Sabrina era uma prostituta.

Quando a conheci, ela havia acabado de sair de uma fase ruim. Embora frequentasse ambientes de luxo, seu cotidiano era miserável. Sabrina pegava no pesado dez horas por dia em meio a clientes que a tratavam como um objeto para seu uso particular.

Era um trabalho sujo e desgastante. Ao final do expediente, ela se sentia esgotada, sem disposição para nada além de dormir. Já nem tinha vontade de transar com o namorado. O tempo de vida útil na profissão era curto: colegas de Sabrina com dez anos de carreira queixavam-se de todo tipo de problemas emocionais e dores agudas bem distribuídas pelo corpo. E não havia ninguém para resgatá-las dos abusos: estavam léguas distantes de sindicatos, justiça trabalhista ou qualquer coisa que lembrasse humanidade e direitos.

Tudo isso durou pouco mais de um mês: o tempo que Sabrina aguentou trabalhar como camareira de um hotel na zona sul de São Paulo.

Assim que pediu demissão do hotel, Sabrina voltou para a vida nas boates: ali, mesmo que às vezes enfrentasse humilhações e violência, era um ambiente onde se sentia mais gente.

“No hotel,o trabalho era um massacre e as pessoas me tratavam como se eu fosse um móvel do prédio. Aqui na boate pelo menos eu me arrumo, fico bonita, chamo atenção, conheço gente interessante, dou risada e tem um monte de homem querendo pagar para me comer. Isso faz bem para a autoestima”, ela contava.

Mas ela não se sentia mal por vender o próprio corpo?

“Eu não vendo, eu alugo. E alugo o que é meu. Ninguém tem nada a ver com isso”, ela dizia.

Todas as ilustrações do post são de Amanda Conner para a revista “A Pro”, de Garth Ennis, primeira (e única) revista em quadrinhos a trazer uma prostituta no papel de super-heroína.

Penso em Sabrina sempre que ouço alguém falar contra a regulamentação da prostituição, alegando que é uma “atividade degradante”, como se fosse pior do que o trabalho de tantas empregadas domésticas ou atendentes de telemarketing.

Houve uma gritaria dessas no começo do ano, quando a turma da moral impoluta e dos bons costumes se revoltou contra a terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos (vejam essa pérola de um membro da Opus Dei articulista do Estadão). Ah, o PNDH! Aquela empulhação comunista que, além de ameaçar arrancar os crucifixos das nossas paredes e punir os heróis da pátria que nos saudosos tempos da ditadura cumpriram seu dever de torturar futuros petralhas, ainda falava, vejam só, em garantir direitos trabalhistas e previdenciários para as profissionais do sexo, que abominação!

Deu no que deu: o governo voltou atrás em vários pontos do Plano, a punição aos torturadores da ditadura acabou derrubada pelas togas empoeiradas do Supremo e a regulamentação da prostituição é hoje um tema que não parece ter a menor chance de entrar para a agenda política do Congresso num futuro próximo. Uma pena. Sim. Porque reconhecer a atividade das garotas de programa como profissão faria muito bem para elas. E para o país, que se tornaria menos hipócrita. Digo e explico.

1. Melhor puta que atendente de telemarketing

A prostituição pode ser degradante. Muito. Disso ninguém duvida: é só lembrar das virgindades adolescentes vendidas pelos próprios pais a troco de merreca nos rincões do Norte/Nordeste ou das vovozinhas que diariamente arrastam seus reumatismos para programas de cinco reais em meios às baratas dos hoteizinhos no bairro da Luz em São Paulo. Mas a degradação não é um artigo exclusivo da PROSTITUIÇÃO ®.

Ser operário nas confecções que abastecem Marisa e C&A ou trabalhador rural numa fazenda da família Senna pode ser tão degradante quanto trocar um boquete por uma pedra de crack, como mostram os inquéritos de trabalho escravo. O mesmo vale para empregadas domésticas, atendentes de telemarketing ou (como ilustra a história de Sabrina) camareiras de hotel.

Mesmo assim, não me lembro da última vez em que ouvi alguém defender a proibição das atividades de operários de confecção, trabalhadores rurais ou empregadas domésticas. O que se entende é que essas atividades não são necessariamente degradantes, mas que podem ser exercidas com dignidade desde que os empregadores sejam fiscalizados e forçados a respeitar direitos trabalhistas, o que inclui assinar carteiras de trabalho, respeitar valores mínimos de remuneração por trabalho, recusar menores de idade e por aí afora. Por que as mesmas regras não poderiam ser aplicadas à prostituição?


Um parêntesis. Cá entre nós, tenho para mim que nem toda a regulamentação do mundo poderia dar dignidade à função de atendente de telemarketing, um profissional criado unicamente para atuar como barreira entre as empresas e seu público, um boneco de Judas corporativo destinado a ser xingado por conta de problemas sobre os quais ele não tem a menor responsabilidade, já que na maioria das vezes nem ao menos trabalha na mesma empresa que representa.

E a prostituição? É uma atividade que:

a) pode ser exercida de maneira saudável

ou

b) é um caso perdido como os operadores de telemarketing?

Eu fico com a primeira opção. Muita gente discordaria, repetindo a noção daqueles que nos anos 70 atacavam Jorge Amado por mostrar prostitutas bonitas que riam e gozavam, quando as pesquisas sociológicas apontavam que as putas deviam ser seres tristonhos com ojeriza a sexo.

A realidade, como sempre, é mais complexa. É por isso que Bruna Surfistinha virou um fenômeno: ali estava uma prostituta que não só mostrava o rosto como falava de seu trabalho como uma experiência positiva. E há como negar que a prostituição foi boa para ela? Afinal, foi alugando o corpo que Raquel Pacheco reuniu material para um livro de sucesso que virou filme, aprendeu mais sobre sexo sem deixar de gostar da coisa, conquistou fama, dinheiro e, por fim, amor. Bruna foi puta com dignidade. E eu acredito que casos semelhantes são muito mais comuns do que se pensa.

2. Desamparadas pela lei

Antes que me acusem de ter uma visão cor-de-rosa sobre o mundo das prostitutas, esclareço: sei bem que a maioria das garotas de programa costuma ser tratada como a mais baixa escória da raça humana. A violência contra prostitutas é tolerada, vista como algo “do jogo”. Nos meus tempos de repórter policial, vi garotas de programa vítimas de estupro serem alvo de chacota nas delegacias, tanto por policiais como por coleguinhas de imprensa. E já ouvi inclusive mulheres defenderem que garotas de programa não podem se queixar de estupro; esta seria uma prerrogativa exclusiva das “mulheres normais”.

Para mim, a obscura situação legal que envolve a profissão tem a ver diretamente com os abusos que atingem as meninas. Como as putas não existem na lei, acabam por atuar numa zona cinzenta onde a lei não as alcança. A situação melhoraria muito se as prostitutas pudessem se afirmar como tal, a exemplo do que ocorre com qualquer outro trabalhador.

Você sabe o que acontece, hoje, quando uma prostituta é agredida por um cliente numa boate? Se o cliente tiver dinheiro para pagar pela “mercadoria avariada”, o mais provável é que não aconteça nada. O proprietário do puteiro se recusará a levar o caso para a polícia, já que o seu estabelecimento é ilegal e, como bom cidadão, ele paga rigorosamente todas as propinas devidas à polícia e aos fiscais da prefeitura justamente para se ver livre de situações como essa. E a própria polícia prefere ficar longe desse tipo de confusão. Arrumar encrenca por causa de putas, esses seres que nem são reconhecidos pela lei? Melhor receber o arrego santo de cada dia e continuar a fechar os olhos.

3. O Estadão, um cafetão?

Hipocrisia, teu nome é Código Penal. A lei que não criminaliza a prostituição, mas condena todos os que obtêm algum lucro com as putas além delas próprias, foi feita para não funcionar. Cara, não é preciso ser um Nouriel Roubini para saber que nenhuma atividade econômica pode pairar solta no ar, gerando dinheiro sozinha sem se comprometer com o resto do mundo. Se há mulheres vendendo o produto entre suas pernas, haverá outros lucrando com isso, direta ou indiretamente, nas mais diversas categorias econômicas.

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Como seria impossível condenar a todos que levam alguma grana com a prostituição, preferimos ser seletivos, perseguindo alguns e passando pano para outros, utilizando sempre o nosso talento nato para a hipocrisia. Pedimos cadeia para um Oscar Maroni, que ganha dinheiro com as prostitutas que frequentam suas boates. Mas e todos os jornais que publicam diariamente anúncios de acompanhantes?Estadão, Folha, Globo não deveriam também ser enquadrados por “favorecimento da prostituição”? E os provedores de internet que hospedam sites de garotas de programa? E os salões de beleza que preparam as guerreiras para a batalha? E os donos de motéis?

O lucro alheio com a prostituição devia ser liberado, sim, dentro de parâmetros a serem discutidos. Uma coisa é o empresário cafetão que pega parte do valor de um programa — isso eu acho mesmo “uma puta falta de sacanagem”. Outra coisa é o dono de boate que lucra com a venda de bebidas e o aluguel de quartos, um modelo de negócios cada vez mais comum e, na minha opinião, bastante razoável. Mesmo isso você considera uma exploração? Então pense no seu trabalho. Duvido que você, no trampo que paga suas contas, seja menos explorado do que uma prostituta.

4. Aceite ou seja hipócrita

Lembrando que há uma certa futilidade nessa discussão. A prostituição é uma prática pelo menos tão universal quanto o uso de drogas. Perseguido ou tolerado, o comércio do corpo existiu e continua a existir em todas as sociedades, da Holanda mais liberal ao Paquistão do Taleban.

Fazer leis que proíbem ou não reconhecem a prostituição significará, sempre, institucionalizar a hipocrisia e a indústria da propina a ser paga para todo tipo de servidor público encarregado de combatê-la.

5. Corpo da mulher: modo de usar

Já percebeu como toda discussão sobre a situação legal da prostituição vira um debate sobre a prostituição feminina? Nem eu fugi disso no meu texto. Por que será que isso acontece? Tudo bem que a prostituição masculina é menos comum, mas isso não me convence. Há cheiro de subtexto por aí. O fato é que a prostituição feminina é a que realmente nos perturba.

O homem que se prostitui não nos choca. Entendemos que os homens são donos do próprio nariz (e do resto) e, sendo maiores de idade, sabem o que estão fazendo quando se tornam michês. Afinal, homens gostam de sexo e transar para eles não deve ser um sacrifício.

As mulheres, não. Jamais escolhem se prostituir. Quando vendem seu corpo, é porque são mártires ou devassas. Pela direita: se a mulher se prostitui, é uma perdida sem Deus, ao mesmo tempo causa e consequência da corrupção dos costumes em nossa sociedade. Pela esquerda: a mulher que se prostitui é uma vítima do capitalismo que se viu forçada pelo sistema a transformar o corpo em mercadoria.

Mulheres não podem obter dinheiro com sexo porque não consideramos este um uso digno para o corpo delas. É sempre o Estado, a família ou outra instituição social dizendo o que a mulher pode ou não fazer com seu corpo. Na real, condenar a prostituição é uma das tantas formas usadas para controlar a sexualidade feminina, tanto quanto proibir o aborto ou obrigar mulheres a usar burca.

No ano passado, revelei no meu blog a história da aluna da Uniban agredida por usar minissaia. Lembra do que gritavam para ela? “Puuuuta, puuuuuuuuuta!”. Pois é.

6. Puta, eu?

O que me leva a perguntar: o que é uma prostituta? É alguém que “ganha dinheiro com a cobrança por atos sexuais”, explica-me o Houaiss. O que isso significa exatamente?

Para começar, a definição do pai dos burros obviamente inclui as mulheres que fazem programa nas ruas, flats e boates. Certo. E as atrizes pornôs? Alguém duvida de que elas “ganhem dinheiro com a cobrança por atos sexuais”? Então, atrizes pornô também são putas. Da mesma forma as strippers virtuais. Mesmo que se relacionem exclusivamente pela webcam, elas usam o corpo e a voz para excitar o punheteiro do outro lado do computador até levá-lo a encharcar o teclado. Alguém vai dizer que isso não é um ato sexual?

E chego por fim às modelos das revistas masculinas. Qualquer Flavia Alessandra sabe muito bem que suas fotos artísticas serão borrifadas por jatos de esperma em banheiros de república de estudantes. Será que isso não é um ato sexual (quem sabe até um ato de amor)?

Entre a prostitutas estrito senso e as capas da Playboy existem muitas diferenças, é claro. Mas acredito que é uma diferença de grau, e não de gênero. São todas prostitutas, sim — e não falo isso para ofender estas, mas para valorizar aquelas.

7. Só com amor, benzinho

Eis que chegamos ao ponto mais, digamos, filosófico da questão. Bem espremidos os argumentos, percebemos que todo repúdio à prostituição se baseia numa ideia central: a de que o sexo é algo sublime demais para ser misturado com dinheiro — muito embora o dinheiro ocupe áreas cada vez mais espaçosas na vida de todos nós.

Se é errado fazer sexo por grana, quais seriam as “motivações corretas” de uma foda? Amor, sem dúvida. Ou tesão. São motivações aceitáveis. Todo o resto seria uma distorção.

Bonito. Mas não é assim que o mundo real funciona. Sexo, grana e poder sempre estiveram relacionados. Durante boa parte da história ocidental e ainda hoje em muitos países, o casamento continua a ser tratado abertamente como um negócio. Mesmo nas baladinhas mais descoladas todo mundo sabe como um carro do ano pode fazer diferença para quem busca se dar bem — e há toneladas de páginas de Freud, Lacan e psicologia evolucionista que explicam este mistério.

Na boa: acreditar que apenas “motivações puras” levariam paus, bocas, cus e vaginas a se penetrarem revela uma compreensão rasa do ser humano. Podemos fazer sexo por amor e/ou tesão, mas há outras razões. As pessoas podem também trepar por ódio. Ou para relaxar. Trepam porque não tem nada de bom na TV. Para provar algo. Para se sentir vivo. Por nenhum motivo em especial. Para encerrar uma discussão. Para conseguir um emprego. Para faturar uma grana. Ou por várias destas motivações ao mesmo tempo. Não há porque achar que as putas façam algo especialmente diferente ou mais repugnante do que o resto da humanidade. Elas apenas jogam limpo.

E a Sabrina?

Soube que ela se casou com um antigo cliente, “largou a noite”, teve um monte de filhos e hoje vive feliz para sempre. Ou pelo menos segue tentando, como todos nós.


Todas as ilustrações acima são de Amanda Conner para a revista “A Pro”, de Garth Ennis, primeira (e única) revista em quadrinhos a trazer uma prostituta no papel de super-heroína.

Debate PdH sobre a regulamentação da prostituição

Nota do editor: depois desse texto espetacular do Fausto, vamos continuar nos comentários (ou no Twitter com a tag #debatepdh) o papo que iniciamos nos posts do Victor Lee e do Atila Iamarino. Você também pode votar na enquete abaixo.

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Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.