Olhar pras diferenças entre gerações sempre foi algo que me interessou. Buscava, olhando meus pais e meus avós, ver que tinha por trás da figura do cuidador. Quem era a pessoa naquela pele? Quais eram suas rebeldias, suas frustrações? Que filho aquele pai foi um dia?
No terceiro dia do PAI 2020, o tema é o “Deixar de ser criança”. A conversa é sobre os desafios daquela fase em que os filhos — que há muito já eram pessoas com opiniões e vontades próprias — passam a expor cada vez mais suas personalidades, seus desejos de diferenciação dos mais e a demandar liberdades.
Todo pai já esteve no lugar de filho e mesmo nas famílias em que essa fase é menos conflituosa, há desafios a se encarar. Esse é o caso da Deh Bastos, diretora editorial do projeto Criando Crianças Pretas, que conta parte da sua história:
"Lá em casa, eu, meu pai, minha mãe e minha irmã a gente era muito uma unidade familiar um por todos e todos por um. Os conflitos começaram a aparecer quando eu vi que eles eram seres humanos igual eu. Acho que também foi difícil pra eles ver que eu estava crescendo, que eu era uma mulher já, com ideias próprias e que talvez não fosse suprir algumas das expectativas que eles tinham…”
Mergulhando nos aprendizados que passam entre as gerações, há três anos eu decidi ir atrás de histórias para escrever um livro sobre mães, avós e filhas. Nas entrevistas, era justamente quando as famílias falavam sobre esta fase transição da infância para a adolescência que os conflitos despontavam entre as gerações. Os valores de proteção dos pais colidiam com a necessidade de autonomia dos filhos.
Uma mãe, ao ver a filha como um espelho de si na adolescência, tentava impedir que garota cometesse os mesmos equívocos, enquanto a filha, sentindo-se sufocada, pedia apenas que a mãe permitisse que ela tivesse a oportunidade de aprender com os próprios erros.
Cada um — tivesse a idade que tivesse — enquanto filho, relatava as restrições impostas pelos pais e, quando falavam como pais, contavam sobre as liberdades que tentavam dar aos seus filhos. Os 15, 20, 30 anos que separavam a juventude dos pais da juventude dos filhos, faziam com que a liberdade que a mãe julgava ser suficiente, ainda fosse pouca para sua filha. Seria esse o “abismo entre gerações”?
Dos desafios da paternidade (e da parentalidade em geral) este conflito geracional entre desejos de proteção dos pai e vontade de autonomia dos filhos é um dos grandes. Conversamos com pais e mães (que, claro, também foram filhos) pra que a gente pudesse olhar pra esse contraste, para os conflitos, e, mais que isso, mergulhar nos aprendizados que dele surgem.
As restrições que desagradam os filhos
Cláudio Serva, fundador do @Prazerele e uma referência quando o tema é sexualidade masculina, fala sobre seu lugar de filho:
“O maior conflito de geração com os meus pais acho que foi a rigidez com a possibilidade da expressão da essência da natureza de cada um. Eu conto sempre uma história nos cursos que eu adorava o Ney Matogrosso e, naquela idade, pouco me importava a orientação sexual dele. Eu gostava do jeito que ele era livre, de andar com pouca roupa, com roupas coloridas, penas, brincos…de poder ser mais leve, mais livre, sair daquele estereótipo.
Numa gincana eu me vesti de Ney Matogrosso, dancei e ganhamos o prêmio. Eu achei aquilo incrível! Quando meu pai chegou em casa, ele não gostou daquela história. Teve toda uma pressão emocional, uma conversa com receio de que eu me tornasse homossexual.
Apesar do meu pai ser um cara muito maluco, de não estar tão presente em casa, das traições… mesmo assim aqueles valores conservadores que pautam uma criação estavam impostos e eu não tinha muita possibilidade de sair disso. Eu sinto que até hoje eu sou preso a alguns estereótipos e que eu estou num processo de desconstrução disso ainda.”
Ao contrário de Cláudio, Leonardo Piamonte, psicólogo o criador da página @Paternidade_sem_frescura conta que, como os pais trabalhavam demais, lhe sobrava autonomia. “Eu implorava que alguém me mandasse um 'não'”. O problema não eram as restrições, mas a falta de contato, de intimidade, de saber quem eram os pais:
“ Eu não tenho intimidade emocional com o meu pai nem como a minha mãe. Com a minha mãe eu estou tentando desenvolver, com o meu pai, não tem jeito porque a gente se afastou demais.
Então hoje eu quero saber das emoções dos meus filhos: quero que eles contem comigo pra vida deles ficar mais leve emocionalmente, que a gente se conheça, que eles saibam quando eu estou bem ou mal, que eu também saiba da parte deles”
Léo conta que não lhe custa conceder liberdades para que os filhos expressem quem querem ser, mas que a vontade de estar sempre próximo nem sempre é bem recebida pelos garotos.
“Já me foi apontado por eles que eu intervenho demais nas relações deles. Que eu fico muito em cima… Acho que nessa busca de ter um contato com eles, eu acabo também invadindo um pouco os espaços.”
Pensando um futuro diferente
Claudio hoje é pai de uma menina que tem pouco mais de um ano, e ele conta:
“Projetando um futuro eu vejo que é preciso dar liberdade, liberdade com apoio, com presença. Então eu tenho também me reinventado me atualizado nas minhas pautas para que eu possa estar atualizado com um mundo mais inclusivo, mais respeitoso, no qual eu acredito e que vai precisar acolher as dificuldades, os gostos, os quereres e sabe lá o que vai se apresentar na construção da Maria Luiza.”
Pai de uma menina trans de 17 anos, o designer gráfico Léo Medeiros acolheu a filha que aos 10 anos disse ao pai que se identificava como menina [ou seja, mesmo sendo lida biologicamente como um menino, a criança tem identidade de gênero feminina]. Léo também é um homem trans e, entendendo e legitimando a identidade da filha, enfrentou seus medos ao conceder liberdade para que a filha se expressasse:
“Eu acabei não concordando que ela expressasse sua identidade de gênero naquele momento [quando ela tinha 10 anos] porque nós vivíamos em uma região de muito preconceito, em um momento que eu não consegui lidar com aquela situação e eu tive muito medo.
Até que chegou ao ponto de aos 15 anos em que ela não aguentou e colocou pra fora sua identidade de gênero e sua expressão. Eu falei: 'Tá, tudo bem. Vamos cuidar isso, porque a gente sabe que o mundo é violento, que por nada matam pessoas, sejam elas de fora ou de dentro da comunidade LGBTQ+.'"
Apesar do temor pela segurança da filha, o conflito geracional não está na expressão da identidade de gênero da filha, mas na visão de pai e filha sobre formação e profissão:
“Eu vejo que a geração dela é mais tecnológica e tem pensamentos diferentes em relação a vida. Ai eu vejo muito conflito. Porque da minha geração, nós somos mais ativos: nós não tínhamos enquanto adolescente muito acesso à tecnologia, então tínhamos que correr muito atrás dos estudos, de trabalho, o que fosse, pra ter acesso. E agora tá muito simplificado esse acesso, é muito conteúdo, muita informação. E eu vejo que com essa facilidade, é uma geração que não busca tanto os valores, que não tem tanto essa pró-atividade que a minha geração teve e continua tendo.”
De muitas maneiras estes contrastes — que nem sempre resultam conflitos — são inevitáveis. Eles refletem as diferenças do mundo em que cada um cresceu e refletem também a quebra de expectativas, tanto dos pais, quanto dos filhos.
A Deh Bastos conta como a conciliação, para ela, teve a ver com abaixar as idealizações:
“Os conflitos começaram a aparecer quando eu vi que meus pais eram seres humanos igual eu, com falhas. Que eles, além de meu pai e minha mãe, eram seres humanos. Quando eu tirei eles desse pedestal de perfeição, eu dei uma bugada. Mas eu virei adulta. É engraçado. Depois que eu virei mãe, tudo fez sentido. Eu entendi esse lugar deles de pessoas antes de serem meus pais.“
Aprendendo com as diferenças
Essa lacuna entre gerações, sobre a qual nem sempre é fácil construir uma ponte, acaba também sendo uma oportunidade de aprendizagem.
“Antes de ser mãe do José eu fui madrasta da Giovana, que hoje tem 24 anos e que conviveu comigo dos 14 aos 18. Ali tinha um conflito de criação. Ela vivia de um jeito que era muito diferente do que eu fui criada. A liberdade que eu aprendi tem muito a ver com disciplina: que pra ter liberdade eu tinha que ser uma pessoa disciplinada. Ai foi muito difícil lidar com a Gi de 14 anos e entender que o conceito dela de liberdade era “ninguém tem que se meter na minha vida”. E eu tinha expectativas e elas eram diferentes da realidade, ai foi bem conflituoso.
Na relação que eu tive com a Gi, eu aprendi a ser mãe. Eu aprendi justamente o que eu pratico com o José: que é o respeito ao indivíduo. Que cada filho, cada pessoa, tem o jeito dela de entender as coisas. Que a gente pode conduzir, conversar, mas que a gente precisa baixar muito as expectativas de quando a gente está falando de filhos, porque uma coisa é o que eu quero, outra coisa é o que ele quer e uma terceira coisa é o que ele de fato será.
Eu aprendi a respeitar meus filhos, a legitimar as escolhas deles e ser o colo para onde eles podem voltar de uma forma acolhedora, sem acreditar que eu posso direcionar o caminho de ninguém.”
As diferenças de pensamento são inevitáveis, são parte do processo de pais e filhos serem personalidades próprias e individuais, ainda que semelhantes em alguns aspectos. Não havendo como evitar as discordâncias, a boa relação entre pais e filhos consiste em saber aprender com as diferenças.
“Eu sinto que eu sou um observador da geração deles. Eu me ponho num lugar de humildade e de escuta. Acho que a gente deixa mais leves os conflitos geracionais com a troca no dia a dia”, declara o psicólogo Leonardo Piamonte.
Léo Medeiros, também se coloca como aprendiz diante das diferenças que tem com a filha.
“Estou tentando entender esse novo mundo, esse mundo tecnológico em que as crianças que nasceram a partir dos anos 2000 são diferentes. Os comportamentos, a visão é totalmente diferente. É uma geração que eu estou buscando entender. Como é que eles dão o start na vida deles? O que é que eles querem fazer? Em relação a minha filha, o que é que ela quer fazer?
Se a gente não tiver a mão, a força, a capacidade e a inteligência de monitorar e entender tudo isso, como é a que a gente vai educar? Como a gente vai falar “Isso é certo" e "isso é errado". Ou "por aqui você vai dar certo" e "por aqui você pode não ter tanto sucesso”. Como a gente vai fazer com que a trilha dessa nova vida seja a melhor possível? Essa é a maior dificuldade que eu vejo e isso é muito valioso, por estar observando, por estar aprendendo junto e pelo desafio. Para mim a maior conquista é quando a gente vence um desafio.”
Vencer ou superar os desafios são um processo constante na paternidade. Como o Bruno Vilas Boas, um outro participante do PAI 2020, disse umas duas semanas atrás, ser pai "É um processo de renovação constante, Cada salto de desenvolvimento dele demanda um salto de desenvolvimento da gente".
E encarar estes desafios pode ser um pouco mais construtivo ou menos conflituoso quando fazemos isso juntos, tendo com quem falar, sabendo escutar, podendo trocar experiências — as que deram certo e as que nem tanto.
E este é o convite que fazemos com o PAI 2020. Topa participar desse encontro de experiências e buscar descobrir, juntos, caminhos para seguir?
Mecenas: C6 Bank, Carrefour e Philips
Tanto este texto como o nosso evento PAI 2020: Os desafios das paternidades atuais estão sendo feitos com todo o carinho por nós da Equipe PdH junto com o Homem Paterno e todo este trabalho e dedicação só é possível porque estamos recebendo o apoio de pessoas que acreditam na missão de transformar paternidades reais e construtivas: o C6 Bank, Carrefour, Philips e, claro, nossos membros PdH!
O PAI 2020: Os Desafios das Paternidades Atuais começou ontem, dia 24, e continua dia 26 e 28 de agosto, às 20h30, por transmissão ao vivo.
Quer ver a programação e saber como faz para se inscrever? É por aqui!
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