Eu não sei você, mas eu cultivo uma admiração e uma curiosidade constante por aquele cantinho do mundo que chamamos de Escandinávia.

Seja pela minha visão preconceituosa de lugar de pessoas bonitas e boa qualidade de vida, seja pelas minhas tentativas miseravelmente falhas de tentar invadir a Europa no War ou simplesmente por eles apresentarem um contexto tão diferente do que estamos acostumados a ver no Brasil, esses países me encantam.

Não satisfeito, vira e mexe aparece um Bruno Passos da vida contando como foi feliz na Noruega para reforçar meus estereótipos. Nessa hora não resta outra coisa a fazer que não seja repetir como um mantra: “Nem tudo é tão engraçado quanto o Bruno Passos fala. Nem tudo é tão bonito quanto o Jader Pires narra. Nem tudo é tão prático quanto o Alberto Brandão explica.” Vamos lá, repita comigo.

É brincadeira, pessoal. 

Europa, Europa! Um dia eu te conquisto, sua linda.

Mas a moral da história é que tanta admiração não veio assim do nada. Os países nórdicos são realmente fodas. Não vamos ficar fazendo comparações. Os caras são do tamanho do Espírito Santos. Mas isso não muda o fato de que eles são bons de serviço.

Quando menos esperamos saem rankings novos e a gente se lambuza de saliva (baba!) pelos índices que eles nos apresentam. A começar pelo IDH: Finlândia (24º), Islândia (16º), Suécia (14º), Dinamarca (4º) e, the fucking líder da porra toda: Noruega (a diferentona). Todos classificados com um Índice de Desenvolvimento Humano muito alto.

Se você topar esquecer comigo a quantidade de suicídios e uns outros probleminhas que os caras enfrentam, é normal imaginar que lá deve ser um belo lugar pra se viver. (Se você não gostar de Carnaval e calor, talvez isso ajude).

Você coloca Escandinávia no Google e é isso que aparece. Ninguém pode me culpar pela minha imaginação.

Mas o que queremos discutir aqui hoje é um outro índice e um certo país em específico.

A cada três anos, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) realiza um teste chamado PISA (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Alunos) dividido em três partes: matemática, leitura e ciência.

Em todos esses testes, obviamente ocorrem variações, mas é possível notar uma constante e até afirmar: a Finlândia certamente é um dos países com a melhor educação do mundo. Os últimos resultados divulgados em dezembro de 2013 indicam o país como o 12º melhor em matemática, o 6º melhor em leitura e o 5º melhor em ciência. A título de contextualização, o Brasil ficou em 58º, 55º e 59º, respectivamente (mas apresentou melhoras).

Acontece que, agora, um sistema de educação tão premiado e reconhecido internacionalmente divulgou uma tremenda mudança na sua estrutura curricular: o ensino da escrita cursiva será optativo no país inteiro a partir do segundo semestre de 2016.

Crianças finlandesas, destras e canhotas, comemoram pelo país afora: é o fim dos cadernos de caligrafia.

É isso mesmo. A partir do ano letivo de 2017 – que na Finlândia começa em setembro de 2016 – os alunos iniciantes do curso primário não serão mais obrigados a aprender caligrafia. Ao invés disso, aprenderão digitação em computadores e tablets, além da – ainda obrigatória – letra de forma.

 

Vale ressaltar que lá os professores tem muita liberdade em relação as técnicas de ensino e aprendizagem. Isso é inclusive um dos maiores méritos do sistema de ensino finlandês. Por isso mesmo, apesar da obrigatoriedade do ensino da digitação, os professores que quiserem continuar ensinando aos seus alunos a letra cursiva e tiverem tempo poderão, já que a disciplina passará a ser optativa.

Mas a mudança foi suficiente para estimular debates no mundo inteiro. E mesmo que diversos especialistas tenham pitacado sobre o assunto, ninguém parece ter dado um argumento definitivo. Ainda assim, a Finlândia, que já se provou eficiente antes, se mantém firme.

A presidente do Conselho Nacional de Educação da Finlândia, Minna Harmanen afirmou que tem consciência de que a medida representa uma enorme mudança cultural no país, mas que hoje em dia a digitação está muito mais presente na vida das pessoas do que a letra cursiva e a tendência é que a geração que está sendo formada tenha ainda menos contato com a ‘letra de mão’. Ela disse ainda em oportunidades diversas que a escrita à mão está ligada ao desenvolvimento da coordenação motora e da memória, mas que a letra cursiva, por ser muito pessoal, até dificulta o processo de alfabetização.

Outra educadora finlandesa, a chefe de desenvolvimento curricular do Ministério da Educação da Finlândia, Irmeli Halinen, afirma que foram realizados muitos estudos de impacto sobre a relação entre escrita e desenvolvimento da criança e a conclusão que chegaram foi de que é importante escrever a mão, mas não necessariamente com letra cursiva.

E tem quem concorde com elas.

Vai dar certo

Essa criança foi alfabetizada com sucesso.

A neurobióloga Marta Relvas, professora da Universidade Estácio de Sá e membro da Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento, em entrevista ao site da Veja, afirmou que abolir o ensino de letra cursiva na escola não impacta o desenvolvimento cerebral das crianças. Segundo ela, a letra cursiva é uma representação cultural, nada mais do que símbolos que aprendemos a identificar como letras para formar palavras. De maneira mais técnica, o sistema cognitivo localizado no lado esquerdo do cérebro, onde se concentra a fala, a escrita e a coordenação motora fina não tem relação direta com o tipi de letra usada na escrita. Essa área do cérebro se desenvolve com a escrita à mão, mas não porque se trata de letra cursiva, mas pela atividade mental exercida na função. O importante, portanto, é aprender a se comunicar e usar o idioma com clareza. O tipo de letra que cada um utilizará depende apenas da cultura que está inserido.

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Por outro ângulo, mas com a mesma conclusão, a professora Francisca Paulo Toledo Monteiro, que trabalha com alfabetização e letramento na Divisão de Educação Infantil e Complementar da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), afirmou em entrevista ao portal UOL que o ensino da letra cursiva no país teve, por muito tempo, papel de segregação. Segundo ela, escrever com letra cursiva exclui milhões de pessoas do processo de aprendizado. Ela relata conhecer cenários em que crianças inteligentes precisavam se esforçar para aprender caligrafia e acabavam ficando a margem do processo, enquanto outras crianças tinham excelente habilidade de copiar textos com letras maravilhosas, mas eram incapazes de ler e compreender os enunciados.

Em ambos os casos, as educadores citaram os japoneses: “eles não escrevem com letra cursiva e nem por isso deixaram de desenvolver cognição”.

Vai dar errado

Essa criação não foi alfabetizada com sucesso.

Por outro lado, duas pesquisas recentes colocaram mais polêmica na questão. A primeira, feita pelo Collège de France, em Paris, mostrou que as crianças que exercitam a caligrafia leem e aprendem mais rápida, além de se tornarem mais criativas. Já o estudo feito pela Universidade de Indiana, nos EUA, comprovou que áreas específicas do cérebro deixaram de ser ativadas pela falta de prática da escrita cursiva.

Nessa linha, a educadora Maria Helena de Moura Neves, professora de pós-graduação em letras da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, também em entrevista ao portal UOL, defendeu o processo de aprender a letra cursiva. Segundo ela, as pessoas podem até optar por escrever com letra de forma ou digitar, mas não podem ser privadas da oportunidade de serem apresentadas a esse tipo de escrita. 

Da mesma forma, a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, afirmou em entrevista à Carta Capital que o abandono da letra cursiva não significa uma perda propriamente dita na aprendizagem escolar, mas na aprendizagem para a vida social que ainda utiliza melhor os recursos analógicos. O professor titular do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Artur Gomes de Morais, também em entrevista para a Carta Capital, endossou que saber escrever à mão é parte da noção que construímos, nos últimos séculos, do que é ser um humano civilizado. Segundo ele, ser capaz de escrever de próprio punho e ser capaz de utilizar tecnologias antigas como a caneta e o lápis continua sendo parte importante da definição de cidadão alfabetizado e letrado.

A realidade brasileira

Se os especialistas divergem a respeito do impacto dessa mudança (que já vem sendo feita em outras partes do mundo), todos concordam sobre duas coisas: (1) o tempo de aprendizagem sem a obrigação da letra cursiva é muito menor e (2) tal prática ainda seria impossível na realidade brasileira.

Em suma, quando se elimina o tempo necessário para que uma criança aprenda boa caligrafia, resta tempo para investir em outras áreas do conhecimento. Uma educadora brasileira que vive na Finlândia há dez anos, Evelyse Eerola, afirma que a mudança também se deve devido à praticidade dos finlandeses. Segundo ela, existe uma lógica muito simples na cabeça das pessoas por lá: “se você não usa, pra que ensinar?”, afirmou em entrevista à Folha de S. Paulo. Na opinião dela, tal prática seria impossível no Brasil porque por aqui ainda se avalia pela aparência. Na Finlândia, os professores não estão preocupados com letras bonitinhas.

Mas existe ainda um outro gargalo muito mais sensível em relação a uma possível adoção desse método no Brasil: a infraestrutura.

Para que a nova política seja colocada em prática, as prefeituras (responsáveis pelas escolas de educação infantil) de toda a Finlândia terão que garantir que existe pelo menos um tablet à disposição para cada aluno matriculado. O que na Finlândia significa um universo de 494 mil alunos. No Brasil são 50 milhões de estudantes.

Por tudo isso, parece difícil imaginar quando que tal discussão vai passar a fazer sentido na realidade brasileira, mas há quem acredite (e defenda) que estamos presenciando uma mudança de paradigmas no processo de ensino e aprendizagem mundial.

Pelo sim ou pelo não, eu já sei que se um dia eu realmente quiser viver na Escandinávia é bom não precisar da receita de um médico.

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a <a>Jornalismo Júnior</a>