“O aconteceu aqui foi guerra pela água”, me disse Suellen Rodrigues, coordenadora de um enorme grupo de voluntários que está distribuindo água mineral doada por todo o Brasil em Governador Valadares.
Foi depois de ver um vídeo de moradores daquela cidade, com baldes nas mãos, correndo desesperados atrás de um caminhão pipa, que Ismael e eu decidimos ir entender o que estava acontecendo na Bacia do Rio Doce. O abastecimento de água em Valadares já estava prejudicado pela seca do Rio Doce, fornecedor do município, e depois que a lama ele chegou a captação chegou a ser interrompida por uma semana. Segundo Suellen, chegaram a acontecer graves agressões físicas na disputa por um lugar na fila do carro pipa. Nos primeiros dias comerciantes de má-fé também aumentaram o preço da água, mas tiveram que voltar atrás depois de denunciados.
Quando o fornecimento foi restabelecido, a prefeita Elisa Costa (PT) declarou que a água tratada estava potável e até apareceu na TV bebendo um copo. “Que nada, aquilo era água mineral”, desdenhou uma voluntária. Outras pessoas nos relataram que sentem coceira após o banho, a menos que tomem uma última “chuveirada” de água mineral. Não se cozinha com o que sai da torneira e, após lavar a louça, eles adquiriram o hábito de enxaguar pratos e talheres com água engarrafada. Todo esse cuidado tem razão: quem bebeu da água encanada diz que passou mal.
Por isso, nos pareceu o extremo do absurdo quando algumas pessoas nos disseram que a Secretaria de Educação da cidade orientou funcionários da rede municipal a não receberem na escola crianças levando água mineral de casa. Isso fez parte de um comunicado mais amplo, que orientava a rede a não receber doações de água mineral – ou repassar as que chegassem aos seus funcionários. A medida teria sido tomada após acontecerem furtos nas escolas que receberam doações. Uma voluntária nos contou que, depois que a professora recolheu a garrafa que o filho havia levado e disse à criança para tomar água do bebedouro, o menino teve diarreia e vômito.
O Natal da cidade, cuja economia é movimentada pelo comércio local, está murcho este ano. Lojistas começaram a tentar vender seus estoques na internet e já há quem pense em ir embora de Valadares. Agora, mais importante do que gastar com o Papai Noel é comprar uma caixa d’água maior ou cavar um poço no quintal.
O importante trabalho do voluntariado
Em meio a tanto caos, o grupo do qual Suellen participa tem um papel fundamental. Eles se organizaram inicialmente para coletar e abastecer com água mineral a população mais desassistida, onde a água fornecida pela Prefeitura (que começou a campanha no dia seguinte à deles) e da Samarco não estava chegando. “Fizemos entregas nos topos dos bairros mais carentes, onde nem a polícia queria ir, sob orientação de lideranças locais”. Para isso vários grupos se juntaram, como S.O.S. Rio Doce, Trupe do bem, GV Sem fome, Escoteiros do Brasil, SOS Valadares, Clube do Remo e outros voluntários.
A grande equipe, que não tem vínculos políticos ou religiosos, já suspendeu a campanha por doações – mas continua recebendo as que chegam a seus postos de coleta. Agora estão focados em atender pessoas que não podem ficar nas longas filas da água distribuída pela Samarco e pela Prefeitura: deficientes, acamados e idosos, que visitam de acordo com listas que obtiveram nos postos de saúde.
Ao chegar em Governador Valadares, o estoque do grupo fica guardado no Estádio José Mammoud Abbas, do Democrata-GV. Quem ajuda a descarregar, também voluntariamente, são recuperandos de instituições que trabalham com dependentes químicos ou, como no dia em que acompanhamos o trabalho do grupo, pessoas de comunidades beneficiadas. Depois, outros voluntários seguem um roteiro com uma lista de visitas a serem cumpridas, inclusive nos finais de semana. Com o carro cheio com a maior quantidade possível de galões, eles vão de porta em porta para distribuir a água. “Isso é obrigação da Samarco e da Vale, estamos fazendo o trabalho deles na verdade”, alfineta Suellen.
Enquanto seguíamos a entrega de água para acamados, uma moça com carrinho de bebê passou e nos perguntou qual o critério para a distribuição. Ela levava um galãozinho de cinco litros a tiracolo. No quarteirão à frente, um adolescente levava um carrinho de mão cheio de garrafas. Ismael desabafou, explicitando a sensação que pairava desde a nossa chegada em Governador Valadares: “Todo mundo está carregando água nessa cidade!”.
Mais tarde, quando nos hospedamos em Resplendor, contamos oito caminhões pipa estacionados em um só quarteirão. De lá, partimos para conhecer as história dos índios Krenak e dos pescadores de Baixo Guandu.
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Esse texto faz parte da coleção Expedição Rio Doce, reportagem especial produzida para o Papo de Homem pela repórter Nina Neves e pelo repórter e fotógrafo Ismael dos Anjos – iniciada com um chamado à nossa comunidade para recebermos sugestões de perguntas a serem investigadas.
Nosso enviados percorreram 2.500 km da Barragem de Fundão à foz do Rio Doce para investigar a maior tragédia ambiental da história do Brasil. Tem alguma pergunta? Nosso time vai tentar responder a vocês com reportagens que serão publicadas ao longo da semana.
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