Dá pra montar uma legião de pessoas que atravessaram a época do colégio com dificuldades – pra atingir as notas, pra negociar suas liberdades com os pais e, principalmente, pra se achar e firmar uma identidade em meio a tanta gente diferente. O ambiente pode ser hostil e um belo simulacro do que nos aguarda na vida adulta. É um jogo no level hard.

Crianças e adolescentes podem ser bastante cruéis e, especialmente quando em grupo, machucar uns aos outros pelas mais falsas impressões de vulnerabilidade. O bullying entre os mais jovens é caso sério que só cresce e já é objeto de pesquisa, tendo sido observado pela Universidade de Oxford que a intimidação social sofrida na adolescência pode ser a causa de depressão em 30% dos adultos que têm o distúrbio.

As noções de validação social como beleza, estereótipo de gênero, extroversão e temeridade estão muito bem embaladas e têm diversidade ainda mais restrita nos ambientes escolares – e ai daquele que não se encaixa. Sotaques, diferenças corporais, roupas de marcas diferentes, um andar desengonçado. Tudo é motivo para chacota.

Mais do que uma produção cinematográfica, filme estoniano Klass é uma denúncia que conta a história de Joosep, um adolescente diariamente torturado física e psicologicamente pelos seus companheiros de sala

Há quem seja mais ou menos afetado pela prática, mas isso não pode ser carta branca para diminuir sua força destrutiva. Eu vi, em sala de aula, o bullying acabar com a autoestima e senso de identidade de crianças, adolescentes e jovens tão jovens quanto eu. Sei que não é fácil remar contra essa maré quando seus alunos frequentam tantos outros lugares além do colégio – a escola de inglês, a natação, o reforço de matemática e muitas vezes a própria casa – e as rédeas da educação não estão em suas mãos.

É por isso que o acolhimento social e a criação de um espaço de aceitação seguro foram as motivações para a inauguração da primeira escola LGBT na Geórgia, EUA. A Pride School Atlanta começa sua jornada letiva nesse ano, educando crianças e cinco a dezoito anos, com a premissa de ser um ambiente livre de preconceitos, onde professores, alunos e funcionários não precisam omitir ou disfarçar suas orientações sexuais e identidades de gênero.

O colégio é particular mas sem fins lucrativos e a anuidade deve girar em torno de US$12 mil, mas existe a possibilidade de bolsas para aqueles jovens que sofrem intimidação social em seus colégios e vivem sob condições financeiras especiais.

E a preocupação com a inclusão não para no preço e nas orientações sexual e de gênero – apesar de ter sido criada sob o mote LGBT, a instituição é receptiva a todos que têm dificuldades em colégios regulares sejam elas por nacionalidade, raça e deficiências físicas ou mentais.

O fundador da Pride School Atlanta é o professor transgênero Christian Zsilavetz

A ideia não é exatamente inédita no país já que existe uma escola com a mesma premissa em Nova Iorque, a Harvey Milk High School. Esse, no entanto, é um colégio público que se destina a estudantes que já tiveram experiências ruins em pelo menos uma escola comum.

Além de ser um colégio privado, a Pride School Atlanta também guarda outra diferença em relação à HMHS – o currículo escolar.

A instituição da Geórgia tem seus princípios fundados em cima do que chamam de Escola Livre, modelo pelo qual o aluno é suprido com as ferramentas necessárias para que alcance suas metas particulares de aprendizado, que podem ser diferentes de outros alunos. O ambiente escolar também deve ser co-habitado por jovens de diferentes idades, aprendendo juntos, cada um a seu passo e currículo.

O foco em metas individuais em detrimento de uma visão conteudista do ensino é essencial pra que o colégio possa acolher pessoas emocionalmente sensibilizadas e que tiveram seus sensos de identidade e autoestima abalados, bem como deficientes mentais, mas impõe alguns empecilhos, principalmente em termos numéricos. Acredito que seja por essa razão que a Pride School Atlanta pretende começar o ano letivo educando de 10 a 15 jovens, somente.

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Isso nos levanta uma questão sobre a efetividade do serviço versus sua abrangência: a escola pretende, sim, crescer, mas só até 60 alunos. Será que esses professores e diretores não poderiam ter melhor engajado suas políticas educacionais inclusivas em colégios por todo o país, botando essas ideias pra rolar e crescer em diversos espaços?

No modelo educacional do colégio, como diz seu site, “o currículo é flexível e não há testes ou tarefas de casa obrigatórias”

A resposta – sim, poderiam – viria à ponta da língua sem maiores hesitações se não lembrássemos que os próprios trabalhadores podem ter visto na proposta escolar uma saída pra possíveis intimidações sociais que venham a sofrer nos colégios regulares.

Já o currículo da HMHS é padrão e descrito por diversas vezes como uma “rigorosa experiência acadêmica” voltada para a preparação desses jovens para a faculdade e o direcionamento de suas carreiras.

Sua proposta parece menos controversa porque nos é familiar. É assim que a maioria de nossos colégios funcionam – apesar do acompanhamento pedagógico com pais, essas instuições, no geral, atendem a um número grande de jovens de forma similar e com o mesmo oferecimento de conteúdo no mesmo ritmo, acessando sua retenção por meio de testes e notas.

Essa proposta parece atender a demanda social e emocional de funcionários e estudantes LGBT que, em sua maioria, já chegam ao ensino médio com o ideário de carreira e vida comum formados, afinal, é normal que queiramos seguir o caminho mais trilhado. Mas se por um lado sua ação pode ser mais abrangente em termos numéricos, não é lá das mais revolucionárias em termos de ensino – e esses nossos modelos já foram postos em xeque.

Também há de se debater se a melhor solução de resistência ao bullying e de acolhimento desses alunos que sofrem com o ato é, realmente, criar espaços que os reserva do todo. A distância pode acabar por quebrar pontes e dificultar o surgimento de empatia entre praticantes e atacados, criar um abismo entre eu e eles ao invés de promover a ideia de uma convivência saudável, harmônica e respeitosa. Significa dar menos oportunidades aos praticantes da intimidação de ver seus alvos como igualmente humanos.

Por outro lado, fica difícil dizer se lhes dar essas oportunidades deve ser a prioridade quando a parcela intimidada dos jovens está sofrendo e até morrendo em decorrência da prática. As consequências marcam por toda a vida, ainda que a vítima seja resistente e procure ajuda.

A produção brasileira “As melhores coisas do mundo” aborda o cyberbullying pela história de Hermano, que em meio à adolescência passa pela separação dos pais e sofre com humilhações na escola por causa da recém-revelada orientação homossexual de seu pai

Uma pesquisa da Gay, Lesbian and Straight Education Network’s de 2013 mostrou que 56% dos estudantes LGBT enfrentarão problemas na escola por causa de sua orientação sexual ou de gênero. Esse número sobe pra 90% nos estados do sul dos EUA, como é o caso da Geórgia. Isso nos diz que a criação de espaços onde LGBTs possam se sentir seguros é urgente, mesmo que esteja posta a polêmica sobre essa ser ou não a medida combativa ideal a longo prazo.

No Brasil, onde o ideário de ensino superior como sucesso pessoal e o vestibular se impõe como obstáculo nesse caminho, pensar modelos de escolas nos quais as vítimas de intimidação social consigam desenvolver sua trajetória escolar com tranquilidade é importante. Especialmente porque identidade de gênero e orientação sexual são tabus para famílias e para o próprio sistema de ensino, no qual os professores estão proibidos de discutir gênero e sexualidade.

O criador do conceito da Pride School Atlanta é o professor trans Christian Zsilavetz, que nos deixa a reflexão (em tradução livre):

“O que esses estudantes têm agora nas escolas públicas é a educação equivalente em termos de conteúdo, mas segregatória. Porque se você têm de ficar o dia todo sem ir ao banheiro e não pode usar o seu designado armário e se você sofre bullying na sala de aula e seus professores não te apoiam, você não tem um lugar legítimo nessa escola.”

Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.