Quando vi o primeiro pedacinho de mar aparecer na estrada para a vila de Regência, distrito da cidade de Linhares, no Espírito Santo, apontei animada para Ismael: “olha, ali o mar está limpo!”. “Calma, espera chegar lá”, ele me respondeu precavido.

Conversei com Jordana Freire, a bióloga responsável pela época de reprodução das tartarugas do projeto Tamar (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas / ICMBio), rodeada pela vegetação de mangue e observando os guaiamuns (caranguejos) na foz do Rio Doce. Ali o rio tinha coloração alaranjada e, próximo às margens, boias de contenção de óleo foram colocadas pela Samarco. “Mas só seguraram os peixes mortos”, Jordana me disse. 

O óleo se limita à superfície, e pode ser barrado. A lama não.
O guaiamum e a lama. A fauna local foi afetada, e aves foram encontradas mortas

A vista mais triste

Após conversarmos na beira do mangue no encontro entre água doce e salgada, seguimos para ver a marcação dos ninhos na praia. Quando chegamos lá, eu não dei conta. Chorei, chorei e chorei. Não esperava sentir uma tristeza tão imensa ao ver o mar, sempre a vista mais feliz que há para mim. Me desculpei com Jordana, e ela foi gentil. Disse que já não chorava porque suas lágrimas secaram.

Tudo o que víamos a partir do ponto em que estávamos era o marrom dos rejeitos da mineradora, mas a bióloga explicou que, mais ao sul da praia de 37 quilômetros, ainda havia um trecho de água limpa – ainda não se pode dizer ao certo se a lama vai se espalhar mais no sentido do sul da Bahia, norte do Rio de Janeiro ou até mesmo em direção ao oceano, porque tudo depende das correntes marítimas.  

O impacto foi muito sentido na região por que o oceano foi contaminado justo nos meses de novembro e dezembro, que são o pico da desova de tartarugas. Regência é o principal lugar de reprodução no estado e o único de desova da tartaruga gigante, ameaçada de extinção, no Brasil. Em geral, as fêmeas sobem até sete vezes cada uma na época de reprodução. “Isso quer dizer que elas estão aí no mar, no meio da lama”, explicou Jordana.

O mar, no tom marrom Samarco

Cada ninho é enterrado a uma profundidade de aproximadamente 50 centímetros pode conter até 120 ovos – a cada mil filhotes, só um ou dois chegam a se reproduzir. Essa vinha sendo uma temporada excelente, 200% acima do ano passado. Para reduzir os impactos, os ninhos estão sendo observados diariamente pelos pesquisadores, que marcam com estacas a data de postura dos ovos para monitorar seu andamento.

Assim, ao perceberem sinais de que os filhotes já quebraram os ovos, a equipe do Tamar tem feito o que chamam de “cesárea”. As equipes do Tamar antecipam a saída do ninho e levam as tartaruguinhas para o sul da praia, para dar ao menos um primeiro contato com a água limpa para os filhotes. Respeitar o processo de nascimento é importante, pois no momento em que as tartarugas andam até o mar é ativada uma espécie de GPS que fará com que voltem, anos depois, para se reproduzir na mesma região. Para computar dados e estabelecer estratégias,os pesquisadores de Regência fazem reuniões frequentes que incluem o braço do projeto que fica do outro lado da foz, em Povoação.

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Como tem sido em toda a Bacia, a Samarco contratou moradores para reforçar a equipe da cesárea de tartarugas e pescadores para ajudar na limpeza do rio. Mas nada disso resolverá o problema da vila que tira na temporada de verão o sustento de todo o ano. Na comunidade, segundo Jordana, a revolta é absoluta. “Tem gente que nem quer mais ver o rio”. Acostumado a promover uma colônia durante as férias, o Tamar vai oferecer algumas atividades novas, já que as crianças não poderão mais brincar na água.

Quando íamos embora, ainda observei uma revoada de aves brancas chamadas trintarréis na luz morna do fim de tarde. Ao fundo, quebravam fortes ondas laranjas. Foi uma das coisas mais lindas e tristes que meus olhos já viram.

 

Há mais rios

No retorno a São Paulo, no fim do dia da sexta, passamos uma ponte sobre o Tietê. Depois de seguir o Rio Doce por tantos dias observando a densidade, a cor, o cheiro, a vida e a morte de suas águas, foi natural olhar para o Tietê com a mesma vista de observação. Qual não foi minha surpresa ao perceber, por esse gesto tão automático, que aquele ali é um rio. Um rio na cidade que eu moro. Um rio que morreu há muitos anos.

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Esse texto faz parte da coleção Expedição Rio Doce, reportagem especial produzida para o Papo de Homem pela repórter Nina Neves e pelo repórter e fotógrafo Ismael dos Anjos – iniciada com um chamado à nossa comunidade para recebermos sugestões de perguntas a serem investigadas.

Nosso enviados percorreram 2.500 km da Barragem de Fundão à foz do Rio Doce para investigar a maior tragédia ambiental da história do Brasil. Tem alguma pergunta? Nosso time vai tentar responder a vocês com reportagens que serão publicadas ao longo da semana.

No futuro pretendemos realizar mais reportagens especiais sobre temas de grande interesse das pessoas, e essa ida a Mariana é uma semente dos  nossos sonhos para o futuro.

Puxe uma cadeira e construa esse especial conosco.

Nina Neves

É jornalista freelancer, fotógrafa amadora por hereditariedade, baiana em SP porque assim é a vida, interessada na cultura em todas as suas formas. E cuida de vinte plantas na varanda.