O cara cresceu em Ramos (RJ), perto do Complexo do Alemão, imerso na cultura marginal do tráfico de drogas, da prostituição, do jogo do bicho. Fazia festas de funk, criou um jornal para a comunidade e depois começou a oferecer aulas de percussão e dança, mas sem saber tocar ou dançar – aprendeu ensinando.
Esse é José Junior (@JJAfroReggae no Twitter), fundador da ONG Afroreggae, atualmente com 74 projetos, 10 bandas de música, 2 trupes de circo, grupo de teatro, centro multimídia… Trabalha com policiais, presidiários e jovens empresários, fisgando as pessoas pela mesma lógica que as leva ao tráfico, tratando-os como seres inteligentes, não alienados. Desde 1993, o grupo se ampliou e hoje atua também na Índia, EUA, Colômbia, China, Inglaterra e França.
Mas chega de introdução. Batemos um papo com José Junior e agora a conversa se abre pra vocês.
1. Qual sua história? Quais suas origens? O que fazia antes de ser do AfroReggae?
Minha infância foi em Ramos, subúrbio do Rio, mas na adolescência fui morar no Centro. Cresci numa área degradada, cercado de violência, prostituição por todos os lados. Não tive muito estudo e fiz de tudo um pouco nesta vida. Fui o Batman em animação de festas infantis, entreguei jornais, quentinhas…
Minha vida começou a mudar quando comecei a produzir festas. Primeiro eram de funk, mas com a proibição dos bailes, mudamos para o reggae. Criamos a “Rasta Reggae Dancing”, que virou um sucesso na cidade e, na mesma época, há 17 anos, começamos a produzir o AfroReggae Notícias, um jornal que veiculava notícias sobre a cultura afro. Ou seja, o AfroReggae começou como um jornal de notícias. Só nos instalamos em Vigário Geral, naquele mesmo ano de 93, após aquela tragédia, que foi a chacina, na qual 21 inocentes foram mortos.
2. Como descobriu que era isso que queria fazer e como chegou onde está?
Eu não descobri. As coisas foram acontecendo. No AfroReggae, acreditamos muito no efeito Shiva: Deus que destrói para poder construir.
O AfroReggae é fruto da violência e também da inexperiência. Começamos a dar as oficinas culturais quase que intuitivamente. Fomos ensinando e aprendendo ao mesmo tempo. Não havia um planejamento, uma estratégia. Somos frutos do caos. Mas, por desespero, corremos atrás e buscamos soluções que até então eram inéditas e que deram certo.
3. O que você faz atualmente?
Sou coordenador-executivo do Grupo Cultural AfroReggae. Hoje o AfroReggae tem muitos coordenadores e cada um cuida de uma parte, mas eu sou o gestor. Acho que meu grande talento é o empreendedorismo social. Esse diálogo com a elite, com a favela, políticos, bandidos, polícia.
E é para isso que trabalho, para acabar com o apartheid social. Queremos construir um ponte, com uma via de mão dupla para integrar classes sociais diferentes, raças diferentes, ou seja, eliminar barreiras invisíveis que a sociedade construiu.
4. E seu programa no Multishow?
O “Conexões Urbanas”, do Multishow, é fruto de outras conexões. Em 2001 começamos a produzir grandes shows em favelas. A ideia do projeto era levar grandes nomes da MPB para tocar nas favelas mais temidas da cidade. Se havia um mega show na praia de Copacabana ou na casa de shows mais sofisticada da cidade, levávamos exatamente o mesmo evento para favela, incluindo o palco, o cenário. O projeto deu super certo, já passamos das 50 edições. Só neste ano já tivemos duas edições e vamos fechar o semestre com mais umas três, ultrapassando um milhão de pessoas só em 2010.
A principal questão do show é conectar mundos e realidades diferentes. Essa concepção cresceu dentro do AfroReggae e “Conexões Urbanas” acabou virando uma grande marca para a gente, uma verdadeira plataforma de negócios que hoje inclui 6 programas de rádio, inclusive em rede nacional através da Oi FM, uma revista, o show em si e o programa de TV.
Queremos construir uma espécie de “Google for good”. Virar uma referência para quem quer mudar o mundo.
Na TV, o programa se desdobra em outras ações, deixa um legado. Acho que a principal questão é que não estamos fazendo imagens para um programa de TV, estamos conectando iniciativas que já estavam ocorrendo. Conectamos e, a partir deste link, ajudamos a gerar novos negócios sustentáveis.
5. Conte um pouco do seu cotidiano.
Não tenho uma rotina, mas posso lhe dizer que trabalho muito. Mesmo o meu lazer é no meu trabalho. Uma das principais atuações do AfroReggae é a mediação de conflitos. Mediamos verdadeiras guerras. Podem ser entre facções diferentes ou entre polícia e bandido, mas quando estoura um problema, o AfroReggae sempre está lá.
Então, pela manhã posso estar numa favela mediando uma guerra do narcotráfico e à tarde posso estar na Fiesp ou numa reunião com o governador Sergio Cabral.
6. O que vocês tem feito ultimamente no projeto e onde pretendem chegar?
Hoje o AfroReggae tem 74 projetos no Brasil e no mundo. Estamos abertos a parcerias diversas. Queremos conectar. Enquanto houver diálogo, sempre haverá novas perspectivas.
7. Você citou no Twitter que considera o Luciano Huck uma “pessoa iluminada e generosa” e ele te considera um “guerrilheiro social”. O que falta para termos mais gente como vocês dois no Brasil?
Existem muitas pessoas assim, bem mais do que se imagina.
É isso que tento mostrar no meu programa de TV: pessoas que se conectam para fazer o bem, e há muita gente fazendo isso, podes crer.
8. Uma história ou uma cena que fez todo o esforço valer a pena.
Há uma coleção. A mais recente e mais forte foi no caso do Evandro. Com a ajuda da imprensa, da polícia e do governo, conseguimos o que queríamos, num curto espaço de tempo. Não houve impunidade. A justiça foi feita.
9. Quais os erros de outros agentes sociais que deixam você com vergonha alheia?
Nada me envergonha. Pelo contrário, me orgulho constantemente. Tirar gente do tráfico, ver que as pessoas podem ter uma segunda chance. Existe uma questão de índole, mas pouquíssimas pessoas são 100% ruins. No último ano tiramos quase 300 pessoas da criminalidade. Dá quase um por dia.
Isso mostra que, com oportunidade, muitos optam por traçar uma nova trajetória. É o que mais me deixa feliz porque meu maior sonho é não ver mais gente no tráfico.
10. Quais são os passos específicos que um leitor que queira se tornar um agente social pode tomar agora?
Minha faculdade foi na rua e minha pós graduação foi baseada na minha intuição. Muitas vezes ouvimos “não vai por esse caminho, não faça isso”. Fizemos. E deu certo.
O AfroReggae só deu certo porque apostamos em pessoas e projetos que eram dados como perdidos, sem solução. A gente tinha até um slogan que dizia “Onde os outros não vêem saída, a gente vê arte”. Fora isso tivemos grandes parceiros e gurus, como nosso querido Waly Salomão, o padre Lorenzo Zanetti, além do Caetano, da Regina Casé, entre muitos outros.
11. O que você demorou muito tempo pra aprender e agora pode resumir em poucas palavras?
Eu era uma pessoa muito preconceituosa. Por exemplo, eu detestava a polícia. Hoje, quebrei essas barreiras e desenvolvo dois importantes projetos com a polícia: o Juventude e Polícia (em parceria com o governo de Minas) e o Papo de Responsa, com a Polícia Civil do Rio de Janeiro.
12. Quais são os benefícios que seu trabalho gera para as pessoas próximas e para a sociedade em geral?
Não necessariamente o meu, mas o do AfroReggae como um todo. São desde as oficinas culturais que oferecemos nas favelas até o resgate dos jovens do crime. Isso impacta diretamente na violência. Essa questão de promover a integração social gera vantagens para todos, para a elite e para o favelado, para o preto e para o branco.
13. Quais seus outros interesses, práticas e habilidades? Filosofias, esportes, artes, espiritualidade…
Eu sou muito ligado à espiritualidade. Não tenho religião, mas tenho muita fé. Sempre busco aprimorar este lado.
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