa do Data Popular e Instituto Avon, “Percepções dos Homens Sobre a Violência Doméstica contra a Mulher” (2013), revela que o ambiente da infância pode influenciar o comportamento do homem adulto. 67% dos agressores alegam ter presenciado discussões dos pais quando crianças, enquanto entre os não agressores esse número cai para 47%. Entre os agressores, 21% assistiram a episódios de violência física. Entre os não agressores o número cai para 9%.
A médica Ana Flávia D’Oliveira, pesquisadora e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), conta que inquéritos envolvendo homens que buscam auxílio no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) do estado de São Paulo mostram uma realidade de abandono, exploração, violência, negligência e abuso na infância, formando o homem adulto que sofre e reproduz a violência de maneira sistêmica, um quadro que é agravado pelo uso de entorpecentes.
“Eu trabalho com esse tema há 20 anos. Fiquei surpresa ao me deparar com uma população tão vulnerável, extremamente excluída, negra, gay, travesti. São homens que tiveram uma masculinidade praticamente impossível. Eles sofrem muita violência e perpetram muita, muita violência. Chama a minha atenção abuso sexual na infância, castigo físico pesado quando era criança e testemunhar violência entre o pai e a mãe. Precisamos falar disso para lembrar a cultura da violência e a dificuldade em se aderir a um padrão muito simplista, maniqueísta, de mulheres boas e homens misóginos, malvados, ruins. Essa dicotomia que às vezes nos serve instrumentalmente para uma ou outra ação nos solapa o chão de lutar contra a violência.”
Rita Segato concorda e destaca o próprio sistema político-econômico como exploratório e excludente. As pressões financeiras que recaem sobre os ombros masculinos na cultura patriarcal são motivadoras de crises de difícil solução. “O homem violento também sofre. De uma forma diferente de sofrimento, mas também sofre. E a erupção, o auge de letalidade das mulheres, o aumento da vitimização, da crueldade sobre seus corpos não pode ser separada das pressões, da intempérie, do risco permanente de cair na vida precária e não ter como sobreviver, a supressão de direitos dos trabalhadores, o declínio do salários, aumento do trabalho servil e escravo. Esse clima bélico entra nos lares e se reproduz nos espaços domésticos.”
O papel da experiência pessoal, cultural e da educação na motivação da agressividade já foi alvo do estudo de muitos pesquisadores das mais diversas áreas de atuação. O antropólogo Ashley Montagu dedicou um livro a discutir os mais citados estudos utilizados para apoiar as teorias da agressividade inata. Em The Nature of Human Aggression ele contesta argumentos da psicologia, neurologia, biologia e da própria antropologia. Para ele, o fato importante não é que um ser humano agressivo se tornou o que estava predestinado a ser, mas sim o que, dentro das limitações genéticas, aprendeu a ser.
“Os indícios mostram que todos os organismos, quando frustrados na satisfação de certas necessidades, especialmente das necessidades de dependência, da necessidade de amor, recorrem aos mesmos recursos orgânicos para tornar conhecidas suas necessidades. […] O fato de a criança desenvolver um componente agressivo em seu comportamento dependerá em grande parte da maneira pela qual foi socializada e dos modelos que a sociedade lhe forneceu.” Ele utiliza exemplos como o dos Tasaday, onde as crianças são desestimuladas a se comportar de maneira agressiva e os adultos convivem pacificamente, sem registros de ataques entre si ou entre bandos. O pesquisador descreve como a postura de cooperação e empatia atravessam as barreiras da seleção natural. Indivíduos egoístas e violentos tendem a ser solitários e, por isso, estão mais vulneráveis aos desafios da sobrevivência.
Ana Flávia ressalta as tantas categorias que criam grupos marginais, vulnerabilizando as populações que não correspondem aos padrões e levando-os a atitudes extremadas e antiprodutivas. “É sintoma de uma vida de exclusão que vai virar violência contra mulher, cachorro e criança que aparecer no caminho. Quem for mais fraco.
Temos que ter certa compaixão e esperteza de entender a situação como um todo. Homem tem afeto também. Quando pensamos que homem não é afetivo e não se importa com nenhuma forma de relação, estamos reproduzindo cultura de gênero nos padrões mais estereotipados. E isso você só descobre durante as conversas. Claro que a estrutura é injusta. Precisamos reconhecer essa injustiça, ainda que tenhamos que responsabilizá-los pela violência que praticam. A exploração econômica não só alimenta, mas acirra a violência na sociedade globalizada e competitiva. Se é para relembrar o sexismo, o racismo, vamos relembrar também o classismo.”
“Falar de gênero é falar de relação, não é falar só de feminino”, defende Beatriz Accioly. Para ela, a sociedade é responsável por formar homens limitados aos padrões de gênero, dizendo que “menino não chora”, “menino não dança” ou “menino não cruza as pernas”. A cultura do mercado também envolve a masculinidade desde a infância, já que os “brinquedos de menino” remetem a lutas e conquistas. “Precisamos discutir masculinidades e a criação de meninos, educar nossas crianças em condições igualitárias. Não ensinar meninas a não serem estupradas, ensinar meninos a não estuprarem.”
Obs: este texto foi originalmente publicado no BlogInverso. As ilustrações são do Vitor Massao.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.