O fim da União Soviética não deixou somente corações partidos. Quando o bonachão Boris Yeltsin espalmou o golpe de Agosto de 1991, mal o mundo sabia que muita coisa ainda iria mudar. E mesmo depois de duas décadas, ainda continuaria mudando. Sensivelmente.

Há três anos houve um confronto bicudo nas barbas da grande Rússia. Insurgentes da região da Ossétia do Sul resolveram reclamar sua independência da Geórgia, um antigo estado da União Soviética. Com apoio da Rússia e o nariz torcido do resto do mundo, os inconfidentes lograram sucesso. Baixas oficiais ficaram na casa dos 1.000 desfalecimentos, mas os refugiados representaram um movimento de cerca de 200 mil pessoas.

Boris Yeltsin, o cachaceiro que mudou o mapa geopolítico mundial

A comunidade internacional estava enojada. Era inadmissível que um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU deixasse tamanho desrespeito ao juízo internacional ocorrer em seu próprio quintal. Tanto que poucos países reconhecem a Ossétia como nação. Somente a própria Rússia, a bufona Venezuela, a tropical Nicarágua e… Nauru.

Apesar das caras e bocas de países como Alemanha, Estados Unidos e França, essa não foi a primeira vez que o princípio da autodeterminação dos povos foi desrespeitado. Demagogias a parte, a emersão da Ossétia traz a tona outros questionamentos mais relevantes.

Estados Fantasmas

A queda do muro de Berlim acendeu o pavio do Cáucaso. À medida que a luz da ocidentalidade foi adentrando a região, descobriu-se um caldeirão religioso e étnico que foi se apurando lentamente durante os setenta anos de regime comunista. Ali, fervendo por um pedaço de chão, estão muçulmanos, cristãos ortodoxos e católicos apostólicos.

As bombas não demoraram a estourar e a década de 1990 assistiu consternada a Guerra da Bósnia (1992-95) e do Kosovo (1998-9). A cidade de Sarajevo entrou no debate humanitário internacional, devido principalmente as atrocidades sexuais do exército sérvio no cerco a cidade. Três comandantes do exército sérvio já foram condenados pelo Tribunal Internacional Penal.

O fim da gerência soviética sobre armamentos e fronteiras foi a gênese de uma nova figura no tabuleiro internacional: os estados-fantasmas. Trata-se de um território com um governo organizado, autônomo e regular (com eleições); habitado por uma população com vínculos culturais e (principalmente) religiosos, que conseguem desenvolver razoavelmente alguma atividade econômica. No entanto, não são reconhecidos ou não tem legitimidade jurídica suficiente perante outros Estados e ao Direito Internacional.

Somalilândia

Refugiados da guerra eterna na Somália.

Esse tipo de Estado não é privilégio da turma gelada lá de cima. A delicada geopolítica das savanas e dos desertos também parece um ambiente propício e confortável para o surgimento dos Estados-fantasmas.

Flagelada por sangrentas batalhas tribais, há décadas a Somália patina num lodo de fome, peste e miséria. Com o novo ordenamento político do começo da década de 1990, as posições soviéticas na África foram abandonadas e as milícias locais aproveitaram a oportunidade para despontar.

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O território da Somalilândia declarou sua autonomia após a queda do governo central somali em 1991. A Somália entrou numa espiral anárquica que até hoje perdura, enquanto que os insurgentes do novo território conseguiram organizar um estado razoavelmente funcional e estável.

Embora não seja reconhecido por nenhuma nação do planeta, a Somalilândia vem buscando espaço internacional, inclusive na captura de investimentos estrangeiros. Recentemente, o governo do país (?) desenvolveu conversas com a China para o financiamento da expansão do porto de Berbera, o principal entreposto comercial do chifre africano.

Pakhtunkhwa

O Rambo e o Afeganistão ilustraram bem como a Guerra Fria marcou o Oriente Médio. Sem falar no Iraque e no Osama mais recentemente. Um livro que descreve com muito detalhe o surgimento dessas figuras é “Onde os Homens Conquistam a Glória” do brilhante Jon Krakauer.

Nesse texto, o autor relata todas as intrincadas relações tribais que levaram a consolidação do Taliban como liderança religiosa e política na região. Sem falar na história real de um defensive backer que resolve ir pra guerra.

Uma tripa de território entre o Afeganistão e o Paquistão está surgindo como nova nação. Com uma população estimada em 42 milhões de pessoas, a terra dos Pashtuns, ou Pakhtunkhwa, já existe de fato. Inclusive com um reconhecimento regional de Islamabad e Kabul.

Regulados pelo código de conduta islâmico (sharia), Pakhtunkhwa já começa com o poderio e o conhecimento militar do Taliban. Que por sua vez aprendeu com a União Soviética. Ou seja, buscar legitimidade a base da força não será problemas para esse Gasparzinho estatal.

Quem tem medo de fantasma?

Ao longo da História, a formação dos Estados europeus obrigatoriamente passa pela questão religiosa. Temos as cruzadas e a inquisição como forma de legitimar uma determinada ordem social, além de religiosa obviamente. O próprio estado Romano sofreu severas transformações com a introdução do Cristianismo na sua esfera de atenção.

O grande temor da atual conjuntura internacional talvez seja pelo desinteresse desses novos Estados pelo paradigma ONU. O tabuleiro estratégico demorou duas grandes guerras para se estabilizar e a relativa “grande paz” que o mundo vive hoje pode ser ameaçada.

O incipiente declínio americano também arrepia os cabelos diplomáticos. O enfraquecimento do guardião do paradigma ocidental pode significar que uma ordem totalmente estranha a nossos corações, venha a regrar plenamente o mundo. E mudanças sempre causam estranheza.

Existem ainda muitos outros Estados-fantasmas ao redor do mundo. Alimentados de armas e muita fé, um belo dia, eles podem se tornar a maioria. E não há aperto de mão que poderá detê-los. Tão pouco deter a roda da História.

Flaco Marques

Rapaz do interior de SP que vive suas desventuras na cidade grande. Poliglota valente, busca equilibrar o jeito cosmopolita de ser com a simplicidade caipira de viver.