“Qual a salvação para esses incorrigíveis? Não ter medo de almejar longe, não ter medo ao sentir o manto de todos os poetas e profetas que já viveram descendo sobre seus ombros. Pois deles depende o futuro de nossa raça.”
Colin Wilson, The Outsiders

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Por favor, não espalhe. Em tempos de ação policial impiedosa, nunca se sabe quem está ouvindo, então é bom cochicharmos. Sexta-feira vi uma coisa. Foi no Jornal Nacional. Acho que quase ninguém percebeu, passaram bem rápido, mas consegui ver os dois. Na Avenida Paulista, entre os manifestantes, estavam o Cisne Negro e o Centésimo Macaco, e de mãos dadas.

Vou explicar melhor. Comecemos com o cisne.

A Teoria do Cisne Negro

Teoria do Cisne Negro não tem nada a ver com dança ou com aquele filme americano que todos conhecemos. Ela foi criada em 2001 por um bilionário e investidor americano de origem libanesa que, entre a contagem de um milhão de dólar e outro, leciona atualmente em Oxford. Especulador sacana ou não, uma coisa é certa: um sujeito desse tipo não pode ter sua inteligência subestimada.

Segundo a Teoria do Cisne Negro, há certos eventos imprevisíveis e capazes de mudar o destino de um ser humano, de uma sociedade ou de uma geração inteira. O que caracteriza esses eventos, explica Nassim Nicholas Taleb, é que ficamos desnorteados e tentamos compreendê-los com racionalizações apressadas, que ignoram informações relevantes. Em outras palavras, arranjamos uma explicação que conforta nossa mente confusa ante o inesperado, mas essa explicação é falsa. Somos, em seguida, atropelados pelas consequências do evento, sem sabermos de onde veio o maldito trem que passou por cima de nós.

Um evento Cisne Negro pode ser bom ou mal. No primeiro caso, nossa incompreensão impede que aproveitemos as oportunidades que oferece. No segundo, a mesma incompreensão pode trazer a tragédia. Podemos evitar o erro, se resistirmos a tentação de explicar o evento com as primeiras obviedades que aparecem em nossa cabeça.

Ocorreu um Cisne Negro na Revolução Francesa, quando os nobres acreditaram que a revolta do povo era passageira e seria resolvida com a usual repressão de seus líderes. Ocorreu um Cisne Negro no fim da União Soviética, assim como na derrubada do muro de Berlim.

A lição da história é sempre clara: nunca subestime um Cisne Negro. Jamais tente explicar por meio de lugares-comuns algo que começa a assumir proporções inesperadas.

Jamais diga, sem uma maior reflexão, “os protestos são apenas contra o aumento da passagem”, “os protestos são apenas manobras de partidos da oposição”, “os protestos são realizados por jovens baderneiros”, “os protestos vão acabar quando a Copa das Confederações começar; aliás, viu a goleada sábado?”.

A Teoria do Cisne Negro (clique na imagem para ver maior)
A Teoria do Cisne Negro (clique na imagem para ver maior)

Este artigo, portanto, não pretende explicar as manifestações contra o reajuste da passagem de ônibus. Este artigo tenta usar palavras como quem usa uma marreta: para tentar rachar a parede em que penduramos nossas explicações mais fajutas.

Vejam bem, falei em marreta, e não em martelo e foice. Uma marreta é um grande martelo de dois lados, que pode bater tanto na direita como na esquerda.

A Marreta

Participei das primeiras manifestações contra o aumento da passagem que aconteceram em Porto Alegre, mais exatamente nos dias 01 e 11 de abril. Porém (e espero não ser enforcado por isso), participei mais como observador do que como manifestante.

Na primeira manifestação, fui acompanhado por um amigo formado em direito e graduando em economia, declaradamente liberal no sentido político e econômico. Na segunda manifestação, por mero acaso, fiz amizade e conversei com uma participante de esquerda, ativista ambiental e membro de um projeto educacional para populações carentes. Embora de esquerda, ela abominava as intromissões de partidos e de “coletivos” que tentam colher dividendos eleitorais com os protestos, e nisso sua posição era idêntica à de meu amigo liberal.

Esses partidos que buscam controlar as manifestações não possuem, em geral, grande relevância eleitoral (são os chamados “nanicos”) mas têm forte influência em diretórios acadêmicos. Já os “coletivos” são organizações que estão, na verdade, a serviço daqueles partidos, e seu objetivo é tentar controlar as manifestações iludindo os participantes com seu alegado “apartidarismo”.

No fundo, trata-se de uma manipulação tão sinistra quanto aquela que, do outro lado do front, os “inimigos” dos protestos praticam em relação aos leitores de jornais e espectadores de noticiários televisivos, quando retratam os participantes como “depredadores e baderneiros”.

Mas o que importa é que, apesar dessas tentativas de manipulação políticas de terceiros, as observações ideológicas de meus dois amigos a respeito das manifestações, um de direita e outra de esquerda, me pareceram mais a cara e a coroa de uma mesma moeda do que versões supostamente discordantes sobre o mesmo fato. Isso porque o que os motivou a participarem de um mesmo protesto, apesar de suas visões de mundo divergentes, não era exatamente uma ideia, mas algo bem mais parecido com uma emoção, com um sentimento, uma empolgação em participar de um evento em que se tentava mudar as coisas sem a necessidade de líderes, de partidos, de intermediários.

A Marreta
A Marreta

Nas manifestações, ao invés de “mandar” e “obedecer”, há apenas o “compartilhar”: compartilhar passos, palavras de ordens e a mesma vontade de mudar coisas que, consensualmente, parecem estar muito erradas.

E há poucas dúvidas de que em São Paulo está acontecendo, com maiores proporções, o mesmo fenômeno que em Porto Alegre. A causa aparente é a mesma: aumento de centavos no preço da passagem. Há alguma participação de partidos de esquerda, mas a maioria das pessoas que sai às ruas é apartidária, não defende qualquer ideologia, e alguns são de direita. Tanto em Porto Alegre como em São Paulo, casos isolados de depredação, não apoiados pela maioria dos participantes, são supervalorizados por parte de alguns veículos da mídia e utilizados como desculpa para a repressão policial.

As explicações dadas ao fenômeno tanto em Porto Alegre como em São Paulo também foram semelhantes. Para opositores ao protesto, é coisa de jovens baderneiros, manipulados pela oposição.

Já quanto aos participantes, as motivações são várias. Para alguns, se trata de economizar uma grana no fim do mês; para outros, o objetivo é opor-se aos desmandos de uma classe política que capturou o Poder Público; para os mais ousados, o que desejam mesmo é mudar o mundo, ou, pelo menos, o Brasil.

A verdade é que, independente dos motivos de cada um, há uma crença por trás de todas as muitas razões para se colocar o pé fora de casa e participar de manifestações como as que estão ocorrendo em diversas capitais brasileiras. Trata-se da crença de que todos os cidadãos, unidos apesar de suas diferenças e sem obedecer a líderes, são capazes de transformar a sociedade, ainda que um pouco, quando perdem o medo de ocupar espaços públicos.

É como se essas motivações pessoais dos participantes fossem peixes em um cardume: cada uma aponta para uma direção ligeiramente diferente das outras; nenhuma é, isoladamente, determinante para o movimento de todo o conjunto, mas o cardume segue um rumo bem definido e é inabalável em sua trajetória. Inabalável não como uma pedra que rola morro abaixo derrubando tudo pela frente, mas como uma corrente de água descendo uma montanha, adaptando-se aos acidentes do relevo, contornando os obstáculos com fluidez, sem agressão, pacificamente.

Na verdade, a metáfora da água — ou melhor, da corrente de água — parece muito mais adequada a essas manifestações. Uma corrente não é uma substância, mas um tipo de energia que move as águas, algo capaz de mover um barco, agitar oceanos e, até mesmo,destruir cidades inteiras.

A correnteza das esperanças múltiplas

O mar de gente
O mar de gente

Um protesto pode ser uma grande corrente ou apenas algumas ondas de um movimento maior. A corrente pode ser pequena como um rio ou vasta como um oceano, causar pequenas ondulações ou estar presente em um maremoto. O importante é percebermos o movimento das ondas e anteciparmos seus efeitos, é estarmos preparados quando o Cisne Negro for trazido pelas águas.

O que está acontecendo em São PauloPorto AlegreGoiâniaRio de Janeito e outras tantas cidades é, de certa forma, o que vem acontecendo no mundo inteiro em ondas. É um movimento espontâneo e pouco organizado que, aparentemente, começou no Occupy Wall Street e passou pela chamada “Primavera Árabe“, inundando com manifestações também IstambulTeerãLondres e Madrid.

Em todos esses movimentos, tudo começou sem organização central, sem um líder específico, como um impulso de parte da sociedade coordenando-se através de redes sociais na internet, movimentando uma multidão às ruas em uma manifestação contra algum problema concreto: aumento na passagem de ônibus (Brasil), alterações urbanísticas (Turquia), crimes financeiros (EUA) ou décadas de autoritarismo (Egito).

É como se o motivo do protesto fosse uma gota d’água na paciência da população. Mas o curioso é que tantas gotas d’água caiam ao mesmo tempo em lugares tão distantes ao redor do mundo, causando transbordamentos simultâneos de indignação.

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E essas manifestações tem outra coisa em comum. Todas são inspiradas na crença de que todos nós, unidos sem lideranças oportunistas e sem qualquer uniformização de nossos sonhos pessoais, podemos fazer transformações importantes ao sairmos de nossas casas para protestarmos em lugares públicos, a fim de mostrarmos aos governantes quem é que está no comando.

O que não é muito diferente do que ocorreu, guardadas todas as devidas proporções, com a Revolução Francesa, a Revolução dos Cravos, a Primavera de Praga, os protestos contra a Guerra do Vietnã, o parisiense maio de 1968 e a ocupação da Praça da Paz Celestial.

A diferença, agora, é que o fenômeno não estaria ocorrendo em um local isolado, mas no mundo inteiro. A diferença, agora, é que não são anos que separam tais manifestações umas das outras, mas meses — às vezes, semanas.

É como se um movimento subterrâneo houvesse surgido lá atrás no tempo e começado, neste momento, a reverberar nas ondas do mar com força e ritmo crescentes.

O Centésimo Macaco

O símio que faltava
O símio que faltava

Essa força que reverbera em manifestações sociais por todo o mundo, atravessando o tempo como um cisne negro que segue uma correnteza, levando multidões a ocuparem espaços públicos até o atendimento de suas reivindicações, lembra as teorias não comprovadas de um biólogo inglês chamado Rupert Sheldrake.

Em um resumo bem simples, para Rupert Sheldrake haveria, na natureza, determinadas forças ainda não identificadas pela Física e pela Biologia. Ele decidiu batizá-las de “campos mórficos“, adaptando um conceito da biologia chamado de “campos morfogenéticos“.

Esses campos seriam padrões de organização que, ressonando através do espaço e do tempo, moldariam eventos aparentemente isolados e desconexos. Tais padrões influenciariam, até mesmo, a mente e o comportamento de animais e seres humanos.

Foi essa proposta que tornou bem popular a Teoria do Centésimo Macaco, segundo a qual uma transformação decisiva na consciência ou no comportamento dos membros de um grupo pode ocorrer automaticamente, em vários lugares e ao mesmo tempo, sem uma relação de causa e efeito. Bastaria, para isso, que um determinado número de membros, não necessariamente a maioria (no caso da metáfora, 100 macacos), adotasse a nova postura em sua vida: o “efeito de campo” resultante dessa alteração do comportamento de alguns membros ressoaria automaticamente no comportamento e na forma de pensar de todos os demais que ainda estariam presos à velha forma de viver.

Tais “campos” seriam capazes de induzir saltos evolucionários que obedeceriam a certos padrões. E esses padrões nem sempre seriam percebidos ao olharmos cada um dos evento isoladamente: muitas vezes, apenas olhando de longe os eventos, como observadores, é que poderíamos reconhecer o padrão subjacente.

Mas não precisamos acreditar e comprar todo o combo de especulações de Rupert Sheldrake. Já é suficiente aceitar como metáfora essa sua concepção de que há forças que ressoam por grandes distâncias, influenciando comportamentos, e de que a mudança de atitude de um número de pessoas basta para alterar a atitude de todas as demais, ainda que seja por inspiração ou pressão social.

E as manifestações ao redor do mundo são um terreno promissor para supormos a existência de um padrão, para cogitarmos se essas agitações na superfície da terra, aflorando pontualmente em diversas cidades ao redor do mundo, não são, na verdade, os efeitos de um movimento único, que ocorre nas placas tectônicas da consciência coletiva de toda a humanidade. Como se algo maior, como se o inconformismo com os desmandos das autoridades, com as especulações de agentes financeiros, com a degradação do meio ambiente e com outras tantas crises sistêmicas, irrompesse em fúria e levasse cidadãos comuns às ruas.

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Se for esse o caso, temos diante de nós um espaço exploratório excepcional para a participação de desviantes, de outsiders. Uma oportunidade para todos os indivíduos que sempre tiveram a coragem de resistir ostensivamente às imposições sociais, às avenidas pavimentadas do conformismo, por desconfiarem que essas avenidas são, muitas vezes, caminhos que levam a algum tipo de prisão.

Os outsiders, mais do que qualquer outro indivíduo, movimentam-se facilmente nos espaços livres e caóticos onde a norma tradicional de conduta está sendo confrontada.

A última marretada

Muitos dos que vão aos protestos usam a máscara de Guy Fawkes, tal como criada pelo artista David Lloyd para ilustra uma sensacional história escrita por Alan Moore. Acho que li essa história mais de uma dúzia de vezes desde a adolescência, e ainda pretendo escrever a seu respeito.

Coincidência ou não, o fato é que o escritor, músico, poeta, mago, dublê de Gandalf e sósia de Rasputim chamado Alan Moore certa vez apresentou, em um documentário sobre suas ideias, a noção histórica de que o total de conhecimento acumulado pela humanidade está dobrando, ao longo da história, cada vez com maior velocidade. Entre o primeiro ano da Era Cristã até a Renascença, o total de informações acumulado pela humanidade dobrou. Depois esse intervalo diminuiu, e a quantidade de conhecimento voltou a dobrar mais rápido, no intervalo entre a Renascença e a Revolução Francesa. É uma teoria endossada pelo autor Robert Wilson, por especialistas da IBM e por economistas de Berkley.

O curioso é que, a partir do século vinte, o conhecimento total da humanidade está dobrando uma vez a cada década, e esse ritmo está se acelerando. Com a internet, essa velocidade aumentou ainda mais. A estimativa feita por Alan Moore é que em algum ponto próximo a 2015, o conhecimento total da humanidade dobrará a cada hora. Logo a seguir, talvez, a cada minuto.

Qual o reflexo disso em nossas consciências? Qual o reflexo disso na estrutura de nossa sociedade? Alan Morre, que também gosta de dar suas marretadas, especula:

Todos nós estamos em grupo tateando rumo a percepção de algo que parece ser uma espécie de consciência coletiva – estamos, no momento, tentando sentir qual sua forma. Ela ainda não está aqui, e um bocado de gente, provavelmente, anda falando um bocado de coisas tolas a seu respeito. Isso é compreensível, pois há algo estranho despontando no horizonte humano. Se você desenha um gráfico de nossa consciência, parece haver um ponto para o qual parece que estamos nos dirigindo”
Alan Moore, Interview por Matthew De Abaitua – extraído de  Alan Moore: Conversations – 2011

Antigamente, apenas um pequeno grupo de pessoas detinha conhecimento suficiente para influenciar grandes eventos políticos, em parte manipulando as necessidades da população como massa de manobra. Hoje, qualquer adolescente medianamente bem educado tem acesso, na internet, às principais obras sobre história, política, economia e estratégia militar.

Alan Morre
Alan Morre

Mais ainda: esse adolescente pode trocar ideias com outros iguais a ele, a respeito desses assuntos e também a respeito da situação de nosso mundo. Embora a maioria dos adolescentes prefira atividades mais inofensivas na internet, não podemos subestimar o número, a esperteza e os recursos daqueles que não seguem os caminhos da maioria, mas tomam seus próprios desvios. Os Anonymous estão aí para provar essa verdade.

Filhos da era em que o conhecimento humano dobra de tamanho a cada instante, todos aqueles que participaram dessas manifestações em São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Istambul, Madrid, Nova Iorque e em outras tantas cidades possuem mais acesso a educação e a informações do que qualquer sujeito medianamente educado possuía na época da Revolução Francesa. Logo, não são idiotas facilmente manipulados por partidos ou organizações de oposição, não são pessoas mal informadas que ocupam as ruas sem consciência da exata natureza de seus atos.

Além disso, esses manifestantes compartilham informações rapidamente através da internet e de suas redes sociais, registram tudo o que ocorre nos protestos com o uso de câmeras e smartphones (o que não deixa de ser irônico: utilizar bens e serviços estimuladores do consumo humano para questionar o próprio sistema que se beneficia desse consumo). Logo, o controle das imagens e das informações não pode mais ser monopolizado pela mídia, não pode ser mais manipulado pela grande imprensa, pois qualquer um de nós pode registrar o que realmente ocorreu durante os protestos.

Se observarmos atentamente as manifestações que estão ocorrendo no Brasil e no resto do mundo, conseguimos enxergar algum padrão? Estamos diante de um Cisne Negro, estamos insistindo em enxergar um evento inesperado e sem precedentes sob a ótica de explicações e racionalizações furadas? Esse Cisne Negro, se existir, é uma oportunidade que devemos aproveitar ou uma tragédia que precisamos evitar? Há, em todas essas manifestações ao redor do mundo, um sinal de que a consciência coletiva está pressionando multidões ao redor do planeta a implementar transformações importantes, concretas e efetivas para aprimorarmos o mundo? O centésimo macaco está em algum lugar? Quantos de nós bastam para, mudando de atitude e consciência, transformar a atitude e a consciência de toda a humanidade?

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Ao invés de respostas, perguntas. Ao invés de explicações, marretadas.

Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."