Não precisa ser muito perspicaz para sacar que o Brasil é um país extremamente desigual.

Quando falamos do impacto do Bolsa Família, por exemplo, estamos dizendo na verdade que para uma parcela da nossa população, R$70 por mês faz a diferença entre passar fome e poder usar uma lan-house uma hora por semana com internet a rádio na zona rural do Amapá.

Outros dados, mais drásticos, nos mostram que a desigualdade extrapola a classe social e o consumo: o Brasil tinha, em 2011, apenas 8% de seus jovens negros matriculados no ensino superior; somos um dos países que mais mata sua população LGBT no mundo; as mulheres representam apenas 8,6% dos cargos legislativos.

Saber que a desigualdade existe – e enxergá-la –, porém, não nos diz como ela funciona nem de onde vem.

No senso comum há muitos discursos que tentam explicar esse quadro. Você certamente já ouviu alguém dizer que há pessoas pobres porque elas não se esforçam para arrumar empregos; ou que negros são mais frequentemente alvo da polícia porque estatisticamente cometem mais crimes; ou ainda que as mulheres não ocupam espaços de poder porque preferem cuidar da casa e da família.

Será que essas explicações se sustentam quando olhamos de perto as desigualdades e como elas operam?

 

Desigualdade ou Diferença?

Muitas vezes, quando confrontadas com a ideia de “desigualdade”, as pessoas logo se assustam, pensando que um mundo menos desigual significa um mundo mais padronizado.

Segundo esse raciocínio, se fôssemos todos e todas “iguais”, eliminaríamos as diferenças individuais. Quem diz esse tipo de coisa provavelmente não se atentou para o fato de que “diferença” e “desigualdade” são duas coisas distintas.

Dá pra resumir mais ou menos assim: a desigualdade é quando as diferenças implicam em vantagens para uns e desvantagens para outros, em termos de acesso a recursos simbólicos, materiais, financeiros, serviços, direitos etc. Ou seja, um contexto de “igualdade” seria aquele em que, mesmo com as diferenças entre indivíduos, todos teriam o mesmo acesso a esses bens na sociedade.

 

A desigualdade é o que faz essas pessoas não serem exatamente vizinhos
A desigualdade é o que faz essas pessoas não serem exatamente vizinhos

Um mundo mais igualitário, então, seria um mundo com uma diversidade ainda maior – já que as pessoas poderiam ser livres para expressar diferenças individuais sem a tensão de serem possivelmente penalizadas por elas.

Um exemplo disso são as desigualdades entre homens e mulheres. Olha só: por vários motivos, na nossa sociedade homens e mulheres são diferentes, certo? Isso não significa que a sua relação precise ser desigual. Quer dizer, homens e mulheres podem continuar sendo diferentes, sem que as mulheres ganhem salários mais baixos por serem consideradas menos competentes, por exemplo.

Se falamos em desigualdade, estamos falando de contextos em que algumas pessoas concentram poder – por terem acesso a tais bens, materiais ou simbólicos.

 

Onde está a grana?

Uma das maneiras mais óbvias de a desigualdade se manifestar é por meio da grana. No nosso mundo, essa é uma das primeiras discrepâncias que conhecemos. Basta circular pela cidade, conversar com vizinhos, funcionários domésticos ou prestadores de serviço para acessarmos essas desigualdades.

O fato é: o dinheiro é distribuído de maneira heterogênea.

Há quem diga que a distribuição heterogênea do dinheiro seja muito justa – afinal, um médico teria mesmo que ganhar mais do que um professor, ou do que um gari.

Essa ideia é chamada de “meritocracia” e dá pano pra manga (ou letra pra texto). Ela é questionável por vários motivos, mas para entendermos a desigualdade logo de cara, um deles é bem importante: as pessoas não saem todas da mesma linha de largada, e nem competem em condições iguais.

É exatamente daí que vem a desigualdade. Diferenças que acarretam vantagens e desvantagens.

No caso da classe social, um dos teóricos mais importantes que explicou esse processo foi Marx. Sim, ele mesmo, o barbudo comunista.

Agora, peralá. Ninguém precisa ser comunista para conhecer Marx, nem para reconhecer e entender a teoria social que ele elaborou.

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Enquanto filósofo e economista, ele desenvolveu uma teoria social complexa que explica algumas das bases do capitalismo industrial (e que, em vários casos, permaneceram no capitalismo financeiro que vivemos). Além disso, o alemão criou algumas ferramentas teóricas que serviram – e ainda servem – a vários intelectuais para examinar certos fenômenos sociais.

Poderíamos falar por horas (ou páginas) apenas sobre esses conceitos básicos. Para pensar a desigualdade, porém, Marx elaborou alguns conceitos preciosos. Entre eles, a ideia de “mais-valia” para explicar de onde vem o lucro no capitalismo industrial.

 

Mais-valia, o eixo central da desigualdade financeira

Dizendo de maneira um tanto simplificada, o “lucro” é a diferença entre o custo de produção de certa mercadoria e o valor recebido com sua venda. Nesse custo, estão inclusas despesas com matéria-prima, meios de produção (máquinas, ferramentas, espaço, etc) e mão-de-obra.

Não precisa ser nenhum gênio para perceber que a maneira mais eficaz de manter o lucro obtido com a venda de um produto num certo patamar ou aumentá-lo é reduzir os custos, já que o valor de venda em geral não tem tanta margem para variação (por uma série de motivos que não cabem aqui mas que também foram abordados por Marx em O Capital).

Dentro dessa perspectiva, a matéria-prima e os meios de produção também têm limites (físicos, inclusive) nas possibilidades de redução de custos. A mão-de-obra acaba sendo o fator em que se aposta, na lógica capitalista industrial, para obter e regular o lucro. Tudo isso por meio de um dispositivo chamado “mais-valia”.

Funciona mais ou menos assim (pensem com a cabeça de um industrial, vamos lá):

Cada trabalhador/a é capaz de produzir um número determinado de mercadorias utilizando uma quantidade fixa de matéria-prima e os meios de produção disponíveis (máquinas, por exemplo).

Vamos falar em ovos de páscoa: um trabalhador produz cem ovos de páscoa por dia. Cada ovo desses é vendido por R$10, sendo que o custo de matéria-prima e meios de produção de cada ovo é de, sei lá, vamos supor uns R$4.

Num sistema que não pressupõe lucro, esse trabalhador receberia os R$6 de diferença para cada ovo de páscoa que produziu, num total de R$600 por dia. Mas não no capitalismo.

A “mais-valia” no capitalismo é a diferença entre o valor que o trabalhador foi capaz de produzir com seu trabalho (ou seja, os tais R$600/dia) e o que ele recebe de fato como salário (vamos supor que uns R$350/dia, nesse exemplo fictício).

Os outros R$250/dia produzidos são repassados ao patrão, que detém os meios de produção, o espaço de trabalho, o poder de decisão sobre a matéria-prima, entre outros, concentrando poder sobre os trabalhadores.

Abaixo, uma imagem pra ajudar a visualizar:

 

A mais-valia explicada por meio de ovos de páscoa hipotéticos
A mais-valia explicada por meio de ovos de páscoa hipotéticos

O ponto central do raciocínio de Marx, aqui, é que o lucro no capitalismo vem da exploração de poucos sobre o trabalho de muitos. É essa exploração que permite o lucro que, por sua vez, nos permite falar em capitalismo.

Quando o lucro deixa de existir (num modelo de sociedade organizado cooperativamente, por exemplo, em que os trabalhadores se organizam de maneira autônoma e compartilham os meios de produção – como o que propõem os trabalhadores da Flaskô), não estamos mais falando em capitalismo – mesmo que não necessariamente estejamos falando de socialismo ou comunismo.

Abandonando um pouco essa polarização, se torna possível pensar em novas configurações do trabalho, que produzam um mundo mais igualitário.

Embora a mais-valia explique como se perpetua a concentração de poder de poucos sobre muitos, por meio da exploração do trabalho, com um pouco de atenção dá pra perceber que ela não é em si o fator produtor de desigualdade.

Quer dizer, a tal “mais-valia” na verdade se apoia sobre outra desigualdade já existente, ainda mais basilar na nossa estrutura social: a desigualdade entre classes sociais.

 

Classe social: o demarcador de territórios da desigualdade financeira

A princípio parece uma pergunta sem resposta, do tipo tostines-ou-galinha-barra-ovo: quem veio primeiro, a desigualdade entre classes ou a mais-valia? A mais-valia ou a desigualdade entre classes?

Quer dizer, é possível explorar o trabalho de outros por causa de uma desigualdade ou a desigualdade surge porque exploramos o trabalho nesse sistema?

Uma retomada rapidinha na história das sociedades ocidentais (que inventaram o capitalismo e o propagaram pelo mundo) resolve esse impasse. Se liga, ó.

No caso da Europa, a desigualdade não nasce com o capitalismo industrial. Muito antes disso, já havia desigualdades sociais, propagadas por outros tipos de relações de trabalho, cultura, política e fé. Os senhores feudais ou os monarcas absolutistas não possuíam indústrias, nem exploravam mais-valia, e se beneficiavam mesmo assim de uma situação desigual socialmente.

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Não é o caso de entrar na discussão gigantesca sobre se apenas a propriedade privada, como disse Marx e dizem vários marxistas, teria sido a grande causa de todas as desigualdades e tipos de dominação (pessoalmente, acho que esse tipo de raciocínio ignora algumas nuances da coisa). O ponto é que a sociedade de classes permitiu o capitalismo industrial se desenvolver (e artifícios como a mais-valia serem criados), e não o contrário.

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A revolução industrial é um dos marcos da mudança na maneira como essa sociedade se configura, sobretudo economicamente.

Até certo ponto na história, os trabalhadores eram autônomos ou possuíam negócios familiares. Isso significava deter tanto a matéria-prima quanto os meios de produção.

Com a invenção da indústria, os meios de produção (fábricas, máquinas, etc) ficaram concentrados nas mãos de poucas pessoas, que passaram a explorar o trabalho de outras. Essas outras não tinham condições concretas de competir, no mercado, com o novo modelo que se fortalecia (produção em massa, produtos mais baratos, larga escala, etc).

Sem propriedades rurais, nem meios de produção, restou à maior parte dessas populações vender sua força de trabalho em fábricas. Uma das consequências dessas mudanças foi a urbanização massiva no século XIX e o inchaço das cidades. Outra foi a acentuação de desigualdades sociais.

Em geral, na sociologia, as relações de trabalho são utilizadas como marcadores de classe social. Assim separamos as condições primárias de vida entre aqueles que necessitam e aqueles que não necessitam vender a própria força de trabalho para sobreviverem (lembrando que essa é apenas uma das maneiras possíveis de interpretar as relações sociais dentro da própria sociologia).

No contexto atual, porém, já compreendemos que as relações de “classe” extrapolam esse critério.

 

Além do trabalho e da renda

Quando falamos em desigualdade social, riqueza, pobreza e em “classe”, a primeira coisa que nos vem à cabeça costuma ser a classificação de faixas de renda feita pelo IBGE e por outras agências de pesquisa e estatística: classe “A”, classe “B”, classe “C”, “nova classe média” etc.

Estas são maneiras válidas de organizar a população para compreender hábitos de consumo e disponibilidade de recursos financeiros e materiais (renda). Por outro lado, esse tipo de separação não nos diz tanto sobre outros aspectos da hierarquia social que extrapolam o dinheiro.

Um bolsista de mestrado, por exemplo, ganha o mesmo valor mensal que um dependente de crack que participa do programa de trabalho da Prefeitura de São Paulo catando lixo. Em termos de grana, ambos podem ser classificados na mesma categoria, embora claramente não ocupem o mesmo lugar social.

Algumas linhas de pensamento na sociologia preferem usar o termo “grupos sociais” em vez de “classes”, por exemplo, já que “classe” em geral é uma categoria ligada ao trabalho (como vimos acima) ou à renda (como no caso do IBGE), numa perspectiva que classifica as pessoas pelo acesso a bens materiais.

A ideia dessa diferenciação é mostrar que as pessoas compartilham posições e status distintos na sociedade também de acordo com o acesso que têm a bens simbólicos.

A educação formal é um deles, mas estão inclusos aí outros elementos da cultura: as músicas que se ouve, o hábito ou não de leitura (e de quais materiais literários), sotaques e maneiras de se expressar, preferências alimentares, moda, etc. Todas essas características se combinam de maneira a distinguir e hierarquizar pessoas de acordo com seu pertencimento a certos grupos.

Mesmo assim, a classe social não explica sozinha todas as desigualdades – mesmo no capitalismo, em que essa é uma questão central.

Um excelente exemplo é a variação salarial para funcionários num mesmo cargo ou função de acordo com a sua classificação racial e de gênero: no Brasil, o salário das mulheres é 27,1% menor no mesmo cargo que um homem, e o das pessoas negras 36% menor do que o das pessoas brancas.

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São esses os dois outros grandes sistemas produtores de desigualdades que observamos na nossa sociedade, hoje: raça e gênero.

 

Não há como escapar: você será lido e rotulado

Sociologicamente, dizemos que a raça é uma maneira de classificarmos as pessoas com base na interpretação do fenótipo. Quer dizer: somos lidos racialmente uns pelos outros que, a partir de características físicas que possuímos, criam associações e discursos sobre quem somos e de onde viemos.

Muitas vezes, pessoas afrodescentes, por exemplo, são “lidas” no Brasil como brancas e não como negras. Dada a impossibilidade de um critério “puro” e exato para determinar uma interpretação universal racial, se trabalha em pesquisas e na política com a auto-identificação.

Afinal de contas, é mesmo impossível saber, sem estar na pele do outro, que situações ele ou ela já viveu em que experimentou leituras feitas sobre si em relação à classificação racial. Nos resta acolher a experiência e a construção de identidade racial das pessoas.

O gênero também é construído com base em expressões físicas e comportamentais, mais do que na genitália em si (já que não saímos por aí conferindo a genitália alheia antes de classificarmos as pessoas como homens ou mulheres, certo? Um bom texto sobre o assunto é “O que é um homem, o que é uma mulher?“).

As expressões de gênero, diferentemente das raciais, dependem mais da construção individual que fazemos sobre nossos corpos e atitudes do que da leitura dos outros sobre isso (que funciona como uma espécie de mediador, já que também definimos a maneira de expressar o gênero pensando em como seremos lidos por outrem).

 

Laerte: “a própria expressão ‘se vestir como mulher’ é estranha para mim. Eu me sinto mulher. Mulher é uma questão cultural.”
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Isso tudo quer dizer que, ao andarmos no mundo, não somos jamais vistos como seres “neutros”. Pelo contrário, nos enquadramos em diversas classificações de acordo com critérios de diferentes tipos.

Essa variação não seria um problema se não implicasse em menos acesso a direitos básicos ou bens materiais.

Por exemplo, quando uma mulher grávida é tratada de maneira violenta num hospital público por ser negra, quando um jovem é sumariamente executado pela polícia militar sem direito à justiça ou defesa por ser classificado como negro ou quando se paga a uma mulher menos salário do que a homens num mesmo cargo.

Tudo isso se soma à desigualdade social (de classe) mas também a sustenta quando criamos percepções sobre possibilidades e impossibilidades para nossas vidas com base na maneira como somos lidos e aprendemos a nos ler (daí a importância de se ter uma presidenta mulher, por exemplo, ainda que isso não diminua necessariamente a desigualdade de gênero na política).

* * *

O resumo da ópera é relativamente simples: desigualdade não é o mesmo que diferença. Diferença é lindo. Desigualdade dói, exclui, marginaliza, é violenta. Diferença, ao mesmo tempo, não implica necessariamente em desigualdade. Se o fazemos é porque distribuímos o poder de forma heterogênea, e porque há um interesse real de quem concentra poder em continuar concentrando poder – independente de tratarmos isso como “natural” dos seres humanos ou não; a questão aqui não é essa. É outra:

Nesse esquema que parece tão inatingível, o que podemos efetivamente fazer, enquanto indivíduos, para minar a continuidade dessas injustiças?

Talvez o começo seja mais simples do que parece. Sem preencher nenhuma ficha de filiação partidária, nem encarar longas assembleias abarrotadas de clichês militantes, eu, você e qualquer pessoa podemos dar o start nessa mudança em nossas próprias vidas.

Pode ser difícil escapar do sistema mais-valia/lucro/venda da força de trabalho, claro. Mas de repente, consumir o máximo de produtos ligados a economia solidária, cooperativas e outras formas de produção livre já ajuda.

Pode ser difícil fugir de algumas armadilhas do machismo e do dia para a noite se tornar feminista. Mas de repente é um bom começo questionar se suas atitudes são aquelas que você gostaria de ter, ou se são pautadas apenas pelo que vão entender de você como homem ou pelo rótulo que será aplicado. Ou então passar a se perguntar se, como homem, certos comportamentos não podem estar sendo violentos simbolicamente com as mulheres ao seu redor – e, para isso, é só escutá-las e ter um tiquinho de empatia.

Pode ser difícil romper totalmente com os estereótipos e classificações raciais mais sutis que nos foram inculcados desde o nascimento. Mas de repente você consegue se perguntar, no dia-a-dia, se sua reação em certas situações seria a mesma substituindo pessoas negras por pessoas brancas em algumas situações. Ou mesmo parar para entender, das próprias pessoas negras, que tipos de vivência cotidiana elas contam como sendo violentas – para daí refletir qual é a sua participação nisso.

Quem sabe até o fato de você ter procurado ler este textinho já é uma pequena grande mudança. Se ele tiver te cutucado, incomodado, levado a tentar discutir qualquer um desses pontos com alguém, então, tanto melhor. O mais importante, porém, é que nem eu, nem você estejamos satisfeitos com esta leitura. E aí, é só puxar uma cadeira e começar a conversa.

Marília Moschkovich

Socióloga, mestra em educação e doutoranda na mesma área. Militante do movimento feminista, escreve no site <a>Outras Palavras e twitta como <a href="http://twitter.com/mariliamoscou">@MariliaMoscou</a>. Defende um mundo com justiça de gênero e direitos humanos assegurados para todas e todos."